Thursday, December 19, 2024

António Carlos Cortez, CENAS PORTUGUESAS, ed. Caminho, 2024

 Tenho à minha frente, há algum tempo, as Cenas Portuguesas, os contos do António Carlos Cortez, numa bonita edição da Caminho, bom papel e letra que felizmente por enquanto ainda leio.

Já escrevi sobre o António Carlos, em quem descobri uma voz, no caso era poesia, finalmente inovadora e original no nosso panorama, carregado de matéria feita de modo rápido, de clichés, que matam à nascença a vontade de ler. Estava a preparar um doutoramento, que entretanto acabou com brilho, sobre a obra de Gastão Cruz, que conheci bem, e logo me agradou pela escolha.

Mas agora é o Conto, para mim de todos o mais difícil dos géneros que se praticam na literatura. Pela concisão que exige, ou se transforma em novela ou em romance...

A arte da contenção na narrativa exige ao mesmo tempo uma ideia que se tem de desenvolver - ou não há narrativa, não há há história - e uma capacidade especial de trabalhar com as palavras certas, acertadas, escolhidas com cuidado, nem a mais nem a menos que ajudem à progressão do conto sem que se perca a curiosidade de o ler, mas sem nos forçar a deixar a meio, por desfastio do excesso, o que se tinha começado.

São cenas portuguesas, logo aqui há uma indicação de leitura: cenas, contos, pequenas histórias, episódios com alguma significação; e portuguesas, ou seja que tenham algo a ver com o nosso país, a nossa sociedade, o nosso meio, por assim dizer. Melhor ou pior, julgo que neste momento que vivemos antes pior do que melhor.

A prosa, directa e escorreita como já não se espera, ora mais crítica ora mais irónica define personagens que pululam no nosso dia a dia, cujos atributos são descritos num tom camiliano, muitas vezes, de tão pormenorizados, não escapando a uma formação que o realismo moldou, e define neste caso um tom mais popular, mais perto do que se vive na Lisboa ainda feita de bairros, que se foram perdendo.

Não cairia no exagero de afirmar que há aqui uma névoa saudosista, mas antes um olhar atento ao mundo real, ao gosto de o descrever com as palavras certas, que não se arrastam em vestes do passado. António é um autor moderno, sem ser saudosista nem modernista.

Não tenta inventar o que ele, criador culto e muito lido, sabe que já foi inventado. Segue no seu caminho, com a sua voz própria, que define o seu estilo. Como eu gosto: simples e directo, agradável de ler, ampliando informação. Na contenção de um conto...

No primeiro, MORTALIDADE, evolui da constatação de que todos somos mortais para uma tentativa mais conceptual do que se pode entender dessa tão real realidade, e de como lidar com ela, com os mortos e com os vivos que a ela reagem. E eis que de repente, fazendo-me lembrar a Babel de Julián Ríos, em LARVA, agora já em tradução portuguesa, tantos anos depois da edição de 1983, anos oitenta criativos e felizes para tantos de nós, fazendo lembrar, dizia eu, o gosto de brincar com a língua, compondo e decompondo as sílabas, brincando apenas, mudando a sonoridade, cantável e descartável como a própria vida ou a presença de uma morte sentida e consentida, no conto.  António terá lido, e se leu certamente apreciou  A VIDA SEXUAL das PALAVRAS, de Julián, que existe (espero) na Quetzal da maravilhosa Piedade Ferreira, tão pioneira em tudo o que nos deu.

As palavras têm corpo, são matéria palpável, em Julián Ríos. Não vai tão longe António Carlos, o que se justifica também pela diferença de gerações. Sente-se nele o gosto da reflexão ensaística, ao longo do que escreve. De Carlos de Oliveira vai contar uma história que diz respeito a esse tão grande e pouco falado poeta e narrador de ficção numa escrita densa, cerrada, como em FINISTERRA, a minha obra preferida, além da obra poética da antiga Portugália. E então, se dermos atenção, o conto é um mini-ensaio de mão corrida que nos ensina algo mais do nosso meio literário, recheado de histórias. António Carlos Cortez não foge à sua vocação de Professor, tem a vida preenchida pelo amor da profissão que escolheu, o amor da língua e da escrita em que se revê, seja no verso seja como aqui, na prosa.

Discreto, não direi dele o que Julián, castelhano, assume: que as palavras têm sexo, e para que vivam e se reproduzam há que fazer amor com elas. Mas sendo poeta, quem sabe o que faz António no silêncio da noite...



 




  



Thursday, December 05, 2024

 NAMELESS, ou a Velhice...

 A ideia já lhe andava na cabeça há algum tempo. A falta de uma ideia que agora sentia e nunca tinha sentido antes. Tinha de arranjar maneira de corrigir essa falha. Falha grave no pensamento e que iria a breve prazo fazer dela o que ela nunca tinha sido, uma forma vazia de conteúdo.

Supondo que uma ideia então lhe ocorria, uma ideia qualquer sem importância. O que fazer? Tentar um desenvolvimento que a ampliasse e lhe desse mais corpo?

O pior é que nenhuma ideia surgia que  a entusiasmasse bastante para o sacrifício - pois era um sacrifício - esse esforço da escrita.

 

Lembrava pequenas coisas. Mas não conseguia lembrar-se de como tinham começado. Por exemplo, como tinha ido parar a casa daquele jovem estudante alemão que conhecera no lar onde passava férias junto com outros colegas da Faculdade.  Ele fugira da RDA, o tempo era ainda o da Alemanha dividida e o seu sonho era partir para os Estados Unidos e ficar lá a tirar um curso de astrofísica. Começou a namorar, por carta, com uma jovem americana que estivera também a passar férias naquele mesmo lar onde ela agora estava. Esperava casar com ela e obter a nacionalidade americana para seguir com os estudos e com a vida. Enquanto esperava recebia estudantes na casa que lhe sido atribuída por ser um refugiado. Uma casa simples, mas com o conforto suficiente para se poder viver nela. Um quarto, aquecimento central, uma cozinha com o essencial e uma casa de banho. Ficava perto do lar onde se recebiam estudantes no Verão, e era aí que ele acabava por conhecer um ou outro que depois ficava mais tempo, saindo do lar e alugando-lhe um quarto mais barato.

Sim, mas ela que tinha de regressar a casa, no seu país, como acordara ali ao lado dele, na cama, depois de um sono tranquilo que ele não interrompera, com grande delicadeza. Pois bem podia ter-se aproveitado daquele sono. Ela lembrava-se de que a dada altura se tinham abraçado, procurando o calor um do outro, dois corpos numa cama estreita, só com um cobertor e que por isso pedia aquele abraço, terno mas cauteloso e sem mais consequências. As cabeças na almofada única, também próximas uma da outra. A lembrança ficava por aí.

Não houve outros dias ali, nem noites.

Ele ajudou-a a encontrar um quarto na casa de uma senhora de idade, muito simpática, que também recebia estudantes em casa. Havia regras, não podia receber rapazes. E banho, só um por semana, se queria mais tinha de pagar, estava-se ainda na fase difícil da recuperação, depois da guerra.. A casa era no centro da cidade, onde ficava a biblioteca, e ela queria aproveitar para ler um autor sobre o qual estava a preparar uma tese.

Continuaram a ver-se, durante o dia.

Ele ia buscá-la, tomavam juntos o pequeno-almoço, ficavam na biblioteca até à hora do lanche e à noite viam o que havia no único cinema da cidade.

Foi aí que ela se lembra de lhe ter pegado na mão pela primeira vez.

À saída ele pôs-lhe a mão nos ombros, carinhosamente. Está frio, terás de comprar um casaco. Depois digo onde se pode, não são muito caros.

Ela sorriu e aconchegou-se melhor contra o seu peito.

Passaram a andar de mão dada, como dois namorados? Não se lembrava. Também não se beijaram. O que lhe acorria à memória era a procura daquele calor dos corpos que se sentiam bem, um contra o outro, sem pedir mais.

 

O que teria esse domingo tristonho, em que se viu em casa sozinha, sem filhos e sem netos, e a acabar uma tradução que poderia continuar mais tarde, com outra energia, para a fazer lembrar-se de repente daquele encontro de outrora, aos vinte anos - agora tinha oitenta e vários como gostava de dizer a brincar - um encontro que não teria continuação mas lhe trazia à memória pequenos momentos felizes, de aconchegamento e ajuda, sem mais nenhumas consequências que no seu país diriam que podiam ser perigosas?

Não tinha resposta.

Mas sentia de novo o calor desses momentos tão antigos, já passados, e que pareciam agora fazer falta de novo.

A solidão? A velhice instalada? Um dia mais vazio do que os outros?

ou a constatação de que ali, naquele tempo, tinha sido amada por ele e que ele trocaria a sua América por ela, se ficassem juntos, os dois, a partilhar as interrogações que a vida sempre lhes traria. Seria amada e amaria de volta.

Era a velhice que agora a deixava com esta perplexidade: foi mesmo amada, ao longo da sua vida?  E ele, foi bem sucedido no que desejou fazer? Alguma vez se lembrou dela? Teria como ela, oitenta e vários anos, filhos, netos?

Os abraços tão ternos, e ao mesmo tempo tão cuidadosos e tímidos, teriam ficado na sua memória, como acontecia com ela, neste preciso momento?

Estaria vivo, mas já entregue num lar?

E por que razão estaria ela neste momento a recordar tudo isto?

Que presença, que abraço, que gesto carinhoso lhe faltava ?


5 de Dezembro, 2024, fragmento de uma novela.