Calculo que os amigos literatos conheçam, ou de ler ou pelo menos de ouvir falar, a Montanha Mágica de Thomas Mann, obra-prima do século XX, narrando a vida de Hans Castorp que por razões que agora não vou descrever decide ir ficando, como que para sempre, na montanha de Davos onde fora visitar um parente.
Mas talvez não conheçam o Caramulo, mais serra do que montanha, servindo contudo o mesmo fim, de sanatório pioneiro em Portugal no tratamento da tuberculose, o mal do século. Ficamos a dever a António José de Barros Veloso (cujo interesse pela História da Ciência e das Ideias Científicas tem sido expresso em variados estudos, seminários e conferências) a recuperação da memória e da história do Caramulo numa bela edição que prima pela qualidade gráfica, elegância e concisão de escrita tanto quanto pela organização dos materiais investigados.
O subtítulo, Ascensão e Queda de uma Estância de Tuberculosos, de imediato nos remete para essa leitura já citada de Thomas Mann, cuja montanha foi real, antes de ser literária.
Quanto ao nosso Caramulo é Barros Veloso quem nos conduzirá pelos seus caminhos.
Descreve em primeiro lugar o espaço:
"Aquela que é hoje conhecida por serra do Caramulo foi chamada em tempos serra de Alcoba. A palavra, que deriva do árabe, significa cúpula ou zimbório e poderá estar relacionada com o aspecto de alguns dos monumentais acidentes graníticos presentes na região". Para além da paisagem, refira-se ainda, de sedutora e misteriosa grandeza, a Anta milenar fotografada.
Depois traça a biografia do fundador, Jerónimo Lacerda: nascido em 1889, em Coimbra, aí viria a formar-se em medicina "com a classificação final de 19 valores" (em 1915).
Segue-se, na organização do volume, a descrição das infra-estruturas do sanatório, e da sua arquitectura, que já ficava a dever ao movimento modernista, nascido na Europa posterior à Grande Guerra, a noção de que os espaços deviam ser amplos e arejados, bem expostos ao sol, criando condições para o tratamento da tuberculose e doenças como o raquitismo:
É em consequência disso que vão surgir os vários edifícios "de estrutura marcada pelas linhas rectas, com telhados em forma de terraço, varandas largas e galerias".
Refere-se ainda o aparecimento da marca do estilo Art Déco, divulgado por uma nova geração de arquitectos que fizeram do Caramulo uma estância especialmente elegante: é dado o exemplo da Capela de Nossa Senhora da Esperança e de vários chalés erguidos na encosta da serra, na zona conhecida "por Fonte dos Amores, onde viviam as famílias dos doentes e de quase todos os colaboradores - médicos, farmacêuticos e gerentes dos sanatórios. Tampouco faltou naquela altura o cunho de vincado nacionalismo trazido por Raul Lino, a "casa Portuguesa", tão ao gosto do Estado Novo e das élites "em ascensão" como nota o autor.
Interessante é igualmente ver como se organizavam os horários dos pacientes, com regulares exposições ao ar livre, de manhã e à tarde. Barros Veloso transporta-nos a esse tempo, graças à sua escrita viva, de cunho pormenorizado e realista.
Continuando com a organização do volume, chegamos então aos aspectos assistenciais e científicos, que vão desde os anos 1920-1938 (a fase de arranque) passando pelo período áureo (1938-1952) para chegar ao fim anunciado (1952-1978). Estes são capítulo que interessarão muito em particular os cientistas e investigadores da medicina em Portugal. Temos uma reprodução de um aparelho de pneumotórax intitulado "caramulo", por ter sido invenção de um dos colaboradores do sanatório, que pertencia ao seu corpo clínico, Martins Queirós.
Claro, mais tarde, com a natural evolução do saber e com a descoberta da estreptomicina, todos estes processos se tornaram obsoletos.
Barros Veloso descreve ainda, com grande detalhe e abundância de documentação, as ligações políticas.
Veremos Oliveira Salazar, que foi amigo de sempre do fundador Jerónimo Lacerda, em ameno convívio com ele e António Ferro, num passeio pela serra - sendo esta uma das muitas fotografias que se incluem no livro.
O interesse histórico, científico, político, deste volume a que Barros Veloso dedicou o melhor do seu tempo, é sublinhado ainda pela qualidade da edição: está de parabéns a By the Book!
Quanto a nós, amigos leitores, talvez devamos visitar ou revisitar o Caramulo, a beleza da paisagem está lá, e está hoje em dia o Hotel e um Museu com obras escolhidas, onde nem falta um Picasso!
3 comments:
Não, do Thomas eu só conheço Morte em Veneza.
Uma mera curiosidade: ainda resta uma freguesia do concelho de Vouzela que guarda o antigo nome da Serra do Caramulo, Macieira de Alcoba, encravada no meio dos montes.
Obrigada, nd, pela amável informação aos nossos leitores.
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