Num dia de chuva, recebo de mão amiga um livro de capa azul, imagem de praia com ondas a rebentar junto a um farol que se ergue num rochedo.
Duas pessoas, uma de pé, frente ao mar, outra, mais jovem, sentada nos calhaus da praia, completam o quadro.
Serão já elas evocações do que vem no título? Frederico a que está de pé, Luísa ou a sua figuração, a que está sentada?
O que se espera dum livro?Eu gosto desde logo de reparar no papel, na letra, no cuidado gráfico, e depois abro ao acaso, antes de começar a ler.
Tem o seu quê de diário, de roteiro de emoções, ainda que ficcionadas.
Temos de início um homem, será Frederico, discutindo com o mar.
É um pescador que andou ao atum, a prosa minuciosa, detalhada, da autora, situa-nos de imediato num Algarve antigo, que ela refere como dos anos 50, e em que reconheço muito do que eu mesma cheguei a conhecer, na Tavira da minha avó Rosa, dos meus tios, do meu pai.
Um Algarve de mar batido quando se saía da barra de Tavira, a emoção da pesca do atum, as armações, a actividade das fábricas de conservas.
A autora nasceu em Vila-Real de Santo António por onde, quando eu era criança também passei , e tal como ela descreve fiz a viagem que se impunha de ir comer gelados a Ayamonte.
Algarve antigo que revejo na minúcia realista da sua prosa, dos seus personagens atravessados uns nos outros, não se ficando a saber muito bem o que ficou, para lá da evocação, duma saudade, ou mesmo de alguma perda sofrida, e que nesta evocação se exprime.
O homem que discutia ou não com o mar, também de seguida vai ao pinhal buscar pinhas, e a imagem que eu recupero para mim é a do pinhal de Monte-Gordo, onde íamos procurar camaleões...
Mas se eu devaneio, ao ler, a autora não se perde no fio da sua prosa, de grande pendor poético, sem perder o realismo do detalhe a que nos prende.
Frederico é um homem já velho, ou envelhecido pelas labutas da vida. Vamos segui-lo páginas adiante, depois de uma passagem em que se evoca um amor perdido, e um conjunto de reflexões que se atravessam na narrativa de modo a desconstruir o "género" que poderíamos julgar ser como de novela ou como um conto mais longo.
Mas será sem dúvida de novela, ou melhor, de novelo em que a alma se desfia devagar através das personagens criadas.
Frederico já anda por ali, que outros virão ainda, além da "Lália" já gritada numa voz de grande saudade?
Se a prosa da autora é realista, como já disse, minuciosa, detalhada, e de fôlego poético, a estrutura desta ficção já não pode ser definida em modo de branco e negro. A liberdade da mão fez do livro um livro post-modernista, em que a escrita segue movimentos imprevisíveis, da narração ampliada à reflexão filosofante em que a autora se vai dando a conhecer, por leituras que indica, por respostas que dá a várias interrogações, como notas diarísticas à margem do que foi o projecto aparentemente desenhado.
Em muitas das páginas em que a autora descreveu quotidianos de infância naquele Algarve antigo eu fui parando, e pude com ela rever o meu Algarve antigo - eram o mesmo. Mas só o pude rever porque a qualidade da prosa, tão feita de renda nas evocações escolhidas, se transformava de repente num grande esboço, num quadro vivo e real de uma memória já fantasma.
Afirma por vezes a autora "que vai vestir-se de inocência": mas não é inocente a mão que por ali anda, evocando, desconstruindo, recuperando até falas do quotidiano, de permeio com uma citação de Agustina ou outros pensadores de grande erudição, para que o leitor ora se perca ora se reencontre, porque a autora já deu a entender que não se rala com o que lhe possa acontecer. É ela, a autora, a absoluta tecelã dos fios da narrativa. Por ela, podemos enredar-nos à vontade. Decidiu cultivar o fragmento, como Novalis, outrora...
Cada um na sua vida, no seu atrapalhamento, ou numa claridade reinventada ali, e que não existiu nunca ou existiu mesmo e perdeu-se, como o Algarve antigo se perdeu de si mesmo.
Vale a pena ler?
Agustina certamente diria que sim.
E eu digo o mesmo.
No dia de chuva em que o recebi, este livro foi o meu companheiro, e gostei de saber que o livro queria ser só isso (o que é imenso) um companheiro, em dado momento da vida.
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