Friday, November 07, 2025

Miguel Serras Pereira, DE SÚBITO NO AVESSO DA MEMÓRIA

Como sempre encontro logo a música subtil que envolve os seus poemas, escondendo alguma imagem secreta, por entre versos de sabor oriental. Saem livros dizendo que a poesia é para comer. Esta podia ser gamba doce, a doçura está lá e é tão boa. Falando de sabores, na verdade eu que não sou muito comilona fico presa ao ritmo, há um lirismo cantável, nestes ritmos, como no modo de tocar que nos hipnotiza em Glenn Gould, que estou a ouvir no Mezzo. Canta as notas que toca, e o Concerto adquire outra magia. Não é Bach, é Chopin, que tocado por Gould se torna igualmente incantatório. Vão leves as suas mãos e não sabemos por onde seguem as notas.

Como estes poemas de MIGUEL SERRAS PEREIRA, um grande do nosso universo poético que leio há muito tempo, e de novo agora tenho em mãos, por gentileza sua.

Um leitor de coisas rápidas, dirá são versos em poemas pequenos, e a nossa fome é grande. Gente que engole à pressa, não saboreia, não sente como Celan, cuja poesia nós apreciamos, que o menos é mais.

No avesso da memória tanta coisa se perde, outras vezes se ganha, embora já diluída, sem lamentos, como em Tanto dá. 

É o correr do tempo que por ali está a passar e nos leva para a página seguinte: 

Enquanto vamos:

É só a vida tudo o que não temos

e deixamos para trás enquanto vamos

ou nada já nos falta nem buscamos

porque é a vida só o que não temos

  

 O tempo e a vida, na inversão que se pode fazer, contrariando o Ser e o Tempo de Heidegger : o tempo é o ser que tudo atravessa, também nas pregas da memória, a vida é o tempo, retirado nas pregas, no avesso da memória.

Tão agradável a leitura que podemos repetir, sentindo na emoção o que também a nós corre na alma, não o excesso mas a míngua, mais um levíssimo acorde nos finos dedos de Glenn Gould.


No comments: