Bertolt Brecht ( 1898-1956 )
Em final dos anos 50, Jorge
de Sena, com Paulo Quintela, lançam uma colecção das traduções da obra de
Brecht na Portugália Editora, onde muitos projectos novos, de jovens criadores,
eram apadrinhados, na poesia e no romance, e as traduções de Brecht seriam um
grande incentivo para os novos encenadores.
Ilse Losa foi uma das
primeiras tradutoras, Fiama Hasse Pais Brandão foi outra e por último fui
também eu convidada.
Aceitei com entusiasmo, eu
estava em Lisboa a estudar na Faculdade de Letras, mas vinha de Coimbra ons se
tinha fundado o CITAC para a vanguarda teatral - sempre que possível: nem tudo
passava pelo crivo da censura.
Quando se fala de Brecht
pensa-se na dimensão política, revolucionária, da sua obra.
Mas a revolução do ponto de
vista das artes de palco, evoluindo de um Expressionismo poético, anarquista,
juvenil (como na peça BAAL) para um
genuíno teatro de intervenção em que tudo se combina e se expõe é imediata: o
texto, a orientação ideológica, já marxista, e o enriquecimento do palco por
meio das canções, contribuindo para um entusiasmo que contaminava as almas,
como vem a contaminar o seu maior companheiro destas aventuras, Kurt Weill.
Nos Escritos para Teatro, que foi escrevendo de 1933 a 1947, no exílio
da Dinamarca, depois da Suécia e finalmente Finlândia devido à ascenção de
Hitler ao poder, e que a Suhrkamp Verlag editará em 1963-1964, em seis volumes,
defende uma escrita dramatúrgica não-aristotélica, já inspirada no vanguardismo
experimental dos primeiros Modernistas da Bauhaus, do Expressionismo, e do
teatro chinês que teve ocasião de ver, a dada altura, em Moscovo.
Comecemos no que é definido
na POÉTICA de Aristóteles, quanto à
tragédia e quanto à comédia:
trabalha-se na tragédia a
memória dos grandes mitos, em que as personagens são deuses, são heróis que se
reconhecem das obras de Homero (recomendo as traduções da Ilíada e da Odisseia, de
Frederico Lourenço) e que um destino trágico por culpa própria ou intervenção
divina acabará destruindo. Os autores celebrados são Ésquilo, Sófocles, e
Eurípides e é pela análise das suas tragédias que Aristóteles define o seu
conceito. A tragédia compõe-se de vários actos em que a acção dos heróis é
comentada por um coro que figura a voz do povo, ou a meditação da consciência
que a situação dramática, seja justa ou injusta, impõe.
O que se pretende, com a
representação, é que o público entenda o que é narrado, se identifique com a
narrativa e a situação mítica, e reconheça que podia ser ele mesmo a sofrer o
que sofrem os intervenientes: a esta fusão de emoções chama Aristóteles catárse
(purificação).
A tragédia grega é, no fundo,
um ritual de purificação, sai-se dessa experiência, por vezes tão violenta, de
alma limpa, de vida renovada.
Ora Brecht não pretende nada
disso, antes pelo contrário: não quer identificação, pois isso é perder a noção
do tempo que se vive e do que a sociedade, em mudança, exige dos cidadãos.
Quer provocar reflexão, distanciamento inclusivé da
demasiada beleza de um texto, quer que o seu público saia da sala desperto e
atento para a mudança social que à época se deseja impôr: a de uma utopia,
comunista, de liberdade, fraternidade, igualdade para todos.
Algo que ele mesmo, Brecht,
veio a descobrir, em 1955, que nunca poderia existir.
É o ano em que publica um
célebre poema em que diz que se o Governo não gosta do seu povo, talvez mudar
de povo, já que o povo não consegue (em ditadura) mudar de governo.
Mas voltemos então ao que ele
chamou de TEATRO ÉPICO, por recuperar a ideia de uma estrutura narrativa, como a da epopeia, mais do
que a que fora definida por Aristóteles para a tragédia, em que a acção,
suportada no mito, tinha de ser verosímil, coerente e levar a uma fusão de
catárse com o seu público.
Como já disse, a ideia de
catárse é a que tem de ser afastada.
Ao público pede-se atenção e
distanciamento crítico, como na pequena peça A EXCEPÇÃO E A REGRA, uma das que traduzi. A moral do texto é não
sigas como regra (era a corrupção, a desonestidade, a violência sobre os mais
fracos) aquilo ue devia ser excepção, num mundo mais avançado.
Para manter o seu público
atento, Brecht usou as canções, que
interrompiam a acção e o monólogo ou diálogo dos actores na cena, e porque
música e palavra foram sempre entregues aos melhores, penso em Kurt Weill, e em
Hans Eisler, os mais célebres (este compôs o hino da República Democrática da
Alemanha, RDA) - as canções de Brecht seguiram o seu rumo à parte, em concertos
maravilhosos, de sucesso mundial.
Mas na realidade eram arte
integrante do projecto e da "lição" teatral, sociológica, política,
além de artística, pois nas artes de palco revolucionou as metodologias, com
uma influência que se mantém até hoje.
Hoje, o palco é um espaço
aberto, um espaço livre.
Podia dar muitos exemplos, de
actores, cantoras e cantores, pianistas ou conjuntos que os acompanhavam e o sucesso corria mundo.
Encontramos em Gerd Bornheim,
A Estética do Teatro, trad.
brasileira de 1992, a tabela que ele retira da edição dos Escritos, da ed. Suhrkamp:
Forma
dramática de teatro
|
Forma
épica de teatro
|
O palco corporifica
uma ação
|
O palco relata a ação
|
Compromete o
espectador na ação
e consome sua atividade
|
Transforma o
espectador em observador
e desperta sua atividade
|
Possibilita
sentimentos
|
Obriga o espectador a
tomar decisões
|
Proporciona emoções,
vivências
|
Proporciona
conhecimentos
|
O espectador é
transportado para dentro da ação
|
O espectador é
contraposto a ela
|
Trabalha-se com a
sugestão
|
Trabalha-se com
argumentos
|
Se conservam as
sensações
|
As sensações levam a
uma tomada de consciência
|
O homem se apresenta
como algo conhecido previamente
|
O homem é objeto de
investigação
|
O homem é imutável
|
O homem se transforma
e transforma
|
A tensão em relação ao
desenlace da peça
|
A tensão em relação ao
andamento
|
Uma cena existe em
função da seguinte
|
Cada cena existe por
si mesma
|
Os acontecimentos
decorrem linearmente
|
Decorrem em curvas
|
Natureza não dá saltos
- Natura non facit saltus
|
Natureza dá saltos
- Facit saltus
|
O mundo tal como é
|
O mundo tal como se
transforma
|
O homem como deve ser
|
O que é imperativo que
ele faça
|
Seus impulsos
|
Seus motivos
|
O pensamento determina
o ser
|
O ser social determina
o pensamento
|
Sentimento
|
Razão
|
Repare-se como é importante a
diferença final: não se quer provocar o Sentimento, mas despertar a Razão.
Da primeira peça juvenil,
experessionista, BAAL, história de um
poeta bêbado, anarquista, cruel, chegaremos às grandes lições de A MÃE, ou de VIDA DE GALILEU, entre tantas outras.
O que acontecia outrora,
antes do 25 de Abril de 1974, é que as peças de Brecht estavam proibidas. Por
isso as edições, mal saíam, eram apreendidas. Mesmo assim circulavam, e A Excepção e a Regra, por exemplo,
chegou a Coimbra, ao CITAC, e o José Niza fez uma música para esse pequeno
texto que eu tinha traduzido.
No seu último ano de vida José Niza, que
hesitava em publicar mas tinha muitas notas sobre o que poderia ser uma Autobiografia, esteve em minha casa e
contou-me um episódio do seu tempo de tropa no Ultramar, durante a guerra, de
que nunca me tinha falado:
"Eu tinha sido
mobilizado para Angola, era médico, psiquiatra, e por isso, embora estando no
mato, não estava propriamente envolvido nas primeiras linhas de combate.
Passava muito tempo com os
meus soldados, era certo que para os ajudar, física ou mentalmente, mas o tempo,
como se imagina era longo...
Um dia pedi ao Capitão que me
desse licença para ensaiar com eles um pequeno texto de teatro...e esse texto
foi a tua tradução da Excepção e a Regra, que eu a seguir acompanhava à
viola...pode parecer impossível, mas foi um momento de descontracção, de
discussão, de divertimento, em plena selva, em plena guerra - não podes saber
como nos fez bem, a todos nós..."
Com enorme desgosto, recebi,
pouco tempo depois, a notícia da morte de José Niza: deixei, no meu livro deste
ano, POEMAS COM ENDEREÇO, um poema em sua memória, em que refiro o vale do seu
amor, em Santarém...Estes Poemas editados este anos, e passe a publicidade,
ainda não se esgotou, mas é de pequena tiragem, na MARIPOSA AZUAL. Aí está Jozé
Niza, com outros que o tempo cruel nos levou. Fica a memória.
O teatro tem isso de
formidável: transporta-nos para outro espaço mental, e por isso a atracção de
um palco nunca se perderá.
Seja pela emoção, seja pela
revolução - o racional dos temas e das situações que podem ser abordadas seja
no teatro clássico, seja no teatro moderno, ou ainda neste teatro Épico de
Brecht, que muito em especial é feito de chamadas de atenção a um novo
comportamento, responsável, moralizante, na sociedade civil, de que todos
fazemos parte.
É o que precisamos de novo,
agora, neste mundo que de tão global e sem fronteiras, foi perdendo de vista os
seus limites: e os limites são e deverão ser sempre de Justiça, Moralidade e
Razão, a Razão Prática de já Kant
falara no seu célebre Tratado.
Aqui, na pedagogia de Brecht,
temos de salientar , para além dos efeitos que leva ao palco, as canções, os
cartazes, etc. o sublinhar de que um Povo sem educação, iletrado, não pode
assumir as rédeas de uma Governação. Entregar o Poder à nova classe de um
operariado ou de um campesinato em revolta (desde os levantamentos de 1905 ou
da Revolução de 1917) não éra bastante, na óptica de Brecht: faltava o
essencial, a preparação que só pela educação se podia obter.
É disso que se fala em A Mãe, a peça escrita em 1931-1932, a
partir do romance de Máximo Gorki, do mesmo nome. Existe uma edição actual da
ed. Cotovia, na tradução de Lino Marques ( Teatro III de Brecht) que vale muito
a pena voltar a ler - e talvez encenar? A lição contida é de sempre, e para
sempre. A edição da Ática, da tradução feita a duas mãos com Teresa Balté, está
esgotada, só em antiquário se pderá encontrar, com sorte; mas vou servir-me da
edição do Teatro de Almada, que existe à venda e retoma a anterior, para vos
ler um pouco.
Ora oiçam um excerto das
passagens importantes, entregues à voz do coro de aprendizes (tal e qual como
no teatro grego).
Elogio da Aprendizagem:
Aprende o que é mais simples!
É chegada a tua hora, não é tarde!
Não desistas nunca! É preciso saber mais!
Tu terás de saber mandar!
Tu terás de saber mandar!
Aprende, tu, no asilo!
Aprende, tu, na prisão!
Aprende, tu, na cozinha!
Aprende, sexagenário!
Tu terás de saber mandar!
Aprende na escola, sem-abrigo!
Tu, que de frio morres, estuda!
Tu, que tens fome, lê !
Ler é a tua arma!
....
Tu terás de saber mandar!
Haverá incitação mais
evidente, mais pungente, à absoluta necessiade de que todos, na sociedade, têm
de se preparar para funções mais altas e mais responsáveis de governação? um
Poder tomado por ignorantes não é poder, voltará a ser algo de irrisório e de
grande fragilidade.
Nesta peça de grande apelo ao
combate à ignorância, para vencer a
Ditadura e a sua opressão dos povos, Brecht deixa no fim a lição da Esperança.
É a Mãe que fala, mas podiam
ser Todos...
" Quem ainda vive não diga nunca.
O que é seguro não está seguro,
tal como está, não vai ficar.
Depois dos opressores falarem,
vão falar os oprimidos.
Quem se atreve a dizer: nunca!
Se a opressão continuar, a quem se deve? A NÓS!
E se fôr esmagada, a quem se deve? A NÓS!
Quem foi atirado ao chão, que se levante,
quem se acha perdido, lute,
quem vai parar no estado em que está,
na situação em que se encontra?
Porque os vencidos de hoje vencerão amanhã
e o nunca tornar-se-á agora!"
Passou o nazismo, passou , em
parte, o comunismo soviético, caiu o
Muro de Berlin, na Europa quem não se deixou vencer por nenhum dos poderes
ajudou a criar um espaço de liberdade democrática de que todos deviam poder
beneficiar: mas nunca a obra estará completa, sem a participação de todos nesse
ideal comum.
Vida de Galileu foi a última
peça que traduzi, e que a dada altura foi apresentada por Carlos Avillez, no
teatro de Cascais.
No trabalho com os actores, o
encenador gostava de aprofundar, pondo à discussão de todos, a ideia central ,
a "lição" de um texto que retomava para o actualizar, momentos da
vida de um cientista como Galileu, matemático e astrónomo do século XVI que,
para escapar ao fogo da Inquisição, teve de renegar a sua doutrina, no entanto
bem verdadeira: de que era a terra que
girava à volta do sol, com o conjunto dos outros planetas e não contrário,
como na doutrina de Ptolomeu (de que Camões em O Lusíadas ainda nos faz eco). Ficou para a história a célebre
frase, à saída do seu Julgamento: eppur si
muove...e no entanto move-se...
Ora bem, na vida deste génio
de todos os tempos, de que Brecht se apropria para escrever a sua peça, há uma
dupla dimensão, que ultrapassa de verdade a simples crítica a uma Igreja
autoritária, dominando escolas de pensamento e comportamentos autorizados ou não
e de imediato punidos, se necessário com as temíveis fogueiras de que temos
conhecimento, também em Portugal.
A crítica está na peça.
Mas há algo mais: a dada
altura a referência à enorme cultura de um dos cardeais, que desejaria proteger
Galileu - se tal fosse possível; por essa personagem se alude à cultura
científica e não apenas teológica ou doutrinal, dos ocupantes do Vaticano.
E há algo ainda mais
importante, no desenho do carácter do cientista herói, que é Galileu: a questão
de decidir, à última hora: vai trair o seu conhecimento, a sua certeza,
mentindo, por cobardia? Ou vai entregar-se à defesa dos seus argumentos (que um
dos cardeais bem sabia que estavam certos) e acabar ardendo numa fogueira?A
mentira, cedendo, acabará por ter justificação: se ele morresse o seu precioso
manuscrito se perderia de certeza; ficando vivo, poderia divulgá-lo em segredo,
como acabará por fazer, pela mão de um antigo discípulo.
Por outras palavras: os fins
justificam os meios ?
E sempre?
É magistral o modo como
Brecht, na sua contraposição dialética, nos coloca o problema.
A nós, à nossa consciência, a
reflexão sobre um tema que foi tão candente no tempo do dramaturgo: como agir
perante a tomada do Poder por Hitler, a guerra que se seguiu, a violência dos
SS e a perseguição aos judeus, todo o horror do Holocausto e todas as
conivências, nos países invadidos.
Vida de Galileu
é escrita entre 1937-38 e apresentada em 1943. Pensei, ao ler esta peça, que
Brecht colocou nela a sua própria avaliação moral de escolhas que tinha feito,
ao aderir ao partido comunista, na RDA, para onde tinha ido viver, ao escolher
Berlin-Este, uma capital que o comunismo dividira. Ele não ignorava o primeiro
pacto germano-soviético, celebrado entre Hitler e Stalin...quando se tratava
apenas de invadir a Polónia...não ignorava os massacres que também os
soviéticos faziam, enquanto os comunistas pactuavam e ficavam calados.
O destino tem coisas
estranhas: é durante os ensaios desta peça (que os críticos consideram, o
"testamento" de Brecht) no Berliner
Ensemble, a sua sala de teatro, que ele se sente mal e vem a falecer, já em
1956.
Segue no texto, e no palco, o
modelo da sua pedagogia própria: antes de cada acto um poema ou reflexão em
prosa, que funciona de várias maneiras possíveis: voz off, coro, projecção em
painel, as possibilidades são várias; e
temos a dada altura, como interlúdio jocoso uma cantoria pelo povo, à base dos
panfletos que correram, à época, clamando que Galileu tinha morto a Igreja; mas
o que interessa é que por esse meio situa e enquadra, o que se vai seguir, e a
atenção que pede ao público, para que não se disperse.
Galileu é por um lado
abordado como figura trágica, sábio e cobarde, por se ter assustado tanto
diante da Inquisição, quando lhe mostram os instrumentos de tortura. Mas a
preciação do seu comportamneo ainda hoje abre a discussão sobre o que ele
deverai ter feito: morrer, pois seria certa a sua morte? ou abdicar da doutrina
que sabia ser verdadeira?
Curiosamente é o seu antigo
discípulo, Andrea, que ao visitá-lo antes de partir para a Holanda, e ao
descobrir que Galileu continuou a escrever os seus Discorsi, expondo a nova doutrina, que subitamente justifica a
abjuração e lhe perdoa:
"o senhor escondeu a verdade. Do inimigo.
Também no campo da ética tinha séculos de avanço sobre nós" (p.191,
Portugália Ed. 1970 ).
Segue-se um diálogo entre
ambos em que Brecht, com mestria, nos deixa a nós a questão de saber o que vale
mais no nosso comportamento, se a cedência a outros valores, sejam da fé, ou do
conhecimento ( ou da política....) vale mais do que a honestidade moral em
verdadeira consciência e defesa da verdade em que se acredita.
Ainda hoje é actual esta
discussão, FÉ vs. RAZÃO que tendo início no século XVI, com o Humanismo e o
Renascimento, ainda continua...
Mas para concluir, com
Brecht: na cena 13 (pp.169-175), descreve-se como em 22 de Junho de 1633,
perante a Inquisição, Galileu renega a sua doutrina do movimento da terra,
enquanto os seus discípulos aguardam notícias. O Papa era uma última esperança,
pois tinha sido seu amigo outrora, enquanto Cardeal Barberini. Mas em nova
posição, de grande responsabilidade, talvez já não possa defendê-lo. O
discípulo que virá a ser, no fim, o mensageiro que leva os Discursos para o resto do mundo, Andrea, exclama para os
companheiros:
"...Ele nunca se
retractará! Quem não sabe a verdade é só um idiota. Mas quem a sabe e diz que
ela é mentira, esse é um criminoso" (p.170).
Ora aqui está, nesta
exclamação, tudo o que pode abalar uma consciência...
Adiante vem pela voz do
Arauto a proclamação pública da renúncia de Galileu (p.175):
Voz Do Arauto
Eu, Galileu Galilei, professor de matemática e de
física em Florença, renego tudo o que ensinei, que o Sol é o centro do mundo, e
se mantém imóvel no sue lugar, e que a Terra não é o centro, e move-se. Renego,
condeno e amaldiçoo de todo o coração e fé sincera todos estes erros e
heresias, bem como quaisquer outros erros e opiniões a que a Santa Igreja se
oponha.
Andrea, o discípulo dilecto
comenta: " Infeliz a terra que não tem heróis!"
De 1633 a 1642 Galileu viverá
perto de Florença, prisioneiro da Inquisição, até morrer.
Na cena 14 Andrea arranjará
maneira de perdoar ao sábio, justificando a sua cedência ao Poder com a ideia
de que assim continuou o seu trabalho, acabando a exposição da doutrina que
agora poderá ser levada a todo o mundo.
Mas Galileu simplesmente lhe
diz, não foi um plano, nesse sentido. Foi medo: "Abjurei porque tive medo
da dôr física" (p.193). E depois de um longo monólogo de autocrítica:
" Atraiçoei a minha
profissão. Um homem que faz o que eu fiz não pode ser tolerado nas fileiras da
ciência"(p.197).
Eis então a verdadeira
reflexão que o autor, em fim de vida, nos propõe:
Qual o valor da Ciência e do
Conhecimento, face a uma sociedade limitada e oprimida por grande iliteracia,
que os Poderes públicos exploram, sejam eles religiosos ou laicos?
E qual o valor da Ética, e do
comportamento condizente com ela, entendida como fidelidade aos valores em que
se acredita (neste caso o da verdade científica, mas que podíamos alargar ao
valor da Liberdade de Pensamento e de Expressão, da Igualdade e da
Fraternidade, os ideais de um século XVIII de Lessing e de Goethe, da Razão
Iluminada, do desejado entendimento entre as grandes Religiões do Livro, tudo
ao mesmo tempo tão distante e tão actual) ?
Qual a Regra, qual a
Excepção, - recuperando a primeira das suas peças didácticas, com que
começámos?
E por aqui me fico, nesta evocação da sua morte...
Brecht morreu Brecht continua vivo!
Y.K.Centeno
Lisboa 2016
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