O ponto que o autor mais deseja debater é o que chama de Via Larga, no sentido de uma secularização aberta, e possível, no nosso tempo, desta premente discussão do Mal, perversão de uma realidade, a de que o Bem, vivido na nossa modesta e limitada esfera imperasse no mundo que nos rodeia.
Aguardo a reacção dos nosso leitores mais habituais.
O Mal, A Secularidade, E O Trabalho Do
Conceito
por A. Heller,
R. Mancini, A. Torres Queiruga,
ed.
L'Altrapagina, Città di Castello, 2013 (pp. 33-90)
Nota de
leitura ( do ensaio de Andrés Torres Queiruga)
Não refarei o percurso, de grande
erudição, que nos propõe àcerca da Teodiceia ( o conhecimento de Deus) porque
desejo chegar ao fundo da questão, que é a do eterno mistério do Mal,
consentido ou não por um Deus Criador, perfeito, de um universo ainda por
conhecer, mas em que vivemos, e no que dele já é conhecido, em plena
imperfeição: violências de todo género, guerras, perseguições, de que o
Holocausto, em todo o seu horror faz com que o Papa Bento XVI exclame, na
visita a Auschwitz: "Porquê, Senhor, te calaste? Porquê pudeste tolerar
tudo isto? "
Encontro em momento especial, no corpo da
poesia de Paul Celan, a mesma interrogação, o mesmo espanto que afunda: como
foi possível tanto horror consentido?
Para o autor reside aqui o estado actual
da discussão da Teodiceia, tal como ele a vai apresentar no seu estudo. Porque
o Papa, este Joseph Ratzinger, é um grande teólogo (cuja obra tenho, nas
diversas traduções que fui encontrando e onde reconheci muitas das leituras que
gostei de fazer, desde os primitivos Evangelhos apócrifos, ao seu entendimento
superior do que significa a Comunhão, numa época em que a astrofísica e a
física das partículas - a ciência pura, do conhecimento do Universo Criado -
nos podem ajudar a viver melhor um momento de Fé, na plenitude do que significa
um Mistério, o da permanência eterna da energia criadora...).
Desta apresentação segue o autor para o problema
que aqui se desenvolve: o da existência, ou da presença do Mal, como tem sido
discutido até agora, e cuja discussão ele deseja reorientar à luz de um novo
entendimento possível. Refere em nota uma obra que tem tradução portuguesa, Repensar o Mal,da ponerologia à teodiceia,
São Paulo, 2011.
A questão do Mal conduz à da relação de
Deus com essa perversão no mundo, e do mundo, nas criaturas (feitas à imagem e
semelhança de Deus, como se lê no Génesis) e o autor evoca o célebre pensamento
de Epicuro, a esse propósito:
" Ou Deus quere tirar o mal do mundo,
mas não pode; ou pode, mas não o quere tirar; ou não pode nem quere; ou pode e
quere. Se quere e não pode, é impotente; se pode e não quere, não nos ama; se
não quere, nem pode, não é o Deus bom e ainda por cima é impotente; se pode e
quere - e isto é mais certo-então, de onde vem o mal real e por que não o
elimina? "
Pergunta sem resposta. Contudo coloca o
Amor no meio da interrogação, e adiante veremos que o Amor será um dos
conceitos trazidos pelo autor à nossa reflexão. Um Deus que permite o Mal, pode
ser um Deus do Amor? E não terá grande limitação, essa relação do seu Amor com
as suas Criaturas (o comportamento delas no mundo? ).
Por
aqui se poderia colocar uma nova questão, a da Liberdade, não menos importante.
Amor sem liberdade será amor em plenitude? Mas o abuso, o mau uso, dessa
liberdade, não será uma das possíveis
raizes do mal, por ser perversão do primordial entendimento do Amor em
plenitude?
As interrogações de Epicuro, no entender
do autor, obviamente levariam ao ateísmo. Ora não é isso que ele pretende, no
seu texto. Nem tampouco uma adesão cega a uma Fé que nada põe em causa. Faz
então, como diz, algumas clarificações: discute a filosofia de Leibniz, pois
não vê que seja útil, para a questão da Teodiceia, falar do melhor dos mundos
possíveis. E discute a questão do Racionalismo, que pode ser apresentada como
não respeitando o Mistério.
O propósito do autor é outro e julgo, sem
ter competência teológica para em verdade o discutir, que ele pretende que
pensemos o Mal não tanto ou de modo absoluto, por via da Teodiceia, mas antes
por via da Filosofia. Aproximando as duas esferas, a que denomina de via curta
( na lógica da fé) e a que chama de via larga (que não recusa o trabalho do
conceito). Pois só esta permitirá uma melhor adequação à nossa era, de
Secularização e pós-Ilustração (no sentido do século XVIII , de Razão
Ilustrada, ou seja culta, liberta de dogmas).
A dificuldade, na discussão do Mal, como
na relação com Deus, é que abordamos aqui algo que é de todos os tempos, o mal
humano é universal, de todas as épocas, em todos os momentos relatados o
podemos verificar, conservados na memória dos povos encontramos sempre
testemunhos dolorosos.
Explica o autor que a Teodiceia cristã se
demarca das respostas ateístas, mas que o problema é humano, e comum, e só as
respostas variam, conforme os pensadores: " a resposta de Schopenhauer não
é igual à de Sartre".
Não se trata, para o autor, de
"justificar" Deus, mas sim de
"justificar a ideia ou as ideias que nos fazemos do seu
mistério: não se justifica o sol quando se refuta o geocentrismo".
Novo conceito, do Mistério de Deus, para
nossa reflexão, a somar ao já atrás referido, do Amor; um Amor que se reporta à
essência do Mistério de Deus, como acontece com o Mal. Mas será do Mal que ele
deseja falar-nos : " Ou seja, fazendo ver que não há contradição entre a ideia cristã de Deus e a terrível realidade do mal.
O "problema "do Mal começou "por ser colocado dentro da
religião", afirma o autor, referindo, desde logo, as memórias mais
antigas, da Mesopotamia (Gilgamesh)
dos hieróglifos egípcios do julgamento e pesagem das almas, Zaratrusta, na
Pérsia antiga, o Livro de Job, na Bíblia de Israel, e mesmo sem esquecer o já
citado Epicuro e as questões dilemáticas.
Surge em Leibniz, recorda o autor, a
palavra Teodiceia, mas com ele estamos ainda na época que ele define como
pré-moderna, e o que procura é um novo olhar "largo" sobre a questão
do mal na criação divina, que dentro da esfera da fé encontra resposta, mas já
não a encontra na época moderna, secular em que vivemos.
A circunstância
em que se pode enquadrar a questão mudou, e com essa mudança, a abordagem que
se espera. O autor não se exime a responder, e é essa honestidade intelectual
que torna o seu desafio, e as suas propostas, tão aliciantes para o leitor
interessado.
Afirma a " Necessidade de uma
teodiceia actualizada" (p.11 do ensaio). Porque a teologia, tal como a
filosofia, deve estar disponível para "dar a razão" das suas
convicções. "Já era dito na Primeira carta de São Pedro (1, Pe 3, 15 ) e
não pode negá-lo o cristianismo actual".
Redescutindo de novo o ditame de Epicuro,
que não traz solução, empurra para uma forma racionalizada de impossíveis, é no
Papa Bento XVI que o autor vai encontrar outra ideia-força, a da Caritas: na encíclica Deus caritas est .
Já se trouxe à reflexão o Amor, enquanto
se discutia o Mal, discute-se agora a Caridade (forma de Amor, tal como a ideia
da Misericórida).
Devagar, vamos descendo, por assim dizer,
à esfera do humano, o puramente humano do nosso ser, crente, ou descrente, mas pensante.
Será na raiz do pensamento que poderemos
encontrar novo caminho. Que não afaste, que leve a compreender.
Reconheçamos a autonomia do mundo, como escreve o autor, a partir do Concílio Vaticano II, porque esse é
o primeiro passo para enfrentar o problema do Mal de forma inédita. Muda-se,
com isso, o sentido da velha pergunta, "de onde vem o Mal? " Havia o
Bem (Deus) e havia o Mal( o Diabo). Afinal o que há é a limitação do mundo
criado, e nós nele, com a nossa liberdade, que deriva da liberdade, ou da
autonomia, que se deu com a Criação.
Chega ssim o autor à conclusão e a uma
nova forma de entendimento do Mal: " a raiz última do mal reside na finitude
do mundo". E não se exime a citar Spinoza, mais um filósofo para a lista
das citações com que tem fundamentado várias vezes o seu discurso, que diz
" toda a determinação é também negação" ( Omnis determinatio est negatio,Opera,
ed. Pléiade,p. 1231 ).
Autonomia e finitude, pois.
Se com a ideia de autonomia já não se pode
supôr que haveria, ou poderia haver, em parte, intervenção, com o acrescento da
ideia fundamental de finitude, a questão fica, aparentemente resolvida. Não
cabe a perfeição sonhada, na finitude, por definição imperfeita (porque finita!
).
Não
cabem, na nova proposta do entendimento de Deus, nem o Bem nem o Mal, cada um
na esfera de comportamento e de escolha humana, própria. A esfera de Deus será
necessariamente outra. A de um primeiro ponto, primordial, de que tudo o mais
emanou (Nicolau de Cusa) em sucessivos momentos de diferenciação, até se
atingir a escala do mundo e dos humanos, na imperfeição da finitude.
Afirma o autor que " todos intuimos que
a finitude exclui necessariamente a
perfeição omnímoda, pela mesma razão que um círculo não pode ser quadrado (...)
um mundo finito-perfeito seria um mundo finito-infinito: um círculo-quadrado,
uma contradição" (p.16).
Deste modo o autor retira da discussão o
Mal, e a sua raiz em Deus: " Porque se a raiz do mal está na finitude,
dado que qualquer mundo possível, não
podendo ser Deus, será necessariamente finito, torna-se impossível pensar ...um
mundo sem mal. Seja qual fôr o mundo possível, seus elementos e modos de
articulação serão distintos; mas sendo limitados (...) estarão sujeitos a
falhas e a sofrimentos".
Em relação directa com este problema da
finitude surge o da liberdade: não é infinita; é limitada ao espaço da nossa
finitude. Kant deveria talvez ser introduzido aqui, pois transitámos para o
domínio da Moral, e da Razão Prática, tão do seu agrado, porque transforma um
problema maior num problema social e moral de cada um. Da mão do homem nasce o
Mal, Deus (o En-Soph da Kabbala) na sua anterioridade, ainda não é o
responsável pela sua existência. (Mas este é um àparte meu).
Seguindo ainda o autor, embora de modo
resumido, chegamos a um outro conceito muito importante para o aclaramento das
suas ideias : o de Bondade.
Falou-se do Amor, fala-se agora de
Bondade.
A bondade infinita de Deus,
manifestando-se em Jesus, ( o Verbo se fez carne e habitou entre nós...) a sua
incarnação, humana e finita enquanto o considerarmos como tal, expoente supremo
de um Anti-Mal (contra o qual lutará até ao sacrifício último na Cruz). Mas
estamos neste momento a sair da filosofia para voltar à religião. Pois teremos
depressa de distinguir, como faz Ratzinger, o Jesus histórico da figura de
Cristo, o Redentor.
A discussão do Mal reenvia-nos,
necessariamente, para uma meditação mais funda, a da nossa relação com Deus, o
seu Mistério supremo. E para a busca do entendimento da Fé: quando alguém como
Maria José Nogueira Pinto, figura pública da nossa política, a poucos dias de
falecer, afirma, num programa de televisão "nada me faltará", para
além da emoção com que deixa o seu público, com que mais o deixa? Com a certeza
da sua fé na Transcendência de um mundo onde será acolhida, por um Deus que a ama, embora não lhe poupasse a dôr
de uma morte prematura (como fez a Jesus seu Filho).
Por
outras palavras: embora filosofemos, será sempre maior o mistério da Fé que sublima
a finitude, o sofrimento, numa entrega tão íntima que só mesmo um Místico ou um
Santo poderão explicar. Ou um Homem Bom.
Sem espaço para a discussão do Mal.
1 comment:
Obrigado, cara amiga! A questão do Mal creio ser a principal, hoje e sempre. A autonomia e a finitude serão, por certo, a origem.
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