Sunday, July 28, 2024

O livro da Vida

 Agora folheamos com mais facilidade

o grande livro da vida meio-aberto

à nossa frente. Página a página

foi sendo aberto ora por nós

ora por outros a quem fora dada essa incumbência

sem que a tivessem pedido

como nós agora também não estamos a pedir

mas que as palavras impõem, antes que deixemos

 de as saber ler, e antes ainda de as saber dizer

confundindo coisas e letras, esquecidos que ficamos

que para cada coisa há uma palavra que é antiga

e temos de a conhecer.  Tem de ser lida como a vida

 terá de ser vivida.

 O livro surge-nos feito de letras, e vamos de letra em

 letra descobrindo palavras, as mais importantes com segredos

que são muitos e não podemos deixar que passem despercebidos.

Que segredos são esses saberemos no fim, depois de folheado

o livro todo até àquela página final em que algum Anjo assina

o nome que faltava, que algum deus outrora tinha dado

mas sem dizer a primeira palavra, nem a primeira letra 

sequer, a letra que começava.




Saturday, July 27, 2024

ISABEL

 

ISABEL 

(in memoriam)

Agora dormes

finalmente tranquila

foram limpas com o tempo

as pedras do caminho

não cairás assustada

pois o caminho agora

foi semeado de estrelas

pela mão do Amado

que te aguardava já

com o teu Anjo ao lado

24 de Julho, 2024


Monday, July 22, 2024

A JUVENTUDE

 

A JUVENTUDE

(para a Joana, nos seus 25 anos)

Seduz a Juventude porque é bela

seduz porque ilumina a nossa vida

a nossa estrela

Sunday, July 21, 2024

O que sou eu

 

Fosse eu a Oliveira de Creta 

e onde enterraria a minha raíz

para que não fosse cortada

e eu nunca mais crescesse

de copa elevada para os céus?

Nem toda a terra é fecunda

nem toda é venerada

como aquela que ali ficou

regada por sangue oculto

e cada vez mais se aprofunda...

Friday, July 19, 2024

 A OLIVEIRA de CRETA

Não foi certamente por acaso

que alguém me colocou no Facebook

a imagem da oliveira de Creta

com mais de dois mil anos

e que ainda está viva, pois dá fruto.

Foi para me mostrar neste dia

em que estou abatida

uma imagem especial de força

e resistência.

É essa força da natureza

 a força que nos dá o exemplo

do que deve ser sempre a nossa vida.

Não é perfeita a vida que vivemos

mas tem de ser plenamente vivida

terá de dar sempre fruto

estejamos ou não ainda vivos,

alegres ou abatidos.

A vida é na natureza vida eterna

é de terra de água e de raízes

tão fortes e penetrando tão fundo

que do lado de lá tocam o céu

negro e em chamas

que algum fogo alimenta

no seu ninho de estrelas

onde se formam os corpos

que ao partir

renovam as suas vidas

e lhes dão permanência

18 de Julho, 2024

 

A VIDA

 

 A VIDA

Nascemos sem saber.

Não pedimos a vida

foi-nos dada por um deus

que em nós quis ver-se

 ao espelho

onde não via nada.

Depressa se cansou

da sua imagem

quebrou o espelho

que perdera o encanto

e de novo tenta refazer-se

noutra imagem.


19 de Julho, 2024

Wednesday, July 10, 2024

Rui Couceiro: A morte, os medos, os fantasmas e as formas


 

A nomeação de alguns intervenientes surge, e dá substância ao discurso que estava, na continuação da narrativa, a tornar-se muito abstracto, numa prosa tão figurativa e realista.

Assim Luísa é a amiga a quem a narradora se dirige, Elisabete é o seu nome, abreviado em Beta pela avó, surge um amigo que orienta com bons conselhos, o Dr.Belarmino e a inefável e sempre presente já a conhecemos bem, desde o início, D. Lisete. Define-se como uma alcoviteira de Gil Vicente, mulher que leva e traz, ou a vizinha que no Fausto de Goethe propicia o encontro fatal entre o herói amaldiçoado e  Margarida que se tomará de encanto por ele e por isso, no Fausto I, será condenada pelos humanos ( cometeu o crime de infanticídio) mas redimida por Deus. Com Goethe, onde há amor há perdão.

Mais corriqueiro nos vai parecer o caso de Beta. Amava e era amada pela sua avó, e para uma criança, e mesmo para um filho, uma avó prefigura uma espécie de eternidade, poderá adoecer, envelhecer, mas morta nunca se imagina. E contudo morrem...

Beta perdeu a sua avó e agora é acometida de visões, ao fim do dia, quando vai para casa, e de súbito lhe aparece uma forma que evoca essa presença ausente.

A forma é de susto, é feia como uma bruxa, maltrapilha de roupagem, deitando um cheiro nauseabundo que Beta não suporta, e na narrativa surge assim: " Diante de mim estava uma figura baixa, curvada e toda vestida com uns andrajos pretos. (Não preciso de trazer de novo para esta figuração a fase dita de nigredo, e que faz parte do processo de evolução, na psique do adepto, da sua Anima). Continuando: " Parecia ter-se besuntado com um unguento fétido, porque o cheiro que emanava, não sei se do corpo, se da boca, era insuportável, e o rosto, ou o que parecia ser um rosto, era brilhante e pastoso. Não se lhe distinguiam feições, nem expressões, nem a boca se abria para falar, apesar de dizer muito mais do que eu queria entender. A princípio não percebi quem era, mas depressa me lembrei de que só poderia ser ela, não poderia ser outra, certamente seria ela. E se fosse?(...) E se ela estivesse ali para me levar, uma vez que já tinha levado a minha entrevada avó? Aquela monstruosidade bexigosa e pestilenta só poderia ser a morte. A morte estava à minha frente, ainda que não totalmente nítida, mas estava. Só poderia ser ela. Só poderia ser a morte, eu já estava certa disso quando, aproveitando um raro abrir e fechar de olhos a que me permiti, deixei de a ver, desapareceu" (p.252).

A figura assustadora voltará de novo, Beta estava a sofrer alucinações que a gelavam de pavor.

Também aqui o autor escreve pela narradora uma memória antiga a da tremenda peste negra que assolou a Europa durante o séculos XIV e XV, e deixou no nosso imaginário (dos que leram ou ouviram contar) o terror de que algo assim pudesse voltar a acontecer.  Descobrimos sempre, ao longo desta leitura aparentemente simples e directa, o suporte antigo de uma cultura que é a nossa, por muito arcaica e esquecida. Surge com a sua presença forte nos momentos mais inesperados, mas tem de estar lá...a cultura é o suporte da Arte.

A narradora relaciona então esta aparição com uma mulher, a D. Aldina, cujo marido, o Fernando, morrera nas obras da Expo 98, soterrado sob uma camada de cimento despejada para uma sapata que estava a ser betonada, e dado o trágico acontecimento ninguém se atreveu a falar dele,  para retirar o corpo, o que atrasaria a obra, algo impensável. 

Talvez fosse o imponderável deste trágico acidente que estivesse a causar a Beta as sua assustadoras alucinações, como a da figura dançante que ao regressar a casa, já no fim do dia parecia fazer troça dela e dos seus medos. Agora a heroína da história já tem uma terapeuta a quem vai contando o que lhe acontece, o medo, por um lado e o desejo de não acreditar, por outro.

Mas já entretanto o autor nos apresentou fundamentos de um imaginário que na espécie humana permanece desde que existe, ainda que sofrendo sensíveis transformações: a Morte. Dos tempo modernos iríamos buscar o célebre Grito, de Munch, que teve várias versões, todas possíveis para a primeira alucinação, de formas vagas, mal definidas ainda, até a esta dança macabra, de tantas origens arcaicas e todas relacionadas com a visão e o temor da morte. 

O temor da morte está presente desde que nascemos, desde que há consciência da vida na nossa espécie. É o que nos diferencia dos animais de que descendemos, que não o têm.

Recomendo a entrevista de Hariri, que está no youtube, para quem deseje conhecer a sua opinião. 

Mas cito antes, por magnífica descrição, que inicia, com outros, o chamado Modernismo na literatura, que se inicia em 1910, mais ano menos ano e se manterá, segundo os especialistas, até 1935 ( morte de Pessoa, no nosso caso). Rilke, com os seus célebres Cadernos de Malte Laurids Brigge (existe a tradução de Paulo Quintela) oferece na sua narrativa da vida e descoberta de uma cidade dolorosa, Paris, mulheres com quem se cruza na rua e cujo rosto prefigura o da Morte, assustadora, mulheres cujo rosto se desfaz nas mãos tornando-se ferida (a ferida da miséria da vida) e acima de tudo na memória que traz consigo do seu antepassado, o Conde Brahe, cuja morte é descrita como algo de atroador que quando se manifesta invade o castelo inteiro com o seu sofrimento, a que nem os cães resistem, embora sejam tão próximos e já habituados

Rilke escreve esta sua obra-prima em 1910 e marca a diferença na narrativa do seu tempo, inaugurando o que chamamos de Modernismo no século XX. 

Vive pobre, ele que é aristocrata, numa cidade que descreve ao pormenor, como Rui Couceiro faz com o seu Porto e o seu Morro, só que não tem morro, tem um quartinho para onde se retira depois de ter secretariado o irascível Rodin, e toma as notas que formarão o Caderno tal como o conhecemos. Tudo, quando se encontra sozinho, o remete para a busca de uma identidade que ficou no castelo da sua família, e por onde ele vê passarem o pai e a mãe, tias, primas, fantasmas, criadagem que acorre quando o Senhor do castelo está presente.

Assim, pela recuperação de uma vida outra, revive o jovem Rilke, perdido na Paris implacável, o que procura na mudança, na diferença, no choque de dois mundos, o de outrora, em extinção, apenas vivo nas evocações ou alucinações da memória, e o do seu agora, em que ele tenta encontrar o seu lugar e destino de criação artística, justificação da sua alma, isto é da sua verdadeira e real existência. Lemos em Rilke um Baudelaire que também Rui Couceiro pode ter lido, La Charogne, a podridão do cadáver, mas lemos sobretudo magníficas páginas sobra o medo, os vários medos que de todo lado o acometem e ele não chega a entender. Percorre-se uma memória longa de um passado recente, onde perpassam jovens mulheres que poderiam ser amadas mas não o chegam a ser, e para total surpresa do leitor desprevenido, eis que o final dos Cadernos é precisamente com amor que termina, o amor que Beta também descobre. Mas ela, ao contrário do que acontece com Rilke será amada de volta, ao passo que ele não tem a certeza de nada. Ainda não. 

 

  



Monday, July 08, 2024

Ainda o Morro do Rui Couceiro

 Acordei a pensar que outro livro, de que me lembre, tem uma densidade tão grande sendo ao mesmo tempo forjado na actualidade do nosso quotidiano, com personagens que nos dizem muito do que somos e vivemos (do pequeno e do grande mundo) e do que partilhamos com vizinhanças primeiro desagradáveis, invasivas do nosso sossego, e depois gradualmente  trazendo do bairro tudo o que pode ser mais interessante e ela dá a conhecer, a grandes e pequenos.

Falo da Dona Lisete, que é quem mais fala na obra com a Beta (Elisabete de seu nome verdadeiro) tornando-se conselheira, condutora, amiga de verdade e de que a narradora se ocupa quase até às últimas páginas do que escreve. Personagem que é tratada com cuidado, mas também com uma ironia escondida a que o autor não consegue resistir, a ironia que alimenta o que vemos e nos faz não digo rir, mas reagir. Puxa pela acção, e na verdade ( se eu voltasse a falar das figuras centrais da alquimia) seria definida como Mãe da Obra (que vemos no Conto da Serpente Verde de Goethe, hoje já disponível em português pela tradução do João Barrento. Eu escrevi sobre o Conto um pequeno ensaio, dedicado a Paulo Quintela, o Prof. e amigo que ia comentar a minha tese de doutoramento e me disse explica lá isso que eu de alquimia não percebo nada, e fiz esse ensaio para ele. 

No cap.105, p.284,  a Dona Lisete tem direito ao seu momento de explosão popular, que não direi que é bipolar, porque conheço como aqueles vulgares desabafos de zanga momentânea são normais no Porto, não chegam a ser considerados palavrões, saem de bocas finas, como a da aristocracia que ali ainda predomina, e eu aprendi no âmbito da minha família de Ponte de Lima: a fúria da Dona Lisete até assustou por momentos a narradora, mas como ela própria diz, depressa se acalmou, e eu deixo ao leitor a curiosidade de aprender com ela...

A verdade é que todas as explosões a que se assistiu eram desabafos de impotência perante algo de desagradável sucedido, como a falta de água nas torneiras por exemplo. Não mais do que isso. Não havia maldade, havia revolta justa, pela incompetência, ou pela apetência e abuso de alguns que podiam, sobre os outros, que não podiam. O palavrão libertava.  

Ao contrário de alguns comentadores, que no seu entusiasmo quase paroxístico me deixam entender (é da idade...) que se atiraram ao Morro de cabeça, não a partiram mas não voltarão lá, outros interesses logo se apresentarão, eu acho e é o que vou pelo menos tentar, que se deve  voltar a esse Morro, ou melhor, a esse livro, até perceber que fio nele se esconde e nos conduz até ao momento em que a heroína, com o convívio do Dr. Belarmino, a sempre presente Dona Lisete, que a aconselha a ir pedir leitura de tarot a uma cartomante para adivinhar o que o futuro lhe reserva, chegar a conhecer e conviver com o Professor, que é colocado ali, onde ela vive e se apaixona por ele e ele por ela. Depois de tanto negro atravessado na sua vida , o peso da avó nos seus dias e nas suas noites, fica a saber que essa avó a protege, lá do céu onde se encontra e propicia um final amoroso e feliz com o seu Professor, que é delicado, não força a relação sexual quando ainda não desejada, mas antes a acaricia docemente e lhe envolve e aquece o corpo, como uma segunda pele. 

Da infância por vezes sofrida até à maturação de um corpo feito para amar e ser amado, assim vai o relato encaminhando a nossa leitura,  lembrando que em toda a vida, pobre ou menos pobre, de alguém como Beta, para lá da aparição assustadora da imagem da Morte, a vida afirma-se como vida mais plena ali oferecida para  viver, e pelo amor entregue a ser vivida plenamente. 

Chegou o momento mais difícil, o de entender o Morro como símbolo de uma cidade envolvente, feita de sobreposições variáveis, permanentes, inquietantes por vezes, quando a Morte, a grande, era de súbito avistada.

E de entender a Cidade como um grande coração que batia, desde que na Bíblia, ainda no Antigo Testamento, se descreve como Cain, depois de matar Abel é expulso do Paraíso, já amaldiçoado também pelo pecado de Adão e Eva. Cain, o "construtor de cidades".  Por que razão estariam as cidades ligadas ao pecado de Cain, ao  assassinato brutal de um irmão inocente? Queria Jeová, no tempo em que todos ainda falavam, castigar uma humanidade com um Mal permanente? Pois os alicerces que Cain erguia estavam viciados desde a origem.

Pode a cidade viciada tornar-se o verdadeiro símbolo do mal? Acontece com a Torre de Babel, e deus a castigará a seu modo, o mesmo com Sodoma e Gomorra, que não serão perdoadas pelos seus vícios, e será que o mal nunca erradicado se infiltra ainda hoje nas guerras, nas grandes catástrofes climatéricas, num planeta cuja zanga com os humanos é cada vez maior e parece não ter perdão nem ter fim?

Não chegou o momento ainda, para a narradora feliz, de assistir ao fim de um mundo que é o nosso, como diz Hariri, que vê na I.A. um mal ainda pior. Se no antigo Éden o primeiro par não tinha senão um arremeço de liberdade, pois duas árvores lhes estavam proibidas, que liberdade teriam os modernos pares em que o verdadeiro e o real podiam a todo instante ser modificados, e induzir em perigosos erros ? E Deus e a sua criação, no meio disto? Também a sua identidade poderia ser modificada? Hariri abre a discussão, mas deixa-a em aberto. Aconselha a que não se perca tempo a pensar o que é o significado da vida, pois isso apenas conduzirá a uma história e uma história não nos dará esse significado. Pensemos antes no que é o Sofrimento, o significado do Sofrimento (que vemos por todo o lado).

Por que razão existe e o que significa o Sofrimento, na vida? E sabemos como cada ser humano o que busca é a certeza, não a dúvida metódica da filosofia de outrora...

Tudo mudou no mundo.

Mas no Morro, por via de um amor simples e partilhado poderá haver salvação, sonhar com um futuro distante mas aguardando no fio do horizonte que o Criador acorde do seu sono zangado e nos perdoe. 

 

  

Saturday, July 06, 2024

Rui Couceiro, MORRO DA PENA VENTOSA, 2024

 Rui Couceiro é um escritor desta nova geração que não hesita em publicar um primeiro livro e logo de seguida um segundo, em que se procuram algumas raízes de memória vivida, e não podem ser muito antigas, dada a sua juventude. É um romance com marcas físicas de uma cidade, o Porto, e o seu morro ventoso. Suponho que ler é ir subindo devagar até esse morro que ele amou, com as suas pessoas próximas, de família, de vizinhança ou amizade. Mas sendo hoje, apesar de tão novo ainda, já alguém com espaço próprio conquistado, é EDITOR e AUTOR ao mesmo tempo, e a sua última obra (a primeira não acompanhei, como gosto de fazer com as obras que abordo, não me foi possível, tenho o meu morro onde ainda vou subindo devagar, estou a meio do caminho) - a sua última obra, dizia, explodiu logo em todo o facebook com anúncios de lançamentos,  apresentações e eventos vários por todo o lado, que o deixam feliz e sorridente nos retratos que vão sendo colocados para quem gosta de ver a cara de quem escreve. Mas é bom não esquecer que a pessoa real é uma, o narrador é outra coisa, um alter-ego também fazendo parte da ficção, um eu que se projecta ali por razões que escapam muitas vezes ao leitor. Neste caso, e no início, é de uma narradora que se trata. Uma jovem (assim a estou a imaginar) a quem uma avó apoia e ajuda com uma frase cheia de significado: " Beta, filha, tu não precisas de ser como os outros para seres certa" (p.13). No cap.4 percebe-se que está ali um anseio, ou mesmo um receio, de que a escrita não chegue a preencher o vazio que a noite traz consigo. Mas sabemos, quem já viveu e leu o bastante, que é na noite que por vezes os sonhos nos preenchem, que se formam os sentidos que mais iluminam o caminho dos sinais em que as pessoas e os seus múltiplos eus se perdem, ou se encontram. 

Não é pois um mero acaso a escolha de uma voz feminina para assumir esta narrativa, não como heterónimo pessoano, demasiado conhecidos já todos eles, mas como impulso vital de uma necessidade íntima, a Anima que Jung seguindo os velhos alquimistas define como a oposição do feminino ( área do sentimento, da emoção) que complementa, por oposição, a racionalidade do masculino (Animus) que tem no nosso equilíbrio outras funções.

Na psique humana, tanto na mulher como no homem ora predomina  um desses elementos ora outro, e isso definirá comportamentos, escolhas, mesmo destinos. Por aqui, por esta voz, onde seremos conduzidos? Onde se esconde o sentido? E evoco o meu já tão habitual Hoelderlin (não tenho umlaut no computador, escrevo à antiga), no seu célebre verso do Hino à Memória (Mnemosyne) : "somos um sinal que perdeu o sentido..."

Rui procura, como Jung também salientaria, na projecção do feminino, o tal sentido que falta. Escreve a sua narrativa no feminino e na primeira pessoa, para não deixar dúvidas, pelo menos por enquanto.

Mas assim como Clarice Lispector, na sua HORA DA ESTRELA deseja fazer a experiência de uma voz masculina, entremeando e alterando a prosa que decorria, fluente, deixa ver que a voz afinal era sempre a mesma, a dela, e a introdução de um rapaz que olha e descreve o que vive em nada melhora ou altera o que é a voz - aqui entra a marca de estilo -  de uma só criadora, Clarice e só ela.

Veremos com Rui Couceiro. 

No cap. 6. intitulado DO FUNDO DO MEU CAIXÃO, intensifica-se esta ideia, ou este sentimento, que é do negro ( os alquimistas , ou Jung, herdeiro legítimo desse imaginário, designariam no processo de sublimação por nigredo), que é preciso absorver essa negrura da depressão para poder libertar-se e seguir para outra fase: a escrita? a ideia de assim, tal como se é, ser feliz? ou de necessitar em absoluto de recuperar um espaço habitado por múltiplas vozes e deixar que se cruzem.

 Não vou escolher um sentido para a escrita, mas deixar ao leitor o que pode em qualquer momento ter despoletado esta imagem do caixão em que a narradora se deita: a série do CSI one sabemos que a jovem Abby, gótica assumida, se esconde para dormir? Influência do romantismo negro de Poe? ou uma das frequentes imagens alquímicas em que surge o adepto deitado num caixão, indicando que a "morte em vida" conduz à sublimação que se procura? Há muitas e não vou citar aqui. O importante é que é reconduzida ao regaço da sua avó, já referida, e tem a ideia, que considera redentora, de refazer com a imagem dela no seu caixão, um caixão para si, que encomenda (estando nos tempos de hoje...) on line a uma firma de confiança. 

"E não é que funciona?" exclama. Recomeça a escrever.

"Foi já dentro deste caixão qu escrevi o texto que antecedeu este. Devo clarificar, todavia, que não escrevo apenas quando estou dentro dele, no qual me deito com duas almofadas sob a cabeça" (p.17). E continua: " Também gosto de escrever sentada na sanita". Ah Joyce, tão citado mas entendido por poucos, é difícil de ler, dizem, mas não têm culpa, são más as traduções e poucos sabem ler o original. Não chegam ao explosivo monólogo de Molly Bloom, que Graça Lobo, grande actriz do meu tempo, representou com a sua voz grave mas tão bem articulada, no Teatro Nacional Dona Maria II.  Um monólogo em que James Joyce adquire a sua voz feminina, carregada de desejo e frustração, intercalando essa voz sem abdicar da sua.

Continuando numa cidade que viveu como sua e da sua avó, Rui Couceiro descreve com pormenor realista o espaço que também ele se relaciona (acharão que exagero?) com a alma e o sentimento de perda, no passado e no presente, a perda da sua avó, que deseja evocar e a sua, que não encontra caminho, por isso se prende aos pequenos e muitos pormenores das pequenas divisões de um apartamento sem lareira nem banheira, num quarto andar de um prédio estreito, como eram outrora muitos dos prédios antigos, carregados de vida, digo eu, como se fossem colmeias a produzir vida incessante. 

Adiante entrará o prazer de um banho de verdade numa banheira a sério. Serve de novo para evocar o amor de uma neta (foge-me a mão para neto...) pela sua avó, envelhecida, corpo enrugado, "amarrotado" escreve ela/ele, cabelo comprido definhando tal como o corpo, é fácil de supôr. Crua, não digo cruel, mas crua, por ser verdadeira, a observação das unhas dos pés que a narradora também descreve, admirada quase por crescerem tão depressa. É minuciosa a descrição de todos os detalhes de um corpo velho, que tem de ser cuidado, da roupa que lhe vestem, da paciência, neste caso, com que pintam uns lábios de vermelho para que se possa perceber melhor que há sangue a correr nas veias, a avó está velha, mas não morta. Couceiro escolhe a narrativa da tradicional, no século XIX sobretudo, literatura negra, do pormenor que entristece ou mesmo repugna, num desafio à produção da moda actual, de pura (fingida) alegria permanente. Não é alegre o mundo dos velhos, o seu corpo não apetece e o riso desapareceu gradualmente. Rui não quer fingimentos, contudo assumiu outra voz para uma narrativa que ia ser pesada. Amara assim tanto a sua avó, esta heroína de ficção que se situa num imaginário doloroso quase de tão voluntariamente realista? As páginas alongam-se nos pormenores que são os de uma Cuidadora, que vão dos banhos às toilettes, à memória de alguma canção antiga, a um  pequeno passeio na rua, uma ida à Igreja, enfim a rotina que toma conta das horas. E um conselho para que não se chore a morte, pois nos descendentes a vida é eterna. Deduzo que esta avó era crente, e que a suposta neta respeitasse a sua fé, para não a magoar em fim de vida.

Mas o que nos vai dizendo o romance sobre o seu autor, o Rui Couceiro? Por trás de que biombo se esconde e desafia a verdade que é ou será ou já foi, a sua? Entramos no miolo do livro, onde supostamente a narrativa avançará, não para um desfecho prematuro, mas para uma mudança que mantenha no leitor a curiosidade e o desejo de continuar. A curiosidade, digo mais, o espanto, a admiração surpreendem o leitor pelo súbito desabar de situações escolhidas a dedo para esse efeito, como se de súbito houvesse ali a meio do percurso narrativo uma crise de forte bi-polarismo explodindo nm divã freudiano, a meia luz, numa longa série de palavrões de efeito grosseiro, mais do que rude, brutal, como se passássemos de um Proust a um Bukowski que diz, cito de cor, "na minha obra só escrevo o que vejo". Parece ser o que Rui deseja, escrever o que vê, e só. Mas há aqui apesar de tudo alguma coisa de incoerente, porque tem nas páginas a que me refiro não apenas o que vê, mas o que cheira, o que ouve, o que a espanta (só pode ser) uma criança descrita na evocação desse passado, entre os 4 e os 8 anos. Dirão, sim e não: agora quando escreve é um adulto a meio da vida, e no início de carreira, que se adivinha frutuosa. Como leitora atenta que sou, a paixão descrita com ênfase pelo Futebol Clube do Porto na pessoa do seu Presidente, não permite que se fale do Macaco, não o do Jardim Zoológico, mas o que se revela, na mitologia desse clube, um dos seus valentes guardas e protectores? Digo, com o Herman José  - não havia necessidade...enfim, continuemos, o livro pede leitura. 

A narradora, cuja paixão e carinho pela avó levava a uma estranheza, onde estão pai, mãe, avô? Justifica no seguimento das suas evocações os traumas de infância e rejeição sofridos e como chega então à bruta necessidade de contar, quase gritar, com rudeza este apontamento que ficara para trás, não esquecido, mas ao modo freudiano, recalcado bem no fundo do seu inconsciente, como se nunca tivessem existido esses e outros personagens que habitaram a sua vida, ainda que por breves tempos. É o autor que nos diz que hoje em dia o Morro é condomínio de luxo, algo que os lisboetas como eu também já descobriram nos seus bairros antigos populares. Os que ainda não são de luxo aguardam para vir a ser.

Por outras palavras, a narradora cuja infância é evocada do interior de um caixão ou da sanita, quando de outras necessidades (eu lisboeta diria retrete, como aprendi, mas perdoo esta escolha, que vem da escola, ou do bairro, ou até da família, é possível num meio de pequena burguesia (e sem ofensa, lembra a canção da pronúncia do Norte...) por outras palavras aguarda-se agora o momento que marque evolução e mesmo mudança no processo narrativo, devolvendo alguma feminilidade à voz da Beta, a figura da heroína escolhida, pois o que ficou para trás é altamente masculino, os homens exprimem-se de modo diferente das mulheres, mesmo nos palavrões, na rudeza e nas situações expressas de modo intencional e provocatório para o leitor imaginário que Rui Couceiro terá na sua cabeça. A verdade é que a crueza existe e continua, certamente, mas numa obra literária actual fará ainda sentido? A perversidade não será mais psicológica, hoje em dia, do que o palavrão que se encontra em dicionários? Mesmo num enorme, de sinónimos? Mas entende-se contudo que há de facto ali, na narradora, uma exigência de descarga emocional e verbal que a liberta do peso contido que a abafa, o que faz sentido, dado o caixão em que se fecha parte da sua existência. Aqui está uma escolha da palavra que tinha faltado, a da existência fechada. O autor (narradora) abre a existência por via da descrição do Morro, que conhece e dará mais tarde a conhecer a outros, como guia.

Voltando a Bukowski, ele ensina que o difícil é dizer o complicado em palavras simples. E de facto assim é. Nada mais difícil do que o simples...A experiência ensina. E quando não, assassina o que foi um primeiro impulso genuíno e se perde no caminho dos sinais e do sentido.

No cap.29, O CORPO LANÇADO, a criança surge crescida, de "corpo lançado", numa adolescência apetecível, e dado o que já se leu do autor e da sua narradora adivinhamos que não poderá ser vivida normalmente, reservando e guardando o seu corpo, que temo, neste momento da leitura, que venha a sofrer violência numa cidade e num ambiente todo ele de extrema violência que só terá o pior para lhe oferecer. Contudo no cap. seguinte o que se verifica é a descrição de um quebranto, uma espécie de depressão, de melancolia instalada como se tivesse sido lançada alguma maldição sobre a mente e não apenas o corpo da jovem. A avó, preocupada, leva-a para um exorcista que fará o necessário para a limpar do perigo. Estaremos com elas e suas rezas e benzeduras no bairro do Cruzinho. 

Portugal, país que se diz de fé sólida, é na verdade um país de crendice, de rezas e quebra-medos, que tem mais folcrole na cultura  do que religião na sua vivência escondida. Ainda há, e haverá sempre, pois o mal existe, padres para fazer exorcismos e vamos ver neste capítulo a descrição da "lavagem" da pobre Beta, digna de um filme, na verdade. O realismo é total.

Interessante, em relação ao conhecimento da cidade, é a descrição que Beta, agora guia turística, vai fazendo dos bairros, das ruas, cobrindo rios que passam por baixo, e encantam os estrangeiros que a ouvem.

O romance foi adquirindo, sem que se dê por isso, pois as personagens que se cruzam também nos chamam a atenção, junto com a doença   progressiva da avó, uma dimensão bem mais do que a puramente literária, sociológica, e permitindo até que alguém se debruçasse para essa dimensão numa tese académica. É de um Porto desconhecido que se trata, e não apenas para os estrangeiros, uma cidade que sofre os desacatos e abusos de outras, como Lisboa, onde também os prédios mais interessantes são comprados e os moradores expulsos para outras paragens, mas na verdade aqui, pela mão de Rui Couceiro o que vem ao de cima é um olhar que vê o real para lá do real, um olhar feito de amor parecendo que é de medo, de horror ou mesmo ódio por vezes.

O mundo ali existe, e não é em ponto pequeno, é numa abrangência larga, que vai das personagens às suas circunstâncias, de que a língua e sua violência vocabular fazem parte, conduzindo o leitor a um conhecimento que ele não detém e a narradora lhe vai página a página revelando.

Estamos perante o reverso de uma Montanha Mágica a que falta, por via do que foi o propósito de Thomas Mann na sua obra gigantesca, o pensamento filosófico, elitista, dos eternos doentes que a habitam, mas que em contrapartida nos oferece um morro de pura vida real, na sua crueza não fantasiada mas vivida. Com Thomas Mann temos o luxo de ficar distantes do sofrimento, neste Morro da Pena Ventosa somos forçados a vivê-lo,  ele se funde-se connosco por via das descrições de minúcia que nada têm de abstracto, pois o fim do livro não é o de nos abstrair do que dói, mas fazer doer ainda mais, se possível. Estamos perante uma anti-Montanha Mágica, e este livro deveria poder ser objecto de estudo em ambas as dimensões que refiro, a sociológica e a de uma certa e nova visão filosófica da cidade real.

Aqui entraria, mas a dimensão do post não me permite grandes elaborações, na questão do que seria hoje a cidade justa de um Platão, por exemplo no livro X da República. Governada por sábios pensadores, ajustada pelas suas mãos às necessidades de cada um, e de onde os poetas teriam sido expulsos por deles não depender nunca a ordem, mas a desordem a que a pulsão criadora os levava. O Morro de Rui Couceiro também neste aspecto poderia (deveria ? ) ser estudado. Há ali matéria que é de amor, mas também de perversão, perseguição e ódio. Um retrato do mundo que não caberia na Tempestade de Shakespeare?  Um Morro onde do alto se adivinha, ou se vive a natureza à solta, que Caliban representa?

O imaginário da cidade (que já foi título de um colóquio) pode evocar uma cidade fundadora, como na República de Platão, ou o mundo que Hobbes descreve onde a guerra ( o mal) é predominante. 

  Terei de ficar por aqui, deixando que o leitor continue, de mente aberta e prazeirosa, como dizem os brasileiros.

 


 




   



  

 

   




  


Thursday, July 04, 2024

Um Último Pedido

 

Um Último Pedido

Desçam devagar pelo caminho

que não cheguei a subir

e agora vou descer

pela vossa mão

sem medo de tropeçar

nas pedras que ficaram.

Chorar não faz sentido,

deitem as cinzas ao rio

e a água que as leve para o mar...


4 de Julho, 2024