Thursday, March 16, 2023

Reflexão para um Amigo, Vítor Gameiro Pais, Lucília e Cecília, um conto.

 Trata-se de uma pergunta sobre um Conto, o que é,  afinal.

Foster definia o género Conto pelo limite de número de páginas, narrativa curta não mais de 30 a 50 páginas. A partir daí seria novela, ou romance, se ainda maior. Mas na verdade há narrativas curtas, short stories ou mesmo curtíssimas, a partir do momento em que os Modernistas alteram ou mesmo destroem os conceitos de género.

Mas a pergunta que me faz um amigo é outra, se pode ser conto uma prosa que escreveu e me pediu para ler. Leio. Não é a dimensão que interessa, mas o modo de escrita. Vê-se que escreveu  um texto quase neo-realista pela atenção ao pormenor, ao detalhe, desde o cheiro do autocarro à irritação que lhe causa uma velha que lhe passa à frente. Ele, que chegou primeiro ao lugar, não se dispõe a levantar-se e a dizer-lhe sente-se aqui. Mas alguém que o irrita ainda mais ofereceu o lugar. Chama-lhe idiota. Está a adjectivar quem o aborrece, nesse dia que parece de todos os aborrecimento, numa curta viagem de regresso a casa.

O regresso a casa, eis um bom motivo literário para desenvolver, mesmo não tendo lido a obra dos vários psicólogos que se ocuparam dele.  O mesmo do autocarro, que é mais caixote onde se empilham humanos, ou mesmo caixão, de gente que ainda não morreu e ali fechada se revolta e enche de pontapés a tampa  que desceram.   

O tom é de alguém que está vivo e contrariado, a quem tudo aborrece, e é desse aborrecimento que dá conta. 

Se pode ser um conto? Pode, mas espera-se que tenha uma continuidade de outros que se lhe sigam e formem um volume, que diremos de contos. E quanto a este em concreto é mais quem sabe um começo, a que o conjunto de outros definirá a questão (que muitos desejam) de "género".

Assim sozinho leio o conto como uma narrativa que poderá ser, ou não, um "arranque" para o autor continuar a sua escrita, de que sente falta.

O que ele deseja é escrever, continuar a escrever, o que não lhe tem acontecido. Sente a falta desse exercício da palavra, a que exprima os seus sentimentos, seja em prosa ou em verso (ele também escreve poemas). A pulsão da escrita surge, não pode ser imposta, apenas desejada, mas quem sabe se esta narrativa de autocarro, ainda que de zanga com o mundo à volta, será já um princípio? O que vier a seguir dirá. Em vez de conto pode vir a ser uma página de diário.

Os modos amargos,  de tom coloquial ou mesmo com algum termo mais grosseiro pelo meio, estão na moda. Cultiva-se a inquietação, a impaciência, a infelicidade da auto-comiseração. E tudo de modo apressado, não vá a palavra fugir. Mas o que fica, além da ideia de ser conto? Ser breve não é só por si uma qualidade literária. E um olhar desabrido sobre o mundo real também não. O que falta, na escrita, é a surpresa que nos deve trazer, a originalidade, a inovação de algum acontecimento numa banal viagem de autocarro com a vontade expressa  de chamar nomes e embirrar com tudo e todos à partida.

Nomear as gotas de chuva que bateram no vidro, com nomes femininos, normais, nem ao autor / narrador, pareceu suficiente. Uma gota de chuva pode ser tanta coisa, há tanto simbolismo na água que embate nos vidros, cai no chão, na rua, nos regatos, no mar...Claro há também o feminino na Água, de cuja espuma surge a Vénus tão aclamada. Daí que as nomeie. Mas estão longe de ser a mítica figura...Podiam ser reflexo, espelho, diamante inclusive se limpas e brilhantes.

Já temos aqui matéria a explorar, a casa, o regresso, ( o que é um regresso tão contrariado? O que diria Freud?) a água, de simbolismo insofismável é só procurar (em Pessoa falei da água e da morte, mas não quero impôr o meu exemplo, procurei no seus poemas e encontrei).

O autor precisa de continuação, de mais contos, sejam curtos ou longos, mais subjectivos ou objectivos, realistas ou surrealistas, mas apontando para um outro nível, que me leve a dizer, isto é literatura. Este conto não surpreende, apenas confirma um determinado estado de alma. O desejo da escrita. 

E agora caio na minha própria esparrela, o que define afinal o que é  ou não literário?

Como em Heidegger, o que é Pensar?

O filósofo socorre-se de Hoelderlin, o célebre verso de sermos um Sinal que perdeu o Sentido, no Hino à Memória. Pensar é procurar o Sentido perdido. Pensar o Tempo ? Como no enorme O SER E O TEMPO? Como pensar um e outro? Viver um e outro?

Poderemos aplicar este verso à literatura, à criação poética?

É o Sentido, tal como no Pensamento, que confere outro estatuto ao que escrevemos? Cada autor é um só, e deve ser lido como tal. Voz única em cada único momento. 



 


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