Herberto Helder, A Morte sem Mestre, para Leonardo Chioda
1
Publicado em 2014, um ano
antes da sua morte, com a indicação do editor de que se tratava de um conjunto
de poemas inéditos, a seguir incluídos na nova edição da Obra Completa, penso
que mesmo assim, e porque um poeta escreve ao longo da sua vida sempre o mesmo,
interminável poema...(o próprio Herberto era o que fazia, ao emendar e emendar
poemas acabados de editar, emendas à mão, nos livros enviados a este ou aquele
amigo...) mesmo assim, digo, entendo que para nos ocuparmos destes últimos
poemas vale a pena ler os primeiros, ver o que ficou de uns para outros, ao
longo dos anos que foram passando. Fiz esta experiência com Paul Celan, quando
saiu a edição crítica dos primeiros poemas - e neles encontrei o embrião do que
viriam a ser temas centrais da sua futura escrita poética.
O mesmo fiz com Pessoa, da
poesia juvenil, todo um núcleo de preocupações se mantiveram ao longo da vida,
dispersas pelos heterónimos, e sobretudo por Pessoa ele mesmo.
Um poeta como Herberto
Helder, viajado, lido, a par do que se fazia no seu tempo, leu certamente Paul
Celan e pode estar aqui a chave do título que deu a esta Morte sem Mestre:
Celan falara do negro Mestre da Morte, ainda que em situação bem diferente.
A Morte de que falará Helder
é a sua, a de um poeta que envelheceu, sofre com a perda de um corpo que foi
amado e amante, sofre com o que mais receia, a perda dos seus grandes mitos,
travessias de palavras luminosas, rosas ferindo a carne com os seus temíveis espinhos,
um feminino riso, sangrando e já eterno sobre uma campa vazia. Banalizada,
vandalizada, a palavra, num Verbo, numa voz que definhou: é essa a morte que
espreita, que aguarda, e de Mestre nada tem. Não é preciso Mestre para
morrer...é condenação natural, ainda que a sintamos como violência contra
natura.
Não é Manifestação divina,
ainda que negra, de tão ausente e temida
- como a de Paul Celan.
É um palhaço risível, em que
não se acredita, e se desbunda sobre um corpo já meio decomposto.
Da Colher na Boca , de imagens torrenciais, em que rosas e sangue se
misturam e tudo parece rio, um enorme rio de memórias vividas, até à secura de
um deserto que é sentido na boca, a boca que já quase não se abre, e não dirá
nem mais uma palavra.
Valerá a pena recordar, de
passagem, o percurso de Herberto Helder, pelas letras que amou, com os
surrealistas, a escrita automática, a poesia experimental, o futurismo
combinatório da sua electrónico-lírica:tudo ampliado na química do seu
imaginário.
Em a Electrònicolírica (Guimarães Editores, 1964), conjunto de poemas
dedicados a António Aragão e António Ramos Rosa, seus primeiros leitores, é
ainda a experimentação, o ritmo, o som do que vai correndo pela mão que
escreve, que mais nos surpreende.
E a seguir o exercício combinatório
a que se refere na nota final do livro, em que nos remete para a experiência,
feita em 1961 em Milão, de Nanni Balestrini:
"O autor destes
poemas", diz Herberto, "aproveitou da referida experiência o
princípio combinatório geral nele implícito.
Assim, utilizando um limitado
número de expressões e palavras mestras, promoveu a sua transferência ao longo
de cada poema, sem no entanto se cingir a qualquer regra. Sempre que lhe
apeteceu, recusou os núcleos vocabulares iniciais e introduziu outros novos, que
passavam a combinar-se com os primeiros ou simplesmente entre si.
Devido ao uso de restrito
número de palavras, as composições vinham a assemelhar-se, nesse aspecto, a
certos textos mágicos primitivos, a certa poesia popular, a certo lirismo
medieval. A aplicação obssessiva dos mesmos vocábulos gerava uma linguagem
encantatória, espécie de fórmula ritual mágica, de que o refrão popular é um
vestígio e de que é vestígio também o paralelismo medieval, exemplificável com
as cantigas dos cancioneiros.
O princípio combinatório é,
na verdade, a base linguística da criação poética" (p.49-50).
Para além da cultura literária de que Herberto
Helder faz prova (mas nunca um grande poeta poderia não ser culto...e nos anos
sessenta a cultura que íamos buscar e absorver em todo o lado era também um
gesto de ruptura, uma libertação, o afrontamento à opressão cultural da
Ditadura...) o mais interessante é o seu modo de se apropriar de experiências e
modelos outros, de os assimilar, de os fundir numa linguagem que é a sua, e em
que a manifestação do inconsciente é ela mesma "princípio
combinatório"...
Em O CORPO O LUXO
A OBRA, editado pela e ETC. em 1978, com a indicação de que se trata de
um folheto, para nos surpreender bastaria a contraposição das imagens arrancadas
por vezes brutalmente a uma linguagem que parece que nos surge do Nada, da
Vazio, do Abismo que só Deus poderia conter:
E é cruel
surpreender
a inocência
frenética, a taciturna doçura
com que
devora:
às vezes
a força dos
rostos que tem contra Deus.
Assim:
o nervo que
entrelaça a carne toda,
de estrela a
estrela da obra.
(p. 18-19)
Carne e estrela, matéria e
espírito, no caos que o poeta sabe ordenar em cosmos.
E de novo, na nota final, nos
deixa a indicação de que ali se tratou, nessa sua escrita mágica só
aparentemente casual, de um "ouro natural e vivo", do erguer de uma
árvore cujas raizes estão plantadas no alto, a Árvore da Vida que a todos
alimenta.
Diz ainda: "A
transmutação é o fundamento geral e universal do mundo. Alcança as coisas, os
animais e o homem com o seu corpo e a sua linguagem. Trabalhar na transmutação,
na transformação, na metamorfose, é obra própria nossa" .
Um alquimista não diria
melhor. E Herberto não esconde o seu saber, neste caso bebido na Tábua de Esmeralda de Hermes
Trismegisto.
E acrescenta, já na
elaboração do que entende ser o domínio do simbólico:
" No âmbito das funções
e valores simbólicos, o poema é o corpo da transmutação, a árvore do ouro, vida
transformada: a obra. O poema faz-se com o corpo, no corpo, de baixo até cima,
sagitariamente. Ou num ininterrupto circuito zodiacal".
Nós somos a carne de Deus, o
corpo em que Ele se reconhece, adquire consciência mais clara de Si Mesmo, como
se descobre no Antigo Testamento, nos tormentos de Job. Do mesmo modo é carne
do poeta o seu poema, é o seu corpo transmutado em linguagem, o dizer de um
Verbo que também se deseja re-conhecer, redescoberto ainda que em sofrimento,
em parte da Eternidade.
Em Servidões, agora antecedendo a Morte
sem Mestre na edição dos Poemas Completos, de que me sirvo, já a Morte está
muito presente (para não dizer sempre) e Herberto nos deixa, a seu modo,
subtilmente erudito, um Testamento evocador da Ballade des Pendus, de Villon, que este grande poeta do século XV,
considerado o fundador da moderna poesia francesa, terá escrito quando foi
condenado à morte por enforcamento, em 1463. Amnistiado, não morrerá. Com o
título de l'Épitaphe Villon (na
edição completa da Obra), é a XIV do conjunto das célebres baladas, muitas
vezes chamada de Balada dos Enforcados.
Frères
humains qui après nous vivez,
N'ayez les coeurs contre nous endurcis,
Car, si pitié de nous pauvres avez,
Dieu en aura plus tôt de vous mercis.
....
É dela que Herberto Helder
retoma o lamento, e o apelo que, a seu modo, é agreste e mesmo sem perdão (não
haverá perdão para velhice e morte...):
irmãos humanos que depois de mim vivereis,
eu que fui obrigado a viver dobrados os oitenta,
fazei por acabar mais cedo vossos trabalhos cegos,
porque nestas idades já não nunca,
nem leituras embrumadas,
nem crenças, nem política das formas, nem poemas
nofuturo,
nem
visitas extraterrestres de mulheres,
exorbitantemente
nuas, cruas, sexuais, luminosas,
só v~e-las um pouco, sim, mas vê-las também cansa,
é como trabalhar: stanca,
lavorare stanca,
....
livros, je les ai lus tous, e como de costume a carne
é insondável,
estou mais pobre do que ao começo,
....
irmãos futuros do génio de Villon, e do meu género
baixo,
não peçopiedade, apenas peço:
não me esqueçais só a mim, esquecei a geração inteira,
inclitamente vergonhosa,
que em testamento vos deixou esta montanha de merda:
o mundo como vontade e representação que afinal é como
era,
como há-de ser: alta,
alta montanha de merda,-trepai por ela acima até à
vertigem,
merda eminentíssima:
daqui se vêem os mistérios, os mesteres, os
ministérios,
cada qual obrando a sua própria magia:
merda que melhor há-de medrar na memória do mundo
(p.688-89)
Terminar com mais uma
referência, Schopenhaeur e a sua obra mais marcante, não é acaso, é de novo
amarga desilusão.Não há "milagres da rosa " na velhice, no
desapontamento perante a vida e sua circunstância, e ainda menos no antecipado
já torpor da morte.
Villon ainda tem o remorso, o
perdão que deseja.
Herberto não quer perdão, nem
para si nem para mais ninguém.
O crime é viver demais.
2
TodesFuge /Fuga da Morte
Este é talvez o mais célebre
dos poemas de Paul Celan, publicado em 1948, e carregado ainda de todo o horror
que conheceu nos campos de concentração de que acabou por ser libertado, em
1945, no fim da guerra, mas de cuja memória nunca se libertou. Não é por acaso
que um dos primeiros e mais belos ciclos de poemas se chama precisamente Papoila e Memória.
O vermelho do sangue, a
memória do tempo.
A poesia de Celan ganha em
ser lida, como observa João Barrento no prefácio à nossa tradução de Sete Rosas Mais Tarde, "à luz das
muitas traduções de poetas que fez desde que se instalou em Paris"
(p.XXXIII). Mas sem que isso impeça o confronto com a sua própria prática
poética, o seu trabalhar numa língua que adopta como sua, não o sendo de
verdade, pois é a língua do inimigo. Quem sabe se por isso mesmo lhe ganha uma
proximidade que é ao mesmo tempo distância e sofrimento, interrogação
permanente. Barrento cita outros poetas tradutores, como no caso português
Jorge de Sena ou Herberto Helder (ibid.)
para sublinhar que a poesia de quem traduz poetas adquire uma marca peculiar. O
que o leva a citar a frase de Celan: "Sou tu quando sou eu", ou seja,
quanto mais fiel a si mesmo, na descoberta e tradução do outro, mais perto do
outro estará, na fidelidade desejada. E o inverso também será verdade...
Inserido no meio artístico da
época (casou com Gisèlle l'Estrange, artista plástica) conheceu e conviveu com
poetas como René Char, a quem dedica um poema, Henri Michaux, Cocteau, Picasso,
Valéry, Supervielle, traduziu ainda Pessoa, Shakespeare e Rimbaud, para citar
apenas estes.
Há vestígios, na sua poesia,
de um gosto de escrita livre, de tons surrealistas, mas em que o discurso do
sonho é abafado por negros pesadelos.
Para estabelecer alguma
ligação, ainda que incipiente, à obra de Herberto Helder, A Morte sem Mestre, teríamos que recuperar do seu poema da Fuga da Morte os elementos de
circularidade e repetição alternada que Herberto também escolhe para a sua Electrònicolírica.
A magia, o mistério, resultam
da repetição encantatória do verso que abre com o "leite negro da
madrugada" no seguimento da narrativa que nos descreve um homem que numa
casa brinca com serpentes e escreve ao anoitecer para a Alemanha...
O leite negro é bebido a toda
a hora, numa repetição cadenciada e sem limites, os restantes versos vão sendo
alternados, de forma aleatória (mas só em aparência) transportando o mesmo
funéreo sentido de uma dança da Morte, sendo que a Morte é o Mestre (em alemão
o substantivo é masculino) e ali se comanda um destino a que ninguém pode
fugir.
De cabelos de oiro ou de
cabelos de cinza, ali o rosto feminino de Deus, o da Misericórdia, está
ausente.
Vejamos uma parte do poema,
em que Celan, com negra ironia, toma para si a Arte da Fuga, que Bach elevou
até um inexcedível requinte musical:
Fuga da Morte
Leite negro da madrugada
bebemo-lo ao entardecer
bebemo-lo ao meio-dia e pela
manhã bebemo-lo de noite
bebemos e bebemos
cavamos um túmulo nos ares aí
não ficamos apertados
Na casa vive um homem que
brinca com serpentes escreve
escreve ao anoitecer para a
Alemanha os teus cabelos de oiro Margarete
escreve e põe-se à porta da
casa e as estrelas brilham
assobia e vêm os seus cães
assobia e saem os seus judeus
manda abrir uma vala na terra
ordena-nos agora toquem para
começar a dança
Leite negro da madrugada
bebemos-te de noite
bebemos-te pela manhã e ao
meio-dia bebemos-te ao entardecer
bebemos e bebemos
Na casa vive um homem que
brinca com serpentes escreve
escreve ao anooitecer para a
Alemanha os teus cabelo de oiro Margarete
Os teus cabelos de cinza
Sulamith cavamos um túmulo nos ares
aí não ficamos apertados
Ele grita cavem mais fundo no
reino da terra vocês aí e vocês outros
cantem e toquem....
(p.15-19)
Adiante se descrevem os olhos
azuis do homem, e se repetem em cadência que amplia ainda mais o horror, os
versos do leite negro que se bebe a toda a hora, dos cães que são atiçados para
matar, das balas de chumbo certeiro, das serpentes com que o homem brinca, e
dos cabelos, uns de oiro, outros de cinza, no sonho da morte que é um mestre
que veio da Alemanha...
Adorno, que escrevera que
depois do Holocausto nunca mais se poderia escrever poesia, lendo Celan
percebeu que se podia, e devia: cada verso um dedo apontado, cada verso uma
acusação fatal, um grito que ninguém mais sufocaria.
3
Herberto Helder, da nossa
tradição nacional, conheceu vários Mestres: Cesário Verde, um deles, nas
palavras de Fernando Pessoa ( o olhar coloquial sobre o mundo, sobre o
quotidiano rural ou citadino) e Alberto Caeiro, assim definido como heterónimo
iniciador pelo próprio Pesoa, fosse a sério ou a brincar, ao gosto modernista,
sensacionista.
O Mestre, em Pessoa, é o
resumo de todo um sistema poético e não uma figuração concreta e objectiva de
um tenebroso Mal, no limite do impossível dizer, como em Celan.
Já em Herberto Helder surge um outro discurso, o do
corpo, o da carne (que em Pessoa e Cia. não existe) que, mesmo transfigurada no
dizer dos poemas, não lhe trará afinal nenhuma redenção. E Herberto, com raiva,
queixa-se disso, como se a eternidade sem decadência do corpo a ele lhe fosse
devida...
É triste morrer velho, morrer
de tanta velhice, mal vivida, e com plena consciência da fronteira inevitável
que é forçado a transpôr.
O Homem é o que é: um simples
ser sofrido, carne martirizada, a Morte não é seu Mestre, é o seu ponto final,
nele, que fora exemplo perfeito de Obra Aberta, quando primeiro se rasgou o
clarão de uma escrita poética incontornável e incontida.
Neste último texto, A Morte sem Mestre, escrito com a revolta
da antecipação da efemeridade humana, presente e sua, não dos outros, não
poética (essa ele sabe que será como a de Pessoa bem mais duradoura, um porque
se desdobrou em tanto pensamento e tantas vozes, outro, ele, porque não houve palavra que não tentasse devorar, carnívoro e
violento como se foi tornando, centrípeto em cada verso tomado de assalto, em
cada corpo, juvenil ou maduro, atirado para
o ponto mais excêntrico de si mesmo.
Todo o poeta é egoísta, pois
é em cada momento o centro mais negro de si mesmo, o Abismo de que falaram os
místicos e também para eles foi um Negro abismal, opaco, sem esperança
-enquanto durou.
Mestres de Herberto foram
nesta última fase os anárquicos como o Luiz Pacheco de Comunidade, AntónioAragão, Alberto Pimenta (o do Discurso do Filho da Puta) Silva Tavares
amigo e editor de vários deles.
Mestres da revolta, e do
prazer bebido em excesso (mas pode haver excesso no prazer destes revoltados,
ainda assim poetas? ) escreviam no quotidiano, nos bairros e nas tascas de Lisboa,
ali perto do Chiado.
Encontros à mesa, bebendo e discutindo
projectos literários. Interpelando burgueses, o seu poder bacoco presente na
Política, tanto como em poetas que consideravam de há muito ultrapassados,
românticos, simbolistas, de obra já lida e relida.
Poderíamos acrescentar, quem
sabe, ainda como Mestre um Cesariny, também ele poeta do corpo, que fez da arte
surrealista algo de mais humano, não escondendo o desejo, sua fonte, sua fome.
Mas regressando aos poemas de Herberto: alguma
coisa me faz regressar a Os Passos em
Volta e à Apresentação do Rosto,
seus textos ao mesmo tempo tão antigos e tão
presentes, nesta última evocação (provocação) poética:
"folhas soltas, cadernos, livros, montões
inexplicáveis, e cada vez
que lhes toco fica tudo mais
caótico e não descubro nada,
às vezes procuro apenas uma
palavra que algures na desordem
estava certa,
nos âmagos e umbigos da alma:
brilhava...." (p. 751).
Do quotidiano desarrumado,
como a vida, ao brilho da palavra certa, que adiante é descrita como relâmpago,
que assombra.
E segue-se um contínuo de
"quases....", todos de revelação possível, matéria-prima da
transmutação, para regressar de novo a desordem primeira, o caos de livros,
folhas soltas, cadernos, etc. e a consciência da morte, da sua banalidade, pois
para morrer não é preciso Mestre, morre-se, simplesmente, pensando que está tão
cara a bilha de gás...a ideia do gás da morte puxa, neste último poema, datado
de 2013 (que pena os outros não terem data) a imagem dos campos de concentração
onde o gás abundava, era barato, como a vida de quem iria morrer e pro aqui
tenta ir o poeta, não como o Paul Celan que tinha lido, mas como o português
daqui, já meio enfastiado consigo e com o mundo:
"tão cara, Deus meu, que está a morte,
porque já me não fiam nada
onde comprava tudo,
mesmo coisas rápidas,
se eu fosse judeu e se com um
pouco de jeito isto
por aqui acabasse nazi,
já seria mais fácil,..."
(p.752).
Ironia perdida em exercício
culto, pois em nada se comparam as mortes a que Celan assistiu e a descrição
amarga deste poeta velho, e pior ainda mal envelhecido que não se revê senão
num burro velho:
" a burro velho dê-se-lhe uma pouca de palha velha
e uma pouca de água turva,
e como fica jovem de repente
durante cinco minutos!"
(p.741)
Durante
quase os mesmo minutos, corre a mão em tumulto por leituras e evocações que já
conhecíamos de outros poemas, memórias desordenadas que levam ao verso final:
" estou praticamente morto, mas todo vosso:
nenhures é o meu pouso.
esta é a minha elegia.
A Elegia de um Burro "
(p.744)
Um burro nada inocente, como
não foi inocente a referência, banalizando a morte, a um Celan desaparecido.
Herberto Helder conhece os
seus autores, e reconhece agora o seu
destino, passar, como todos passam...
E o burro, que ali nos versos
se esconde, podia ser o de Apuleio, O
Burro de Ouro, o iniciado que pelos cultos de Isis, suas rosas
( houve tantas e tantas rosas, no corpo dos
poemas de Herberto) atinge uma sublimação que nem sempre se alcança.
Herberto escreve um lamento,
é a sua Elegia, não é um Cântico (como os de Orfeu), ainda que último.
E contudo ele já tinha
adivinhado antes que o importante era
"encerrar-me
todo num poema,
não em língua plana mas em
língua plena"
(p.749)
Y.K.C.
Lisboa, 2016
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