Friday, March 10, 2023

Oníricas, de Ana Marques Gastão

 Quem já conhece a obra de Ana Marques Gastão não estranhará que o título contenha um duplo sentido, que nos faz pensar (tudo o que ela escreve nos obriga a pensar, não deixa que fiquemos pela rama).

Oníricas, um conjunto de sonhos que transformam as sensações, as memórias que ficam, em poemas? Ou poemas que aspiram a ser sonhos e permitam aos sonhos essas revelações contidas neles?

Ana dá  no Prefácio um fio condutor de leitura a quem não entenda por completo a subliminal cultura, o desejo do risco na página do poema, para mostrar que na arte tudo é expressão, mas também que tal como nas crianças riscar é exprimir um movimento, um impulso carregado para o próprio (e quem sabe para quem está ao lado) de algum sentimento inesperado? 

A arte é o inesperado. Sem surpresa não há arte, e o poeta bem sabe que muitas vezes, sem ele pedir nada, o verso o toma e surpreende, e ele então não faz mais do que obedecer, empresta a sua mão, a sua imaginação, e deixa fluir ideias, imagens, pensamentos. 

Heidegger reflecte sobre o que é PENSAR. Ana reflecte sobre o que é CRIAR. Em ambos uma raiz comum,  um Sinal que adquiriu um sentido, e na inovação do pensamento, ou do poema criado se manifesta. Aqui se relembra Hoelderlin, o seu hino à memória.

Dou a palavra à autora:

"Os poemas de Oníricas nasceram, na grande maioria, da transcrição de sonhos ocorridos durante décadas. Partem, por isso, da leitura sistemática de uma colecção de cadernos que fui reunindo. Apesar de o convívio próximo com o mundo além-consciência e a leitura e a escrita terem funcionado como instrumentos de um método experimental, só o processo de transfiguração poética me permitiu reflectir, do modo mais livre possível, sobre o universo da palavra por meio da qual nem a mão sabe por onde vai".

Escreve, mas não partilha do culto da escrita automática de um Breton, pois a sua escrita é cuidada e revista, talvez porque emana de um fundo que ela conhece bem, o mundo dos arquétipos que se revelam nos sonhos que se apontam. Outros não se apontam, não pertencem ao outro mas apenas a este mundo banal, mais quotidiano. 

Curiosamente, como em Nuno Félix, ou Rosário Pedreira, que neste ano falaram sobre o corpo (humano, como se houvesse outro, que fosse apenas onda e não matéria) também Ana tem um conjunto que tem por título CORPOS. 

Interessou-me especialmente, pela relação com os anteriores e as suas publicações. Os corpos sofrem e em tempos de guerra o despedaçar torna-se tão visível que nos dói a sua dôr. Mas também dançam, no seu balançar, estes corpos de cuja morte, sem a citar, se fala: "dança de pé com os pés /  e agora larga o chão, / a prisão, a terra / o falso balanço da vida."

Pensamento de que se é salvo pela palavra poética.

Adiante, em TRONCO, é descrito o processo de salvação, os olhos fechando sobre um apelo : " torna-me informe, / diz o meu nome / pede-me o que nem sei imaginar. / rouba-me o poema...." culminando numa série de fragmentos que levam ao verso final " até o coração rebentar".

É isso, não uma implosão no onírico, mas uma explosão na palavra.

Só a palavra salva. Ao princípio era o Verbo...e o Verbo se fez Carne, não pode haver Deus sem Corpo,  Espírito sem Matéria, Poesia que não nasça de um profundo Silêncio onde o sonho se esconde e o coração bate.


 


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