Tenho à minha frente, há algum tempo, as Cenas Portuguesas, os contos do António Carlos Cortez, numa bonita edição da Caminho, bom papel e letra que felizmente por enquanto ainda leio.
Já escrevi sobre o António Carlos, em quem descobri uma voz, no caso era poesia, finalmente inovadora e original no nosso panorama, carregado de matéria feita de modo rápido, de clichés, que matam à nascença a vontade de ler. Estava a preparar um doutoramento, que entretanto acabou com brilho, sobre a obra de Gastão Cruz, que conheci bem, e logo me agradou pela escolha.
Mas agora é o Conto, para mim de todos o mais difícil dos géneros que se praticam na literatura. Pela concisão que exige, ou se transforma em novela ou em romance...
A arte da contenção na narrativa exige ao mesmo tempo uma ideia que se tem de desenvolver - ou não há narrativa, não há há história - e uma capacidade especial de trabalhar com as palavras certas, acertadas, escolhidas com cuidado, nem a mais nem a menos que ajudem à progressão do conto sem que se perca a curiosidade de o ler, mas sem nos forçar a deixar a meio, por desfastio do excesso, o que se tinha começado.
São cenas portuguesas, logo aqui há uma indicação de leitura: cenas, contos, pequenas histórias, episódios com alguma significação; e portuguesas, ou seja que tenham algo a ver com o nosso país, a nossa sociedade, o nosso meio, por assim dizer. Melhor ou pior, julgo que neste momento que vivemos antes pior do que melhor.
A prosa, directa e escorreita como já não se espera, ora mais crítica ora mais irónica define personagens que pululam no nosso dia a dia, cujos atributos são descritos num tom camiliano, muitas vezes, de tão pormenorizados, não escapando a uma formação que o realismo moldou, e define neste caso um tom mais popular, mais perto do que se vive na Lisboa ainda feita de bairros, que se foram perdendo.
Não cairia no exagero de afirmar que há aqui uma névoa saudosista, mas antes um olhar atento ao mundo real, ao gosto de o descrever com as palavras certas, que não se arrastam em vestes do passado. António é um autor moderno, sem ser saudosista nem modernista.
Não tenta inventar o que ele, criador culto e muito lido, sabe que já foi inventado. Segue no seu caminho, com a sua voz própria, que define o seu estilo. Como eu gosto: simples e directo, agradável de ler, ampliando informação. Na contenção de um conto...
No primeiro, MORTALIDADE, evolui da constatação de que todos somos mortais para uma tentativa mais conceptual do que se pode entender dessa tão real realidade, e de como lidar com ela, com os mortos e com os vivos que a ela reagem. E eis que de repente, fazendo-me lembrar a Babel de Julián Ríos, em LARVA, agora já em tradução portuguesa, tantos anos depois da edição de 1983, anos oitenta criativos e felizes para tantos de nós, fazendo lembrar, dizia eu, o gosto de brincar com a língua, compondo e decompondo as sílabas, brincando apenas, mudando a sonoridade, cantável e descartável como a própria vida ou a presença de uma morte sentida e consentida, no conto. António terá lido, e se leu certamente apreciou A VIDA SEXUAL das PALAVRAS, de Julián, que existe (espero) na Quetzal da maravilhosa Piedade Ferreira, tão pioneira em tudo o que nos deu.
As palavras têm corpo, são matéria palpável, em Julián Ríos. Não vai tão longe António Carlos, o que se justifica também pela diferença de gerações. Sente-se nele o gosto da reflexão ensaística, ao longo do que escreve. De Carlos de Oliveira vai contar uma história que diz respeito a esse tão grande e pouco falado poeta e narrador de ficção numa escrita densa, cerrada, como em FINISTERRA, a minha obra preferida, além da obra poética da antiga Portugália. E então, se dermos atenção, o conto é um mini-ensaio de mão corrida que nos ensina algo mais do nosso meio literário, recheado de histórias. António Carlos Cortez não foge à sua vocação de Professor, tem a vida preenchida pelo amor da profissão que escolheu, o amor da língua e da escrita em que se revê, seja no verso seja como aqui, na prosa.
Discreto, não direi dele o que Julián, castelhano, assume: que as palavras têm sexo, e para que vivam e se reproduzam há que fazer amor com elas. Mas sendo poeta, quem sabe o que faz António no silêncio da noite...