Saturday, October 27, 2007

Luis Miguel Cintra o Construtor


A peça de Ibsen escolhida para um conjunto de representações que fecharão o Outono não podia ser outra.
Luis Miguel Cintra foi por excelência o Construtor do teatro moderno em Portugal : as actividades do grupo da Faculdade de Letras não se esgotaram quando o grupo transitou do espaço estudantil para o espaço mais real e mais duro da vida.
Nesse espaço real, que cresceu com o tempo, se afirmou a escolha decisiva de um TEATRO DO SER, o mais difícil, porque não permite oscilações de carácter, nem acomodações facilitistas.
Poucos no nosso meio cultural terão demonstrado, ao longo dos anos, uma tão grande entrega à paixão do teatro. Servindo-o com uma extensa e sempre actualizada bagagem cultural, feita da leitura profunda dos grandes temas e dos grandes autores.
Luís Miguel Cintra é o Mestre, no sentido mais clássico do termo, que George Steiner entendeu definir.
É aquele que nos pode ensinar, como se diz no Segundo Fausto, porque também ele aprendeu: " ...dieser hat gelernt/ Er wird uns lehren".

A Aprendizagem faz-se na vida, o segundo elemento logo a seguir à cultura que se adquire. A vida é sempre mais rica porque na vida nada está adquirido à partida, a entrega tem de ser confiante e esperançada, e acima de tudo FIEL: a uma ideia, um sentimento, um objectivo, uma paixão. Neste caso a paixão do palco, partilhada com o resto do mundo que a deseje igualmente partilhar.
O teatro é serviço, e Luís Miguel cumpriu e cumpre integralmente esse serviço.

Quem ensina, porque aprendeu, aprendeu o que é próprio da alma humana, e transparece nos grandes temas e nos grandes e pequenos heróis de tragédias e comédias que se conhecem desde o teatro clássico ao mais moderno praticado hoje em dia.E o próprio da alma humana é, como diriam Boehme, ou Goethe, ver o celestial e o infernal e as esferas intermédias em que o ser humano se move : pois ele é o mediador do céu e do inferno, só ele pode desafiar e ser desafiado, ainda que em luta desigual.

À medida que o Construtor Solness, na peça de Ibsen, se entrega à jovem que irrompeu na sua vida como um raio de sol e o seu carácter é aprofundado, muda Luís Miguel muito subtilmente de registo, tão subtilmente que é preciso grande atenção para notar como do realismo inicial, sublinhado pelo tom (o corpo,o gesto e a voz) da representação, se caminhou para um simbolismo onírico, surreal, a que ele e Beatriz Batarda se entregam de modo inspirado para não dizer genial.
A morte do herói não chegará a ser trágica, porque foi uma dupla libertação: a jovem, figuração da alma (da Anima) perdida, reconhece naquela queda o vôo de uma eterna sublimação.

George Steiner escreve, a propósito de Ibsen que ele "estava na posição do escritor que inventa uma nova linguagem e tem de a ensinar aos seus leitores".
O mesmo direi de Luís Miguel: inventou, para o seu modelo teatral, novas linguagens, cénicas e dramatúrgicas, que vai ensinando aos seus espectadores.Todos nós aprendemos com ele.

No fim do espectáculo, disse-me o Luís Miguel que antes de outras peças, incluindo a do Construtor Solness, se devia ler aquela que o próprio Ibsen considerou a mais importante para se perceber o todo da sua obra.
E foi o que fiz. Li ontem à noite, na bela edição da Cotovia, QUANDO NÓS,OS MORTOS, DESPERTARMOS, a peça de 1899, representada pla primeira vez em 1900. Nesta peça discute-se muito claramente a oposição arte/vida, o egoísmo próprio do criador face à generosa entrega que os outros podem esperar dele. Discute-se ainda, ao modo de um futuro Thomas Mann a questão do Tempo: o nosso, o dos outros, o íntimo, o social, e acima de tudo a a revelação brutal de que a entrega oportuna ou tardia à Ilusão de que se perdeu a memória e se recupera o desejo só pode levar a uma trágica, embora consentida, destruição.
É já em 1900 que Ibsen confronta o mundo e a sociedade de que participa, dissecando-a, com os seus piores fantasmas.
Não é por acaso que a mulher de Rubek se chama MAJA e que o seu grito de liberdade nos soa a ILUSÃO:
"Sou livre como um pássaro,
Livre, livre, livre!"

Há ilusão, mas não há liberdade no mundo.

5 comments:

Sérgio A. Correia said...

A única peça de Ibsen que li e reli com paixão e arrebatamento foi "Uma Casa de Boneca". Lajos Egri,"pai" da escrita criativa americana, desconstruiu-a com muita agudeza "demonstrando" à exaustão que Ibsen seguira um método rigorosíssimo na sua construção.
Nora, a personagem principal da obra, é considerada por muitos como sendo a primeira personagem feminista da História do Teatro Ocidental. Pessoalmente acho muito redutora essa leitura. O processo de transformação de Nora é muito mais profundo que uma tomada de consciência política da sua condição de mulher. Observador arguto da natureza humana, Ibsen é susceptível de muitas leituras. Para quem é um leitor habitual de Eic Berne, Claude Steiner, etc (os teórico da Análise Transaccional) Ibsen tb é uma fonte inesgotável de observação.

Sérgio A. Correia said...

Eric Berne...

Anonymous said...

Inventor do teatro moderno, mas sem deixar de revisitar os clássicos.

Há já algum tempo que descobri o seu blog, mas só agora me atrevi a deixar um comentário. Pergunta porquê esse receio de deixar um comentário? Porque há algum tempo li uma obra sua, que tem sido para mim uma obra de referência literária,e por a considerar como uma grande escritora e que felizmente ainda se encontra entre os vivos, só agora ao reler essa obra, achei que era o momento certo para deixar aqui um comentário. Aproveito também, sem qualquer compromisso, a convidá-la a visitar o meu blog e a reler(se puder deixar um comentário , ficaria intrínsecamente agradecido) o extracto que retirei e "postei da obra(sua) supra referenciada- estou a referi-me aos "Jardins de Eva"

Fernando

Yvette Centeno said...

Quem gostou de ler OS JARDINS DE EVA gostará de ler PAMUK, MY NAME IS RED, e de encontrar a misteriosa e tão real SHEKURA, no romance.
Falei dele e dela no meu outro blog, de SIMBOLOGIA E ALQUIMIA.
Obrigada, Harry, e parabéns pelo seu blog, que já visitei.
Também sou fã de Ingmar Bergman.
Não perca a estreia da SONATA DE OUTONO no S.Luiz, em breve, com Fernanda Lapa.
Grande texto e um elenco magnífico.

Anonymous said...

Muito obrigado pela marca que deixou lá nas Estepes.

Quanto à sua sugestão cultural, penso realizá-la(se arranjar bilhetes) no serão do próximo Sábado.

Fernando