Rui Couceiro é um escritor desta nova geração que não hesita em publicar um primeiro livro e logo de seguida um segundo, em que se procuram algumas raízes de memória vivida, e não podem ser muito antigas, dada a sua juventude. É um romance com marcas físicas de uma cidade, o Porto, e o seu morro ventoso. Suponho que ler é ir subindo devagar até esse morro que ele amou, com as suas pessoas próximas, de família, de vizinhança ou amizade. Mas sendo hoje, apesar de tão novo ainda, já alguém com espaço próprio conquistado, é EDITOR e AUTOR ao mesmo tempo, e a sua última obra (a primeira não acompanhei, como gosto de fazer com as obras que abordo, não me foi possível, tenho o meu morro onde ainda vou subindo devagar, estou a meio do caminho) - a sua última obra, dizia, explodiu logo em todo o facebook com anúncios de lançamentos, apresentações e eventos vários por todo o lado, que o deixam feliz e sorridente nos retratos que vão sendo colocados para quem gosta de ver a cara de quem escreve. Mas é bom não esquecer que a pessoa real é uma, o narrador é outra coisa, um alter-ego também fazendo parte da ficção, um eu que se projecta ali por razões que escapam muitas vezes ao leitor. Neste caso, e no início, é de uma narradora que se trata. Uma jovem (assim a estou a imaginar) a quem uma avó apoia e ajuda com uma frase cheia de significado: " Beta, filha, tu não precisas de ser como os outros para seres certa" (p.13). No cap.4 percebe-se que está ali um anseio, ou mesmo um receio, de que a escrita não chegue a preencher o vazio que a noite traz consigo. Mas sabemos, quem já viveu e leu o bastante, que é na noite que por vezes os sonhos nos preenchem, que se formam os sentidos que mais iluminam o caminho dos sinais em que as pessoas e os seus múltiplos eus se perdem, ou se encontram.
Não é pois um mero acaso a escolha de uma voz feminina para assumir esta narrativa, não como heterónimo pessoano, demasiado conhecidos já todos eles, mas como impulso vital de uma necessidade íntima, a Anima que Jung seguindo os velhos alquimistas define como a oposição do feminino ( área do sentimento, da emoção) que complementa, por oposição, a racionalidade do masculino (Animus) que tem no nosso equilíbrio outras funções.
Na psique humana, tanto na mulher como no homem ora predomina um desses elementos ora outro, e isso definirá comportamentos, escolhas, mesmo destinos. Por aqui, por esta voz, onde seremos conduzidos? Onde se esconde o sentido? E evoco o meu já tão habitual Hoelderlin (não tenho umlaut no computador, escrevo à antiga), no seu célebre verso do Hino à Memória (Mnemosyne) : "somos um sinal que perdeu o sentido..."
Rui procura, como Jung também salientaria, na projecção do feminino, o tal sentido que falta. Escreve a sua narrativa no feminino e na primeira pessoa, para não deixar dúvidas, pelo menos por enquanto.
Mas assim como Clarice Lispector, na sua HORA DA ESTRELA deseja fazer a experiência de uma voz masculina, entremeando e alterando a prosa que decorria, fluente, deixa ver que a voz afinal era sempre a mesma, a dela, e a introdução de um rapaz que olha e descreve o que vive em nada melhora ou altera o que é a voz - aqui entra a marca de estilo - de uma só criadora, Clarice e só ela.
Veremos com Rui Couceiro.
No cap. 6. intitulado DO FUNDO DO MEU CAIXÃO, intensifica-se esta ideia, ou este sentimento, que é do negro ( os alquimistas , ou Jung, herdeiro legítimo desse imaginário, designariam no processo de sublimação por nigredo), que é preciso absorver essa negrura da depressão para poder libertar-se e seguir para outra fase: a escrita? a ideia de assim, tal como se é, ser feliz? ou de necessitar em absoluto de recuperar um espaço habitado por múltiplas vozes e deixar que se cruzem.
Não vou escolher um sentido para a escrita, mas deixar ao leitor o que pode em qualquer momento ter despoletado esta imagem do caixão em que a narradora se deita: a série do CSI one sabemos que a jovem Abby, gótica assumida, se esconde para dormir? Influência do romantismo negro de Poe? ou uma das frequentes imagens alquímicas em que surge o adepto deitado num caixão, indicando que a "morte em vida" conduz à sublimação que se procura? Há muitas e não vou citar aqui. O importante é que é reconduzida ao regaço da sua avó, já referida, e tem a ideia, que considera redentora, de refazer com a imagem dela no seu caixão, um caixão para si, que encomenda (estando nos tempos de hoje...) on line a uma firma de confiança.
"E não é que funciona?" exclama. Recomeça a escrever.
"Foi já dentro deste caixão qu escrevi o texto que antecedeu este. Devo clarificar, todavia, que não escrevo apenas quando estou dentro dele, no qual me deito com duas almofadas sob a cabeça" (p.17). E continua: " Também gosto de escrever sentada na sanita". Ah Joyce, tão citado mas entendido por poucos, é difícil de ler, dizem, mas não têm culpa, são más as traduções e poucos sabem ler o original. Não chegam ao explosivo monólogo de Molly Bloom, que Graça Lobo, grande actriz do meu tempo, representou com a sua voz grave mas tão bem articulada, no Teatro Nacional Dona Maria II. Um monólogo em que James Joyce adquire a sua voz feminina, carregada de desejo e frustração, intercalando essa voz sem abdicar da sua.
Continuando numa cidade que viveu como sua e da sua avó, Rui Couceiro descreve com pormenor realista o espaço que também ele se relaciona (acharão que exagero?) com a alma e o sentimento de perda, no passado e no presente, a perda da sua avó, que deseja evocar e a sua, que não encontra caminho, por isso se prende aos pequenos e muitos pormenores das pequenas divisões de um apartamento sem lareira nem banheira, num quarto andar de um prédio estreito, como eram outrora muitos dos prédios antigos, carregados de vida, digo eu, como se fossem colmeias a produzir vida incessante.
Adiante entrará o prazer de um banho de verdade numa banheira a sério. Serve de novo para evocar o amor de uma neta (foge-me a mão para neto...) pela sua avó, envelhecida, corpo enrugado, "amarrotado" escreve ela/ele, cabelo comprido definhando tal como o corpo, é fácil de supôr. Crua, não digo cruel, mas crua, por ser verdadeira, a observação das unhas dos pés que a narradora também descreve, admirada quase por crescerem tão depressa. É minuciosa a descrição de todos os detalhes de um corpo velho, que tem de ser cuidado, da roupa que lhe vestem, da paciência, neste caso, com que pintam uns lábios de vermelho para que se possa perceber melhor que há sangue a correr nas veias, a avó está velha, mas não morta. Couceiro escolhe a narrativa da tradicional, no século XIX sobretudo, literatura negra, do pormenor que entristece ou mesmo repugna, num desafio à produção da moda actual, de pura (fingida) alegria permanente. Não é alegre o mundo dos velhos, o seu corpo não apetece e o riso desapareceu gradualmente. Rui não quer fingimentos, contudo assumiu outra voz para uma narrativa que ia ser pesada. Amara assim tanto a sua avó, esta heroína de ficção que se situa num imaginário doloroso quase de tão voluntariamente realista? As páginas alongam-se nos pormenores que são os de uma Cuidadora, que vão dos banhos às toilettes, à memória de alguma canção antiga, a um pequeno passeio na rua, uma ida à Igreja, enfim a rotina que toma conta das horas. E um conselho para que não se chore a morte, pois nos descendentes a vida é eterna. Deduzo que esta avó era crente, e que a suposta neta respeitasse a sua fé, para não a magoar em fim de vida.
Mas o que nos vai dizendo o romance sobre o seu autor, o Rui Couceiro? Por trás de que biombo se esconde e desafia a verdade que é ou será ou já foi, a sua? Entramos no miolo do livro, onde supostamente a narrativa avançará, não para um desfecho prematuro, mas para uma mudança que mantenha no leitor a curiosidade e o desejo de continuar. A curiosidade, digo mais, o espanto, a admiração surpreendem o leitor pelo súbito desabar de situações escolhidas a dedo para esse efeito, como se de súbito houvesse ali a meio do percurso narrativo uma crise de forte bi-polarismo explodindo nm divã freudiano, a meia luz, numa longa série de palavrões de efeito grosseiro, mais do que rude, brutal, como se passássemos de um Proust a um Bukowski que diz, cito de cor, "na minha obra só escrevo o que vejo". Parece ser o que Rui deseja, escrever o que vê, e só. Mas há aqui apesar de tudo alguma coisa de incoerente, porque tem nas páginas a que me refiro não apenas o que vê, mas o que cheira, o que ouve, o que a espanta (só pode ser) uma criança descrita na evocação desse passado, entre os 4 e os 8 anos. Dirão, sim e não: agora quando escreve é um adulto a meio da vida, e no início de carreira, que se adivinha frutuosa. Como leitora atenta que sou, a paixão descrita com ênfase pelo Futebol Clube do Porto na pessoa do seu Presidente, não permite que se fale do Macaco, não o do Jardim Zoológico, mas o que se revela, na mitologia desse clube, um dos seus valentes guardas e protectores? Digo, com o Herman José - não havia necessidade...enfim, continuemos, o livro pede leitura.
A narradora, cuja paixão e carinho pela avó levava a uma estranheza, onde estão pai, mãe, avô? Justifica no seguimento das suas evocações os traumas de infância e rejeição sofridos e como chega então à bruta necessidade de contar, quase gritar, com rudeza este apontamento que ficara para trás, não esquecido, mas ao modo freudiano, recalcado bem no fundo do seu inconsciente, como se nunca tivessem existido esses e outros personagens que habitaram a sua vida, ainda que por breves tempos. É o autor que nos diz que hoje em dia o Morro é condomínio de luxo, algo que os lisboetas como eu também já descobriram nos seus bairros antigos populares. Os que ainda não são de luxo aguardam para vir a ser.
Por outras palavras, a narradora cuja infância é evocada do interior de um caixão ou da sanita, quando de outras necessidades (eu lisboeta diria retrete, como aprendi, mas perdoo esta escolha, que vem da escola, ou do bairro, ou até da família, é possível num meio de pequena burguesia (e sem ofensa, lembra a canção da pronúncia do Norte...) por outras palavras aguarda-se agora o momento que marque evolução e mesmo mudança no processo narrativo, devolvendo alguma feminilidade à voz da Beta, a figura da heroína escolhida, pois o que ficou para trás é altamente masculino, os homens exprimem-se de modo diferente das mulheres, mesmo nos palavrões, na rudeza e nas situações expressas de modo intencional e provocatório para o leitor imaginário que Rui Couceiro terá na sua cabeça. A verdade é que a crueza existe e continua, certamente, mas numa obra literária actual fará ainda sentido? A perversidade não será mais psicológica, hoje em dia, do que o palavrão que se encontra em dicionários? Mesmo num enorme, de sinónimos? Mas entende-se contudo que há de facto ali, na narradora, uma exigência de descarga emocional e verbal que a liberta do peso contido que a abafa, o que faz sentido, dado o caixão em que se fecha parte da sua existência. Aqui está uma escolha da palavra que tinha faltado, a da existência fechada. O autor (narradora) abre a existência por via da descrição do Morro, que conhece e dará mais tarde a conhecer a outros, como guia.
Voltando a Bukowski, ele ensina que o difícil é dizer o complicado em palavras simples. E de facto assim é. Nada mais difícil do que o simples...A experiência ensina. E quando não, assassina o que foi um primeiro impulso genuíno e se perde no caminho dos sinais e do sentido.
No cap.29, O CORPO LANÇADO, a criança surge crescida, de "corpo lançado", numa adolescência apetecível, e dado o que já se leu do autor e da sua narradora adivinhamos que não poderá ser vivida normalmente, reservando e guardando o seu corpo, que temo, neste momento da leitura, que venha a sofrer violência numa cidade e num ambiente todo ele de extrema violência que só terá o pior para lhe oferecer. Contudo no cap. seguinte o que se verifica é a descrição de um quebranto, uma espécie de depressão, de melancolia instalada como se tivesse sido lançada alguma maldição sobre a mente e não apenas o corpo da jovem. A avó, preocupada, leva-a para um exorcista que fará o necessário para a limpar do perigo. Estaremos com elas e suas rezas e benzeduras no bairro do Cruzinho.
Portugal, país que se diz de fé sólida, é na verdade um país de crendice, de rezas e quebra-medos, que tem mais folcrole na cultura do que religião na sua vivência escondida. Ainda há, e haverá sempre, pois o mal existe, padres para fazer exorcismos e vamos ver neste capítulo a descrição da "lavagem" da pobre Beta, digna de um filme, na verdade. O realismo é total.
Interessante, em relação ao conhecimento da cidade, é a descrição que Beta, agora guia turística, vai fazendo dos bairros, das ruas, cobrindo rios que passam por baixo, e encantam os estrangeiros que a ouvem.
O romance foi adquirindo, sem que se dê por isso, pois as personagens que se cruzam também nos chamam a atenção, junto com a doença progressiva da avó, uma dimensão bem mais do que a puramente literária, sociológica, e permitindo até que alguém se debruçasse para essa dimensão numa tese académica. É de um Porto desconhecido que se trata, e não apenas para os estrangeiros, uma cidade que sofre os desacatos e abusos de outras, como Lisboa, onde também os prédios mais interessantes são comprados e os moradores expulsos para outras paragens, mas na verdade aqui, pela mão de Rui Couceiro o que vem ao de cima é um olhar que vê o real para lá do real, um olhar feito de amor parecendo que é de medo, de horror ou mesmo ódio por vezes.
O mundo ali existe, e não é em ponto pequeno, é numa abrangência larga, que vai das personagens às suas circunstâncias, de que a língua e sua violência vocabular fazem parte, conduzindo o leitor a um conhecimento que ele não detém e a narradora lhe vai página a página revelando.
Estamos perante o reverso de uma Montanha Mágica a que falta, por via do que foi o propósito de Thomas Mann na sua obra gigantesca, o pensamento filosófico, elitista, dos eternos doentes que a habitam, mas que em contrapartida nos oferece um morro de pura vida real, na sua crueza não fantasiada mas vivida. Com Thomas Mann temos o luxo de ficar distantes do sofrimento, neste Morro da Pena Ventosa somos forçados a vivê-lo, ele se funde-se connosco por via das descrições de minúcia que nada têm de abstracto, pois o fim do livro não é o de nos abstrair do que dói, mas fazer doer ainda mais, se possível. Estamos perante uma anti-Montanha Mágica, e este livro deveria poder ser objecto de estudo em ambas as dimensões que refiro, a sociológica e a de uma certa e nova visão filosófica da cidade real.
Aqui entraria, mas a dimensão do post não me permite grandes elaborações, na questão do que seria hoje a cidade justa de um Platão, por exemplo no livro X da República. Governada por sábios pensadores, ajustada pelas suas mãos às necessidades de cada um, e de onde os poetas teriam sido expulsos por deles não depender nunca a ordem, mas a desordem a que a pulsão criadora os levava. O Morro de Rui Couceiro também neste aspecto poderia (deveria ? ) ser estudado. Há ali matéria que é de amor, mas também de perversão, perseguição e ódio. Um retrato do mundo que não caberia na Tempestade de Shakespeare? Um Morro onde do alto se adivinha, ou se vive a natureza à solta, que Caliban representa?
O imaginário da cidade (que já foi título de um colóquio) pode evocar uma cidade fundadora, como na República de Platão, ou o mundo que Hobbes descreve onde a guerra ( o mal) é predominante.
Terei de ficar por aqui, deixando que o leitor continue, de mente aberta e prazeirosa, como dizem os brasileiros.