Sunday, September 04, 2016

Fabio Gorodski, VARIEDADES e vários episódios, Chiado ed. 2014

Este é um livro que me chega às mãos de modo algo surpreendente, embora já tenha acontecido algo assim, uma vez ou outra.
Delicadamente, por e-mail, é a mulher do jovem escritor - digo jovem porque tem a idade do meu filho mais novo - e não é ele mesmo quem me pede para enviar o livro.
Gosto de ler, aceito sempre. Recebi o livro, vindo da Alemanha, onde me foi dito que vivem. Berlin, cidade onde estive tantas vezes, escrevi, fiz seminários, fui à ópera, ao teatro, passeei nas ruas, vi em 61 crescer o muro, as casas, de um dia para o outro e aceleradamente serem isoladas com tijolos, cimento, houve quem se atirasse da janela, para morrer no chão , o mundo ali dividiu-se de ume forma súbita e terrível. Anos depois, em viagem de estudo, visitei a RDA, íamos ver escolas e universidades, e nas livrarias comprávamos livros de arte mais baratos. Ouvir, só os discursos oficiais. Conversa normal não havia, havia medo. Voltei, já depois da queda do muro, e assisti à capacidade maravilhosa de renascer, de que a Alemanha fez prova, recuperando edifícios, criando espaços de Arte para bailarinos, pintores, que ocupavam alguns edifícios vazios e neles exibiam as suas actividades. Num desses conheci Sasha Walz, jovem em início de carreira como coreógrafa, hoje genialmente reconhecida e muito premiada. E vi na Akademie der Kuenste (não tenho umlaut, peço desculpa pela forma antiga de ortografar) Cesc Gelabert, a quem dediquei um poema, num dos meus livros. O brilho, a energia da luz de um corpo a solo, num espaço imprevisível. Enfim. Amo esta cidade onde não voltarei, e quem sabe se foi por saber que Fabio vive lá que me interessei pelo seu livro.
Capa bonita, simples, e que nas badanas não diz nada sobre quem é o autor, cidade onde nasceu, idade, etc.
Diz contudo que é músico, compositor, com formação electroacústica (em Colónia) e doutor em estética, ciências e tecnologias das artes (Paris 8), tendo dado inúmeros concertos no Brasil e na Europa, e recebido vários prémios. Fez ainda videos experimentais, apresentados na Suiça, uma Homenagem  a Calder (França) e com este livro que tenho aqui à frente ganhou menção honrosa no Concurso de Literatura Cidade de Belo Horizonte em 2014.
Depreendo, embora ele não o diga, que seja brasileiro.
A sua prosa tem essa marca de originalidade, inova pela forma, são contos de prosa e imagens comprimidas em cerca de duas páginas, no máximo(arte difícil, como seria a exposição de um tema, antes das elaborações a solo de cada um, a seguir). Mas também podemos pensar que não são um tema, único, a viagem pelas palavras soltas dentro, ao modo onírico, livre, mas vários temas, interrompidos a meio e que logo poderão ser retomados.
Ou, como estamos perante a escrita de um compositor, que estes são os solos, derivas sobre algum tema exposto: a leitura, por exemplo, de notícia de jornal, reportagem de televisão, visita a um museu ou uma galeria de arte, experimentação própria, musical, de várias formas e em que o gesto, o som, desencadeiam o discurso  de prosa poética, inacabada, ou puramente solta.
Um estilo que de tão aparentemente descritivo, como se o dito fosse de facto vivido, e com datas no fim a assinalar o lugar ( o espaço) e o momento (o tempo), deixaram-me pensativa.
Pelas datas, lugares e tempos, parece que andou pelo mundo inteiro: que idade teria este este músico escritor? O texto mais antigo, datado de 1970...e os outros por aí fora, até à brincadeira de um "romance" em Tóquio, 2039...
Pensei, enquanto ia lendo: se é velho, foi embaixador? Se é jovem, viajou com o pai, ou com alguma ONG?
É claro que procurei informação, no google, a enciclopédia e a polícia do mundo. E ainda fui ver se tinha facebook, que toda a gente tem.
Vi então que nasceu em 1971, um ano mais novo do que o meu filho mais novo, João, que também é músico, de jazz, com formação nos Estados Unidos, e anda, como este Fabio, já pelo mundo inteiro, e há muito tempo. Deixo a indicação, quem sabe se virão a encontrar-se, o João (ver João Moreira, tem página oficial no face) é também ele múltiplo nos interesses e práticas musicais. Hoje  está em Paris, com o António Zambujo...
Mas (ao menos por enquanto, não escreve).
Mas voltando aos contos do Fabio: espero que sejam divulgados em Portugal: inovam, pela escrita, e não apenas pela forma tão concisa, de como quem diz, não se cansem, leiam apenas um pouco, de preferência repousem a seguir, pois vem lá mais...viagem, como fiz pelas inscrições de lugares e datas, num tom que parece ser sério e é só de brincadeira.
Pois como posso ter escrito antes de nascer? Há uma lição nesta escrita: a mão de um imaginário livre, é a prosa que se constitui como espaço e tempo, os detalhes, não sendo verdadeiros, quem sabe se poderiam sê-lo, tudo é pura "onda", pura energia em movimento, somos atravessados por ela, e o que nasce da nossa mão ou já foi antes ou virá a ser, negra poeira cósmica.
 De algum magma secreto se formará, uma vez e outra, como aqui, neste caso, um outro Verbo.
Escolho uma citação do autor,  do conto Hálito, para acabar:
"O homem fala e constitui o mundo, através da fala, literalmente
(...) falar é criar o mundo, fundá-lo, estabelecê-lo, edificá-lo, compô-lo, segundo consta foi a primeira tarefa de Deus: e haja isto e houve, e haja aquilo e mais aquilo e houve também, conforme proferiu o mundo assumiu suas respectivas qualidades e atribuições. Quase tudo: no sexto dia Ele criou o homem, criatura à parte, precisou de algo mais, - precisou soprar algo em suas narinas, a Sua alma, a própria, ou parte dela ao menos, da seguinte forma: um pedaço de maçã  mordido na boca de alguém e arrancado do todo é uma parcela que corresponde integralmente àquilo que restou do fruto e que a mão ainda segura. Ou dito outramente: assim como aquilo que constitui a maçã está igualmente dentro e fora da boca, e não há contradição nisso, a alam Dele está dentro de nós e fora também. Exalar nosso ar ao falar, bem do fundo de nós para restituir ao mundo em maravilhosa gratidão o sopro que em nosso início Ele nos concedeu(...) fazer nós também como Ele para constituir nosso pequeno mundo conforme Sua grande vontade, e descansar no sétimo dia" .
(p.69)
Mas este lirismo sublime, que não nos mistifique, pensando que nada haverá de mais interessante: logo no Romance ele desenha a utopia que no Japão de 2039 lhe permitirá dormir com uma boneca de corpo e de pele tão perfeita, que nada lhe faltará, e muito menos uma Eva das de outrora, Evas tão imperfeitas...
Sim é um livro para ler, para pousar e abrir de novo, e viajar pelo sabor de um português tão nosso, mas melhor!






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