Wednesday, July 10, 2024

Rui Couceiro: A morte, os medos, os fantasmas e as formas


 

A nomeação de alguns intervenientes surge, e dá substância ao discurso que estava, na continuação da narrativa, a tornar-se muito abstracto, numa prosa tão figurativa e realista.

Assim Luísa é a amiga a quem a narradora se dirige, Elisabete é o seu nome, abreviado em Beta pela avó, surge um amigo que orienta com bons conselhos, o Dr.Belarmino e a inefável e sempre presente já a conhecemos bem, desde o início, D. Lisete. Define-se como uma alcoviteira de Gil Vicente, mulher que leva e traz, ou a vizinha que no Fausto de Goethe propicia o encontro fatal entre o herói amaldiçoado e  Margarida que se tomará de encanto por ele e por isso, no Fausto I, será condenada pelos humanos ( cometeu o crime de infanticídio) mas redimida por Deus. Com Goethe, onde há amor há perdão.

Mais corriqueiro nos vai parecer o caso de Beta. Amava e era amada pela sua avó, e para uma criança, e mesmo para um filho, uma avó prefigura uma espécie de eternidade, poderá adoecer, envelhecer, mas morta nunca se imagina. E contudo morrem...

Beta perdeu a sua avó e agora é acometida de visões, ao fim do dia, quando vai para casa, e de súbito lhe aparece uma forma que evoca essa presença ausente.

A forma é de susto, é feia como uma bruxa, maltrapilha de roupagem, deitando um cheiro nauseabundo que Beta não suporta, e na narrativa surge assim: " Diante de mim estava uma figura baixa, curvada e toda vestida com uns andrajos pretos. (Não preciso de trazer de novo para esta figuração a fase dita de nigredo, e que faz parte do processo de evolução, na psique do adepto, da sua Anima). Continuando: " Parecia ter-se besuntado com um unguento fétido, porque o cheiro que emanava, não sei se do corpo, se da boca, era insuportável, e o rosto, ou o que parecia ser um rosto, era brilhante e pastoso. Não se lhe distinguiam feições, nem expressões, nem a boca se abria para falar, apesar de dizer muito mais do que eu queria entender. A princípio não percebi quem era, mas depressa me lembrei de que só poderia ser ela, não poderia ser outra, certamente seria ela. E se fosse?(...) E se ela estivesse ali para me levar, uma vez que já tinha levado a minha entrevada avó? Aquela monstruosidade bexigosa e pestilenta só poderia ser a morte. A morte estava à minha frente, ainda que não totalmente nítida, mas estava. Só poderia ser ela. Só poderia ser a morte, eu já estava certa disso quando, aproveitando um raro abrir e fechar de olhos a que me permiti, deixei de a ver, desapareceu" (p.252).

A figura assustadora voltará de novo, Beta estava a sofrer alucinações que a gelavam de pavor.

Também aqui o autor escreve pela narradora uma memória antiga a da tremenda peste negra que assolou a Europa durante o séculos XIV e XV, e deixou no nosso imaginário (dos que leram ou ouviram contar) o terror de que algo assim pudesse voltar a acontecer.  Descobrimos sempre, ao longo desta leitura aparentemente simples e directa, o suporte antigo de uma cultura que é a nossa, por muito arcaica e esquecida. Surge com a sua presença forte nos momentos mais inesperados, mas tem de estar lá...a cultura é o suporte da Arte.

A narradora relaciona então esta aparição com uma mulher, a D. Aldina, cujo marido, o Fernando, morrera nas obras da Expo 98, soterrado sob uma camada de cimento despejada para uma sapata que estava a ser betonada, e dado o trágico acontecimento ninguém se atreveu a falar dele,  para retirar o corpo, o que atrasaria a obra, algo impensável. 

Talvez fosse o imponderável deste trágico acidente que estivesse a causar a Beta as sua assustadoras alucinações, como a da figura dançante que ao regressar a casa, já no fim do dia parecia fazer troça dela e dos seus medos. Agora a heroína da história já tem uma terapeuta a quem vai contando o que lhe acontece, o medo, por um lado e o desejo de não acreditar, por outro.

Mas já entretanto o autor nos apresentou fundamentos de um imaginário que na espécie humana permanece desde que existe, ainda que sofrendo sensíveis transformações: a Morte. Dos tempo modernos iríamos buscar o célebre Grito, de Munch, que teve várias versões, todas possíveis para a primeira alucinação, de formas vagas, mal definidas ainda, até a esta dança macabra, de tantas origens arcaicas e todas relacionadas com a visão e o temor da morte. 

O temor da morte está presente desde que nascemos, desde que há consciência da vida na nossa espécie. É o que nos diferencia dos animais de que descendemos, que não o têm.

Recomendo a entrevista de Hariri, que está no youtube, para quem deseje conhecer a sua opinião. 

Mas cito antes, por magnífica descrição, que inicia, com outros, o chamado Modernismo na literatura, que se inicia em 1910, mais ano menos ano e se manterá, segundo os especialistas, até 1935 ( morte de Pessoa, no nosso caso). Rilke, com os seus célebres Cadernos de Malte Laurids Brigge (existe a tradução de Paulo Quintela) oferece na sua narrativa da vida e descoberta de uma cidade dolorosa, Paris, mulheres com quem se cruza na rua e cujo rosto prefigura o da Morte, assustadora, mulheres cujo rosto se desfaz nas mãos tornando-se ferida (a ferida da miséria da vida) e acima de tudo na memória que traz consigo do seu antepassado, o Conde Brahe, cuja morte é descrita como algo de atroador que quando se manifesta invade o castelo inteiro com o seu sofrimento, a que nem os cães resistem, embora sejam tão próximos e já habituados

Rilke escreve esta sua obra-prima em 1910 e marca a diferença na narrativa do seu tempo, inaugurando o que chamamos de Modernismo no século XX. 

Vive pobre, ele que é aristocrata, numa cidade que descreve ao pormenor, como Rui Couceiro faz com o seu Porto e o seu Morro, só que não tem morro, tem um quartinho para onde se retira depois de ter secretariado o irascível Rodin, e toma as notas que formarão o Caderno tal como o conhecemos. Tudo, quando se encontra sozinho, o remete para a busca de uma identidade que ficou no castelo da sua família, e por onde ele vê passarem o pai e a mãe, tias, primas, fantasmas, criadagem que acorre quando o Senhor do castelo está presente.

Assim, pela recuperação de uma vida outra, revive o jovem Rilke, perdido na Paris implacável, o que procura na mudança, na diferença, no choque de dois mundos, o de outrora, em extinção, apenas vivo nas evocações ou alucinações da memória, e o do seu agora, em que ele tenta encontrar o seu lugar e destino de criação artística, justificação da sua alma, isto é da sua verdadeira e real existência. Lemos em Rilke um Baudelaire que também Rui Couceiro pode ter lido, La Charogne, a podridão do cadáver, mas lemos sobretudo magníficas páginas sobra o medo, os vários medos que de todo lado o acometem e ele não chega a entender. Percorre-se uma memória longa de um passado recente, onde perpassam jovens mulheres que poderiam ser amadas mas não o chegam a ser, e para total surpresa do leitor desprevenido, eis que o final dos Cadernos é precisamente com amor que termina, o amor que Beta também descobre. Mas ela, ao contrário do que acontece com Rilke será amada de volta, ao passo que ele não tem a certeza de nada. Ainda não. 

 

  



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