O que há de tão necessário, de tão vital, nas palavras ditas, para se entender que, ainda que a meia-voz, o dizer das palavras é sempre redenção ? E sempre afirmação de resistência em conformidade ou não com o decurso da vida?
Para quem as articula, diz ou escreve, para quem as ouve, ou lê e pode, ao repetir, sentir que vive e a sua vida, ainda que breve, é uma vida plena? Entre os poetas há os que morrem cedo, há os que morrem tarde, há os que nunca morrem...
Empobrecemos, se nos faltam as palavras, definhamos até que o mundo à nossa volta perca sentido de vez.
A um poeta, subtrair a palavra é como tirar-lhe o pão, a água, fazê-lo morrer à míngua.
E aqui temos o poeta das palavras, ora gritadas ora ditas a meia-voz, num discurso todo ele de interpelação, de espanto ou interrogação, ALBERTO PIMENTA, o resistente, o que nunca deixou que a voz lhe fosse abafada, com um novo livro:
NOVE FABULO, o MEA VOX. DE NOVO FALO, A MEIA VOZ.
ed. pianola 12, 2016
E já à venda.
São mais de uma centena de páginas de longos poemas, ao mesmo tempo subtis e tão certeiros, nos motivos que escolhem, e que à nossa e às novas geração tanto têm a dizer. Em primeiro lugar que a sabedoria cabe toda num verso, como cabe num grito, num tropeção, num último esforço que se faça.
A poesia é esforço e é desforço.
Da vida que passa, num tempo que não cessa, o tempo, esse grande interlocutor (oculto, mas sempre a formar-se e deformar-nos, o tempo que não se cala, e que vemos passar).
ANTELOGIUM
Em ti vejo o tempo
continuamente formar-se
e em mim
vejo-o passar.
Quando me dás do teu tempo
dás-me um pouco de mim:
o meu detém-se
....
Como forma
que o tempo ainda forma
e dá forma ao tempo
conheço-te a ti agora
no declínio da minha vida.
Não sei que forças
te trouxeram até mim,
onde vês
o que em ti continua a nascer
em mim morrer
sem esperança.
....
Segue o poema, numa tão explícita declaração de amor, um amor feito de tempo, o tempo que se dá ao outro, que dele viverá, enquanto os deuses assim o consentirem... que só resta ao leitor continuar a ler, em voz baixa, com respeito, pois que todos nós passaremos por esse anunciado tempo que chegará :"
Como sempre,
tudo chegará
na ocasião de chegar.
Sem dúvida
tudo chegará:
o tempo
que em ti há-de continuar
a formar-se,
que em mim
irrevogavelmente,
está a acabar.
(p.10)
A lentidão do discurso, respirando entre uma e outra linha, pode ser de algum cansaço, mas resulta também da reflexão que o tempo fez amadurecer, como acontece ao fruto que na poesia de Goethe amadurece, essa é a reflexão que a todos nós alimenta:
do pulsar da vida, que no tempo dado por outros ao poeta lhe é dado e também a nós é dado, pelo poema, aqui nesta meia voz que tudo desperta, nos sentidos, e no desejo de um corpo e de uma alma de momentos maiores.
Falei em delicada e comovente declaração de amor: a alguém que deu do seu tempo, e é feito de tempo o amor aceite e concedido.
Mas há sempre mais do que um primeiro movimento, na poesia de Alberto Pimenta.
Leio desde sempre as suas obras, recordo, das que vi, as suas performances de revolta e humor subtil, tão erudito que por vezes agride, acertando em cheio na nossa silenciosa cobardia, na nossa ignorância também, que vem de longe.
Nesta obra temos de tudo, como num balanço de vida: foi longa, foi boa nos excessos e nas delicadezas, e assim continuará, pois a voz deste poeta não emudece a menos que o amordacem, e esse tempo passou. Contudo, é do tempo que ele deseja falar. Um tempo que move e se move no universo, como em PERCEBO, onde lemos claramente " digo que o tempo foge, / mas está sempre presente:
esse é o resumo"(p.11)
O tempo move-se, é por certo ele que curva o universo e a nossa vida, que desejaríamos perene, é ele o tempo da fuga :
"'move-se através do universo,
nenhum mortal o vê, mas ele vê-os a todos.'"
É de um hino órfico." (p.12)
De Alberto Pimenta como não evocar a sua enorme cultura, a sua erudição, parte da sua substância mais secreta, mais íntima, e que nos devolve ao mistério que a ele o alimenta, como eterno estudioso que é do universo, do homem, e do ser eterno no tempo?
Leu Heidegger, como leu os clássicos.
Devorador de sapiências alheias distribui, generoso, a sua, que é feita de carne e osso, a apetência de vida que nunca renegou. Desejo não é pecado...
Em MISTERIOSO o discurso poético vai embalado numa irreverência quase surrealista, Dali não passa neste poema por acaso, de mistura com ovos que estão a ser chocados, e com o livro de Bataille que partilha o mesmo lugar na estante e cuja referência lhe provoca" uma levíssima e gostosa erecção/ como há muito não sentia" (p.21).
O corpo vive, onde vive a palavra, onde vive a memória, do passado e do presente , que são barreiras do tempo.
De cada poema faz Alberto Pimenta matéria de reflexão: olhar o mundo, dialogar pelo meio com o alter-ego de CARTOON, ou com a crise do desemprego, em QUEM? numa voz que se declara irónica, e até mesmo cruel, se lhe surge a suspeita de algum destino imposto.
Em ESPELHO NOSSO? todos, ou pelo menos, muitos de nós, da mesma geração, em fase terminal, ainda que vivos sabemos bem que nos querem de preferência mortos, ou pelo menos mal enterrados - como na conhecida anedota - todos, dizia eu, nos podemos ver ao espelho e não reconhecer o rosto que nos é devolvido:
"olho para o espelho / e sai de lá a cara doutro..."(p.33)
Alberto exprime o que o tempo nos fez: eu vejo de manhã ao espelho, com espanto, a cara da minha mãe, por vezes da minha avó. Não me dá medo,ao contrário do que ele diz, evocando uma cena de Ovídio, nas Metamorfoses, e o espelho de água de Narciso...Porque ele, poeta, transforma no seu verso a realidade crua que na mulher, mais simples, é desgosto de velha a ver-se envelhecer.
Com uma pacatez de riso quase sardónico, salta no verso do espelho para a polícia: é a polícia que mete medo, não o reflexo do espelho:
"O medo que isso faz
já o conheço portanto:
não vem do espelho,
vem da polícia". (p.34)
E de novo desconstrói o poema dialogando com um outro que ajuda a aprofundar a questão.
E a questão é bem simples, como no espelho de Alice, é uma questão de tempo, o tempo dentro do espelho, o tempo da natureza, quando já tudo se fez tarde!
Não cabe neste modesto espaço de um post tudo o que haveria a dizer, e não tenho essa pretensão.
Pelas páginas deste livro passam filósofos, compositores, momentos grandes, momentos de quotidianos só na aparência menores (há que reler mais vezes) mas desejo terminar deixando ao leitor uma outra faceta ( obra-prima) deste poeta bem amado, em FOLIA.
A Canção Ébria, de Nietzsche que ele oferece na sua tradução, como prenda de algum aniversário de que se terá esquecido:
Ó homem! Pensa!
Que diz a meia-noite imensa?
Eu dormia, dormia...
Despertei dum sonho que me tinha suspenso:
O mundo é profundo,
Mais que o dia pensa.
A sua dôr é imensa...
O prazer...mais que a dôr ainda.
Diz a Dôr: desaparece!
Mas o prazer quer eternidade...
...Quer funda, funda, eternidade.
(p.72)
Alberto Pimenta, com Nietzsche, nunca falou tão alto!
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