Monday, January 18, 2010

malevithc


Podemos seguir o ano com mais um número da Revista CRIATURA cujos editores escolhem para antologiar poetas e poemas variados, nos temas e julgo que nas idades.Há um lugar para os jovens, com os seus primeiros versos ( o Diogo Vaz Pinto que me corrija se estou enganada) e para autores já com obra feita. Bom espaço, boas escolhas - esta é uma qualidade rara que me faz ler a revista com interesse e cuidado.
Claro, como todo o leitor, não sou inocente na leitura, tenho preferências que me fazem voltar a alguns autores que vou acompanhando e conhecendo melhor.
Outros vou descobrindo.
Desta vez, e fazendo sempre jus às vozes femininas, escolho um pequeno poema de Ana Salomé, uma espécie de diário de intenções que me recordam o conselho de Rilke nas Cartas a um Jovem Poeta: se está a começar não escreva poemas de amor...esse amor que julgamos único na realidade torna-se banal pois o amor é de sempre, é de todos, e de início vivido de forma igual. Ora a grande poesia é feita da diferença e não do mesmo que possamos julgar, por ingenuidade, diferente e inovador. Há que ler muito, ler tudo, até chegar à desejada diferença.
DIÁRIO
A partir de agora, todo o poema que fale de amor, fora.
Todo o poema que não revolucione, fora.
Todo o poema que não ensine, fora.
Todo o poema que não salve vidas, fora.
Todo o poema que não se sobreviva, fora.
Vou deixar um anúncio no jornal:
Procura-se poeta. Trespasso-me.
(Ana Salomé, p.13)

Este é um Manifesto que bem podia comparar-se ao de Álvaro de Campos, também ele cultor de uma prática poética que se quis directa e quotidiana, sem resquícios de alguma evocação mais sentimental, ele que disse na altura que todas as cartas de amor eram ridículas...
É muito interessante descobrir nestas novas vozes poéticas uma herança que ali permanece viva, ainda que não explícita, e vai conduzindo o fio da experiência - que hoje em dia é narrada sem qualquer ocultação ou pseudo- timidez.
Tudo mudou na vida, nas opções mais sinceras ou mais de ocasião, cigarros e bebidas de mistura com sexo ora insípido ora mais feliz (passa por aí o Sexo e a Cidade da série conhecida) - tudo atravessa a linguagem poética como atravessa os chats, o face-book, o you tube e é essa trivialidade mesma que nos traz a mudança própria do século, e de que esta nossa poesia se faz eco. Forma, deforma, informa, num modelo que transforma estas vozes em mais do que poesia, documento social.
Poesia documental pois, viva e vivida, citadina, juvenil e jovial, também por vezes um pouco melancólica, como se os poetas soubessem de antemão que alguma vez os poemas terão fim.
Disse citadina: e também muito lisboeta, da Lisboa da moda, dos sítios da noite preferida, como por ex. vemos em David Teles Pereira, de que cito um excerto:
LUX/FRÁGIL
...
Há, claro, esconderijos perfeitos:Cais da Pedra
a Santa Apolónia, Armazém A, Sala 2 com
o rugoso paladar a fumo excessivamente caro.
....De novo o poeta reflecte sobre a necessidade
de imprimir no som o relevo de uma certa
distorção, em sintonia com as músicas
que constantemente ouve. É disso que se trata
no fundo, do poema ser como nenhuma outra música
e mesmo assim nunca ser silencioso.
...
O coração- simplifiquemos com simbologia
a questão- deixou de ser invisível, deixou
de ter o que dizer.

O poeta volta a olhar para a pista,
Já nem sequer sente vontade de escrever.
Só a uma centena de corpos a dançar a mesma
música se assemelha o poema.

Qualquer palavra agora seria escusada.
( D.Teles Pereira, pp.19-20)


Assim nos confrontamos com uma prosa poética, descritiva, (como a poderíamos ler no Livro do Desassossego, com a Rua dos Douradores de Pessoa, o mundo que o poeta vê à sua volta de um modo desprendido, de coração esvaziado ele também).
Neste poema observou-se primeiro uma rapariga que dança, e se torna cada vez menos interessante à medida que o tempo (o poema) corre: porque para o poeta a pulsão reside no poema e é mesmo assim que deve ser. O corpo é o corpo da escrita, a rapariga na noite do LUX é meramente um transitório foco de (des?)inspiração.
Quanto aos espaços, a música ouvida por todos com a tal centena de corpos a dançar - é mais uma manifestação do viver em comum ( no espaço do colectivo) uma vida que se torna talvez difícil de viver sozinho.
Sinal dos tempos.
Mas é bom que se saiba, com Rilke, e mesmo com Pessoa, que a flôr do poema só abre na solidão.

José Carlos Barros traz neste número as várias evocações dos seus escritores preferidos: Florbela Espanca, Bernardo Soares; e Luís Filipe Parrado fala-nos de Gauguin, no intervalo de falar de outras coisas, mais próximas e mais íntimas, como no poema da Natureza Morta Com Maçãs:

É triste
o espectáculo do amor
apodrecendo aos poucos
na fruteira
as maçãs que te trouxe
têm agora a pele seca e enrugada.
(p.106)

Poderia continuar por mais tempo, mas é o espaço que me limita no blog.
O importante é ler e dar a ler; está feito. E só mais uma chamada de atenção, last but not least: esta é uma poesia culta, de poetas que vão aos museus, aos concertos, compram livros para ler ...para além das noites e dos dias de que nos falam.
E agora vou, como diria o L.F.Parrado, à minha vida: levanto-me/ para tratar dos pratos e talheres (no meu caso dos netos)/O blog, desculpem, tem que ficar por aqui.



1 comment:

© Maria Manuel said...

obrigada pela partilha de informações e poemas destes jovens autores e, principalmente, pelas suas análises tão enriquecedoras.