Monday, July 08, 2024

Ainda o Morro do Rui Couceiro

 Acordei a pensar que outro livro, de que me lembre, tem uma densidade tão grande sendo ao mesmo tempo forjado na actualidade do nosso quotidiano, com personagens que nos dizem muito do que somos e vivemos (do pequeno e do grande mundo) e do que partilhamos com vizinhanças primeiro desagradáveis, invasivas do nosso sossego, e depois gradualmente  trazendo do bairro tudo o que pode ser mais interessante e ela dá a conhecer, a grandes e pequenos.

Falo da Dona Lisete, que é quem mais fala na obra com a Beta (Elisabete de seu nome verdadeiro) tornando-se conselheira, condutora, amiga de verdade e de que a narradora se ocupa quase até às últimas páginas do que escreve. Personagem que é tratada com cuidado, mas também com uma ironia escondida a que o autor não consegue resistir, a ironia que alimenta o que vemos e nos faz não digo rir, mas reagir. Puxa pela acção, e na verdade ( se eu voltasse a falar das figuras centrais da alquimia) seria definida como Mãe da Obra (que vemos no Conto da Serpente Verde de Goethe, hoje já disponível em português pela tradução do João Barrento. Eu escrevi sobre o Conto um pequeno ensaio, dedicado a Paulo Quintela, o Prof. e amigo que ia comentar a minha tese de doutoramento e me disse explica lá isso que eu de alquimia não percebo nada, e fiz esse ensaio para ele. 

No cap.105, p.284,  a Dona Lisete tem direito ao seu momento de explosão popular, que não direi que é bipolar, porque conheço como aqueles vulgares desabafos de zanga momentânea são normais no Porto, não chegam a ser considerados palavrões, saem de bocas finas, como a da aristocracia que ali ainda predomina, e eu aprendi no âmbito da minha família de Ponte de Lima: a fúria da Dona Lisete até assustou por momentos a narradora, mas como ela própria diz, depressa se acalmou, e eu deixo ao leitor a curiosidade de aprender com ela...

A verdade é que todas as explosões a que se assistiu eram desabafos de impotência perante algo de desagradável sucedido, como a falta de água nas torneiras por exemplo. Não mais do que isso. Não havia maldade, havia revolta justa, pela incompetência, ou pela apetência e abuso de alguns que podiam, sobre os outros, que não podiam. O palavrão libertava.  

Ao contrário de alguns comentadores, que no seu entusiasmo quase paroxístico me deixam entender (é da idade...) que se atiraram ao Morro de cabeça, não a partiram mas não voltarão lá, outros interesses logo se apresentarão, eu acho e é o que vou pelo menos tentar, que se deve  voltar a esse Morro, ou melhor, a esse livro, até perceber que fio nele se esconde e nos conduz até ao momento em que a heroína, com o convívio do Dr. Belarmino, a sempre presente Dona Lisete, que a aconselha a ir pedir leitura de tarot a uma cartomante para adivinhar o que o futuro lhe reserva, chegar a conhecer e conviver com o Professor, que é colocado ali, onde ela vive e se apaixona por ele e ele por ela. Depois de tanto negro atravessado na sua vida , o peso da avó nos seus dias e nas suas noites, fica a saber que essa avó a protege, lá do céu onde se encontra e propicia um final amoroso e feliz com o seu Professor, que é delicado, não força a relação sexual quando ainda não desejada, mas antes a acaricia docemente e lhe envolve e aquece o corpo, como uma segunda pele. 

Da infância por vezes sofrida até à maturação de um corpo feito para amar e ser amado, assim vai o relato encaminhando a nossa leitura,  lembrando que em toda a vida, pobre ou menos pobre, de alguém como Beta, para lá da aparição assustadora da imagem da Morte, a vida afirma-se como vida mais plena ali oferecida para  viver, e pelo amor entregue a ser vivida plenamente. 

Chegou o momento mais difícil, o de entender o Morro como símbolo de uma cidade envolvente, feita de sobreposições variáveis, permanentes, inquietantes por vezes, quando a Morte, a grande, era de súbito avistada.

E de entender a Cidade como um grande coração que batia, desde que na Bíblia, ainda no Antigo Testamento, se descreve como Cain, depois de matar Abel é expulso do Paraíso, já amaldiçoado também pelo pecado de Adão e Eva. Cain, o "construtor de cidades".  Por que razão estariam as cidades ligadas ao pecado de Cain, ao  assassinato brutal de um irmão inocente? Queria Jeová, no tempo em que todos ainda falavam, castigar uma humanidade com um Mal permanente? Pois os alicerces que Cain erguia estavam viciados desde a origem.

Pode a cidade viciada tornar-se o verdadeiro símbolo do mal? Acontece com a Torre de Babel, e deus a castigará a seu modo, o mesmo com Sodoma e Gomorra, que não serão perdoadas pelos seus vícios, e será que o mal nunca erradicado se infiltra ainda hoje nas guerras, nas grandes catástrofes climatéricas, num planeta cuja zanga com os humanos é cada vez maior e parece não ter perdão nem ter fim?

Não chegou o momento ainda, para a narradora feliz, de assistir ao fim de um mundo que é o nosso, como diz Hariri, que vê na I.A. um mal ainda pior. Se no antigo Éden o primeiro par não tinha senão um arremeço de liberdade, pois duas árvores lhes estavam proibidas, que liberdade teriam os modernos pares em que o verdadeiro e o real podiam a todo instante ser modificados, e induzir em perigosos erros ? E Deus e a sua criação, no meio disto? Também a sua identidade poderia ser modificada? Hariri abre a discussão, mas deixa-a em aberto. Aconselha a que não se perca tempo a pensar o que é o significado da vida, pois isso apenas conduzirá a uma história e uma história não nos dará esse significado. Pensemos antes no que é o Sofrimento, o significado do Sofrimento (que vemos por todo o lado).

Por que razão existe e o que significa o Sofrimento, na vida? E sabemos como cada ser humano o que busca é a certeza, não a dúvida metódica da filosofia de outrora...

Tudo mudou no mundo.

Mas no Morro, por via de um amor simples e partilhado poderá haver salvação, sonhar com um futuro distante mas aguardando no fio do horizonte que o Criador acorde do seu sono zangado e nos perdoe. 

 

  

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