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Já algum tempo que desejava apresentar aos meus leitores, sobretudo aos leitores de poesia, esta revista, CRIATURA, organizada pelo Núcleo Autónomo Calíope da Faculdade de Direito de Lisboa, com o apoio da Associação Académica.
Por várias razões:
o mérito da iniciativa, num momento em que todos se queixam de que é difícil publicar poesia, ninguém compra livros de poesia, ninguém lê, etc.
e pelo que o esforço revela de um entusiasmo não perdido, o mesmo que outrora, na mesma Associação Académica, nos anos 60, permitiu que se criasse um grupo de teatro estudantil que levava à cena peças de um experimentalismo inovador, desafiador também por vezes e nem sempre bem acolhido pela censura; faziam-se ensaios diferentes: um aligeirado para a censura, outro que já seria o ensaio geral do espectáculo concebido.
Revejo-me no espírito desta revista: inovar e criar pela escrita dos poemas, com sua linguagem própria, muito reflexo da experiência que é a dos jovens de hoje, como outrora foi a nossa;e inovar ainda pelo modelo que escolhem, de uma revista independente, de boa apresentação gráfica, bom papel, letra agradável de ler; a estas qualidades acrescenta-se ainda a pluralidade dos autores que colaboram, num conjunto de vozes bem diversas, nacionais e estrangeiras, e todas interessantes seja pelos temas seja pelos estilos.
Alguns autores colocam em epígrafe os seus preferidos:Walt Whitman, Luiz Pacheco, Nuno Júdice, outros.
A escrita feminina afirma-se coloquialmente sem recusar nem obscurecer as palavras ou imagens necessárias para exprimir alguma situação: do corpo, do eu, do outro, da cidade ou do mundo; é uma poesia liberta e viajada, uma poesia atravessada de cultura - outras culturas, outros mundos e muitas outras leituras.
Leia-se Elena Medel:
Habitat
O tecto do meu quarto é Hollywood.
Nunca ninguém
me poderá ver chorar no seu clítoris de néon.
Aconchegam-me pirilampos que se derramam em lugares distantes,
pontos de interrogação que viajam de graça,
enaltecidos por acrobatas que gozam comigo
e com as suas pegadas fulminam a Via Láctea
e o seu suor e o vestígio são a silhueta no chão
de Salomé a pontapear a cabeça do pregador:
piedade, deus frio, para a minha mesinha de cabeceira.
Filhos de Haley a destruir o meu refúgio,
Sunset Boulevard na noite escura do meu tecto.
( a autora é espanhola, esta é uma tradução de David Teles Pereira)
Veja-se como no entresonho de um quarto às escuras a viagem corre de um presente hollywoodesco sexualizado a um passado mítico como o de Salomé, figura que a história ampliou devido à decapitação de João Baptista exigida a Herodes.
Outro dos poetas antologiados oferece, com grande originalidade uma revisitação do pintor Munch (p. 113-114).
O que reforça o que eu já disse atrás sobre este fenómeno de uma nova poesia contemporânea, culta, de expressão coloquial ou directa, viajada, e que a revista Criatura nos dá a conhecer.
Parabéns e que continuem em 2010.
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