Monday, September 26, 2016

Ainda Andrés Queiruga

Já comecei a ler o ensaio, mais se calhar Manifesto de Fé para o tempo moderno, do que apenas ensaio, de Andrés Torres Queiruga:
Alguien así es el Dios en quien yo creo ( editorial Trotta, 2013).
Autor da minha geração (um ano mais novo do que eu, nascido em 1941) teólogo, filósofo, conhecedor das línguas que lhe permitem ler a Bíblia e trazê-la até nós com uma reflexão fundamentada, interessa-lhe sobretudo dar a conhecer o que é Deus, ou Quem é Deus, de modo a que leigos, como é o meu caso, se possam aproximar do seu entendimento, num mundo que em tudo se acelerou, o do nosso tempo. Um dos capítulo tem precisamente em subtítulo " Acreditar em Deus na Cultura Actual" (p.39). Há certamente uma maneira de sentir Deus em si: a da fé concedida. Pois creio que o dom da Fé não é inato, é concedido, e será vivido, conforme os casos, de diversas maneiras.
Andrés, e daí o modo como me seduz a sua leitura, tem procurado enquadrar a Fé numa esfera que é filosófica, tanto quanto teológica, e demora-se na apresentação e discussão do pensamento filosófico o tempo necessário para que o leitor comum o acompanhe.
Escolhe tópicos muito actuais: a ideia da criação por amor, o problema do mal, e a apresentação de um "Deus dos filósofos" para nos explicar o caminho de Deus na consciência religiosa, dos grandes místicos na sua entrega extática, ou nas civilizações, como explica Lessing na sua Educação do Género Humano ou na cultura em que se cresce, como no drama Nathan o Sábio (trad. Fundação Gulbenkian, 2016).
Lessing sublinha a questão da Ética, colocando a escolha livre do homem em cada acção e cada momento da sua vida acima dos dogmas de uma fé que o podem cegar (tantas e tantas vezes, ao longo da História) destroem nele a semente do Amor e do Bem que presidiram à ideia inicial da criação.
Para Andrés Queiruga Deus é o mundo, Deus está no mundo, está em nós, que fomos obra sua (em cada dia refeita?) daí que se torne urgente decidir em que Deus queremos, ou podemos, acreditar - ou sabendo, como ele nos diz tão claramente (el Diós en quien yo creo) já acreditamos e explicamos porquê.
Ele explica porquê.
Deus é a força Anti-mal, e a alegria de Deus suporta o universo, em simultâneo com o seu amor. Cita Spinoza:"o amor intelectual de Deus é uma parte do amor com que Deus se ama a si mesmo", e do mesmo modo a sua alegria sustenta a nossa e coincide com ela. Refere-se o autor não a uma alegria momentânea e superficial, mas ao sentimento profundo suscitado por saber-se envolto , e à sua vida, no mistério salvífico da graça divina.
A escrita de Andrés é a de um místico, crente, e que busca na filosofia razões que justifiquem esta sua relação com um Deus que deseja actual, atento, e que o obriga a falar de um cristianismo reinterpretado (p.19). É por via de Cristo Jesus, como nos diz, que melhor poderemos entender e aceitar o amor de Deus, que nele se tornou humano, como nós.
A terceira parte do livro aborda o caminho da filosofia à mística.
É para ler devagar, para chegarmos sem preconceitos à ideia de que "no infinito coincidem filosofia e teologia" (p.120).
Mas muito tivemos de ler antes, na Bíblia, os Salmos, os Profetas, as narrativas simbólicas e místicas que ao longo das épocas dão testemunho de uma presença (divina) e de uma entrega (humana) permanentes.
Não se concebe que possa haver um deus para os filósofos e outro para os crentes, embora se vejam diferenças de "estilo", resultantes das diversas culturas em que as experiências e o pensamento se enquadram, como se pode verificar pelas várias religiões conhecidas. Mas o autor, para nos demonstrar que num filósofo se pode encontrar uma revelação, mais até um apelo, a uma divindade Una a que nos podemos entregar em oração, deixa o chamado MEMORIAL de Pascal, o célebre filósofo francês, que escreveu num pergaminho, encontrado pelo seu criado poucos dias antes da sua morte em que proclama  " Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus de Jacob; não o Deus dos filósofos e dos sábios!".
O Deus dos filósofos e dos sábios como podemos ver, desde a época do Iluminismo, e sobretudo em Lessing, que acompanha os Enciclopedistas franceses, é o deus da Razão Universal, o deus da Moral e do comportamento que o ideal da Revolução Francesa virá a consagrar nos conceitos de liberdade, igualdade, fraternidade, que a própria revolução em muito degradou, como se sabe.
Não, em Pascal, como em São Tomás de Aquino, a revelação de uma verdade outra, lida e vivida na Bíblia de um Deus pai Criador é-nos oferecida para meditação, e é com ela, na transcrição de Andrés Queiruga, que termino este post:
Ano da Graça de 1654,
Segunda-feira, 23 de Novembro, dia de São Clemente, Papa e mártir, e de outros santos (...) por volta das dez e meia da noite até aproximadamente as doze e meia da noite.
FOGO
DEUS de Abraão, DEUS de Isaac, DEUS de Jacob,
 não o deus dos filósofos e dos sábios.
Certeza. Certeza. Sentimento. Alegria, Paz.
DEUS de Jesus Cristo.
Deum meum et Deum vestrum.
O teu DEUS será o meu Deus.
Esquecimento do mundo e de tudo, excepto de DEUS.
Só se encontra nos caminhos ensinados no Evangelho.
Grandeza da alma humana.
Pai justo, o mundo não te conheceu, mas eu conheci-te.
Alegría, alegría, alegría, lágrimas de alegría. Dereliquerunt me fontem aquae vivae.
Deus meu, irás abandonar-me?
Que não seja apartado eternamente Dele.
Esta é a vida eterna, que te conheçam a ti, único Deus verdadeiro e àquele que enviaste, Jesus Cristo.
Jesus Cristo. Jesus Cristo.
Eu separei-me Dele; fugi Dele; neguei-o, crucifiquei-o.
Que nunca mais seja separado Dele.
Ele está unicamente nos caminhos ensinados no Evangelho:
Renúncia total e doce.
Submissão total a Jesus Cristo e ao meu director espiritual.
Eternamente em alegria por um dia de exercício na terra.
Non obliviscar sermones tuos. Amen.

Eis a experiência pessoal de Deus, a que Andrés, em capítulos seguintes fará referência, nesta exaltação rara, mística, sentida por um dos grandes pensadores universais. Não têm de ser "descoincidentes" a experiência da busca do saber, do conhecimento de Deus, e a sua vivência prática, na Unidade do ser.
Será um acaso que tenhamos agora nas mãos a Bíblia de Frederico Lourenço, a começar pelos Evangelhos, num convite tão premente à sua leitura?
Não acredito em acasos, acredito mais, como Jung, em coincidências especiais..."sincronicidades".
O leigo, não-crente, poderá não ver em Jesus Cristo a Divindade. Mas poderá, por via de Queiruga, ver melhor, em Jesus Cristo, a Humanidade de Deus.





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