Wednesday, April 14, 2021

Skin Deep, de António Carlos Cortez

 Deste ano de 2021 recebo uma edição de 39 poemas de António Carlos Cortez  pequena e muito bonita, cabe na mão, cabe no bolso, é de verdade portátil, e Esteves Cardoso dirá, como fez numa das suas crónicas, que não gosta, porque não têm arrumação racional nas estantes...pois não, a ideia é mesmo não ter. Assim vemos o livrinho todo o tempo, ele não se deixa esquecer. Não é arrumável, é apenas amável, e isso é tão importante, numa altura em que o papel perde para o digital...

A côr da capa sugere-me que são poemas escritos como um Rimbaud, em êxtase de paixão.

Gosto, ao abrir, da epígrafe de Yves Bonnefoy:

Et poésie, si ce mot est decible,

N'est pas de savoir, là où l'étoile

Parut conduire mais pour rien sinon la mort,


Aimer cette lumière encore?

L'amande de l'absence dans la parole?

A obra de Bonnefoy é a de um alquimista do Verbo, do culto da Palavra, que nele adquire intensidade primordial. A amêndoa da ausência na palavra é o recôndito, o obscuro, pulsando no coração. Como em Celan, no poema Mandorla:

Na amêndoa - o que está na amêndoa?

O nada.

Está o nada na amêndoa.

Aí está e está.

....

E os teus olhos-para onde estão voltados os teus olhos?

Os teus olhos estão voltados para a amêndoa.

 Os teus olhos para o nada estão voltados.

O título do livro, curiosamente, remete-nos para uma ópera de George Benjamim, written on skin, de que ele é compositor, sendo o libretto (designado como texto), da autoria de Martin Crimp e ambos celebrados como os mais interessantes da produção operática do século. Não sei se concordo, mas isso talvez se deva mais às escolhas da encenadora, Katie Mitchell, para o trabalho da cena. Ali se representam ideias obsessivas de um chamado Protetor que tiraniza um jovem que convidou para escrever sobre pele (pergaminho) a saga da família, enquanto a sua jovem e aterrada mulher sofre a sua violência e abuso. Temas da moda: a obsessão compulsiva, a violência sobre as mulheres, num enquadramento com algo de expressionista. Mas isto é um texto operático, não é poesia, embora se tenha falado da qualidade poética da ópera.

Ao contrário destas post-modernidades a que hoje é difícil escapar, na obra que já conheço doutros livros e muitas intervenções de António Carlos Cortez, não há cedências, não há facilitismos. Há a expressão rigorosa, límpida, coerente de uma voz que precisa de se exprimir - aí entra a paixão - por meio de um verbo que é quase palavra sagrada, ou mesmo inacessível, - o nada da Mandorla de Celan. Quando Cortez escreve no poema de abertura "tinhas agora contigo um livro branco / a casa arrumada / a biblioteca organizada...." descreve que livros estão na sua biblioteca e dá assim uma ideia da sua formação cultural, que é grande, mas irá concluir, no último verso, com a imagem que nos deixará perto de uma ferida aberta " o sangue coalhado sobre  a mesa" e bem longe da arrumação do esforço inicial descrito, onde pairava um livro branco e uma casa arrumada, com estantes cheias de livros. Pelo quotidiano do poeta escorre uma ansiedade, feita das contradições da vida, entre o real e o sentido, que pode ser o seu contrário.

Na vida entramos pela porta da infância

O que falamos não diz a nossa essência

e só mais tarde na dôr reencontramos

quem fomos na traição e na demência

....

Há na sua poesia por vezes um ritmo camoniano, e de seguida, noutro poema , uma reflexão que provém de Pessoa, o "ourives" que nos trabalhou a todos, de uma maneira ou outra. Gostei de encontrar Rimbaud, quase por acaso, e nele a meditação de uma melancolia funda: a de um tempo que avança e nos deixa para trás, enquanto da verdadeira vida nada mais saberemos...Também numa espécie de regresso à casa, à memória dos jogos que distraíam do torpor habitual, não sendo para o poeta ainda poesia, o verso com que termina o poema recupera a eterna saudade do infinito: " Numa dessas gavetas há um papel / escrito onde vibra o jogo a vida o infinito".

O livro tem uma segunda parte, com o título A love like blood  . Entramos noutra esfera, a da prosa poética, mas que nunca deixa para trás o caminho da palavra perdida, a que se esconde na folha branca que não deixa dormir, tem ritmo, tem música que alucina e obriga o poeta a escrever, para sobreviver. Aqui é mais o visceral Lautréamont que reencontro, mas pouco importa, porque cada poeta tem a sua marca, que o torna necessário a quem o descobre e lê, como é o caso. 


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