Monday, April 05, 2021

ESPANTOS

 

Espantos

(à minha neta Maria, a filósofa)

 Um primeiro espanto é o que se vê nos olhos da criança acabada de nascer. Não sabe de onde veio, não sabe para onde irá...espanto é o que sente, de olhos abertos para o mundo. Tudo lhe é desconhecido, o seu olhar é de estranhamento. É espanto esse estranhamento, que pode ser feliz.

 Em contraste com ele, temos o doloroso grito de espanto de Cristo na Cruz, quando no último apelo ao Pai exclama, Pai, por que me abandonaste.!

A dôr do sofrimento sempre causará espanto, porque inesperada, como vemos em tantos exemplos da  Bíblia, do Antigo e do Novo testamento. Para não falar dos horrores da guerra que se viveram ainda há pouco tempo, no século XX e continuam, no século XX.

 A Bíblia é uma fonte preciosa. A surpresa da dôr, do aparente castigo inesperado são a razão do Espanto.

 Mas há outros episódios em que o Espanto surge como reacção de dúvida e a seguir aceite. O anúncio a Maria, que será Virgem e Mãe do Salvador do mundo. Não chegou ainda esse tempo, mas virá.

 Quando as Mulheres ouvem a Mensagem do Anjo, no túmulo de Jesus, que está vazio, a pedra que o escondia tinha sido retirada, o seu espanto é grande, e aqui surge a palavra espanto, na boca delas. Maria de Magdala, Maria mãe de Tiago e Salomé (sigo a Bíblia de Jerusalém na tradução francesa da Escola Bíblica de Jerusalém, de 1955) chegam ao sepulcro onde Cristo foi depositado, o espanto perante o túmulo aberto e vazio e a presença do Anjo que o guardava e lhes diz: não está aqui, Cristo ressuscitou. Ide e espalhai a notícia. Leio pelo Evangelho de São Marcos: “viram um jovem vestido de branco e foram tomadas de espanto. Mas ele disse-lhes, não vos assusteis.É Jesus o nazareno aquele que procurais, o crucificado; ressuscitou, não está aqui, ide dizer aos seus discípulos, sobretudo a Pedro, que ele vos precede na Galileia, aí o vereis como ele tinha dito” (Mc. 16). Espantadas ainda e a tremer de medo,  fora de si, fogem do túmulo, e não dizem nada a ninguém.

 Incrédulas perante o que é o milagre da Ressurreição, viram-no crucificado e morto, sepultado, e agora é um Redivivo.

 Será Jesus, depois de aparecer a Maria de Magdala, que lhe pede que conte a notícia aos apóstolos, e a reacção deles é novamente de Espanto e negação. Só quando Jesus se dirige então a todos os apóstolos e lhes prova que é um redivivo e os incumbe de ir pelo mundo e espalhar a boa nova, começam a reagir. Até o poder de falar muitas línguas a muito povos diversos lhes é concedido, para serem bem sucedidos na sua nova missão, a de espalhar a Boa Nova. Uns mostram primeiro incredulidade,  que depois será desfeita. Outros crendo, porque lhes tinha sido anunciado pelo Mestre a Ressurreição e a Vida.

Coloquialmente podemos falar de Espanto como surpresa, indignação, ou outro sinónimo que nos dê o dicionário: que "espanto” poderemos dizer sobre um novo estilo, um novo carro, um golo cheio de nota artística, uma bela modelo que derrete corações, a mulher mais velha do mundo, com quase duzentos anos...espanto como algo de inesperado, que desencadeia exclamações, precisamente de espanto, mas sem a transcendência que o conceito aprofundado contém e exige.

Vejamos, no regresso à Bíblia, São João no Apocalipse:

“Ao princípio era o Verbo, e o Verbo se fez Carne e habitou entre nós”. Aqui o Espanto é o de nos parecer impossível um tal acontecimento. O Verbo, energia espiritual pura, materializar-se em criatura humana, adquirindo um corpo (CARNE) e uma espessura que não existia nele. Causa espanto, como causou, pela impossibilidade de crer no que se ouvia.

Mas este é uma forma de Espanto que força o pensamento, o desejo de entendimento aprofundado. Passamos aqui para outro patamar na definição do conceito. A curiosidade de saber e de sentir o que é.

 O impulso da curiosidade, na ciência, ou na arte, perante a descoberta de algo de novo, ou o acabamento da obra inovadora podem causar Espanto (e felicidade pela realização desse sonho, por vezes tão adiado).

 Teremos, para não esquecer pormenores importantes, de parar na Tragédia Grega e na reflexão que se faz sobre o Espanto e o Horror, no momento mais alto da reversão do enredo, da identificação e da catárse, que de outro modo não teriam lugar. A Poética de Aristóteles seria aqui o nosso guia.

Mas se voltarmos  ao Cristianismo que espanto maior se pode encontrar do que na Anunciação que o Anjo Gabriel faz a Maria, a que será Virgem e Mãe do Salvador do mundo? (no Evangelho deLucas,1) lemos que o Anjo Gabriel é enviado por Deus a uma cidade da Galileia, chamada Nazareth, para visitar uma Virgem, noiva de José, pertencente à casa de David. O nome da Virgem era Maria. Entrou na casa dela e disse: Salvé, cheia de graça, o Senhor é contigo. Ela ficou transtornada com esta saudação pensando no que significaria. (primeiro momento de espanto, interrogação); mas o Anjo tranquilizou-a, disse-lhe que tinha obtido Graça junto de Deus. Iria conceber e dar à luz um filho a quem daria o nome de Jesus. Ele será grande e será chamado  Filho do Altíssimo. O Senhor Deus dar-lhe-á o trono de David, seu pai...e o seu reino não terá fim. Maria responde mas como é possível, se não conheço homem? E o Anjo responde que o Espírito Santo descerá sobre ela, o Altíssimo a tomará sob a sua protecção, e é por isso que a criança será santa e chamada Filho de Deus.

Maria então responde, sou a serva do Senhor, que me aconteça o que dizem as tuas palavras. E o Anjo deixou-a.

 Tanto se pode dizer abriu a boca de espanto, perante algo que se nos revela como desconhecido, e nos apanha desprevenidos, surpreendidos, como emudeceu de espanto, pelas mesmas razões, o sermos apanhados de surpresa, e incapazes de reagir, e até de entender.

No caso de Maria, perante o que lhe vem dizer, de surpresa, o Anjo Gabriel é do segundo caso que se trata. Emudece de espanto, fica a ouvir o que lhe diz o Anjo e só no fim reage, aceitando, humilde, o destino que lhe fora traçado.

 Mais modernamente, um poeta como Rilke, que escreve, quase como num jacto as ELEGIAS DE DUÍNO e mais tarde a A Vida de Maria, elabora de forma intensa e poética logo na primeira Elegia o Espanto que um Anjo nos causaria, se ao chamarmos ele surgisse diante de nós, de repente. Um tal Espanto e de tal dimensão que certamente morreríamos ao vê-lo.

O que quer o poeta significar? Que o transcendente não é para o humano? Vejamos a primeira estrofe:

Quem se eu gritasse me ouviria entre as hierarquias dos Anjos?E mesmo que um me apertasse

De repente contra o coração: eu morreria da sua

Existência mais forte. Pois o belo não é senão

O começo do terrível, que nós mal podemos ainda suportar,

E admiramo-lo tanto porque, impassível, desdenha

Destruir-nos. Todo o Anjo é terrível.

E assim eu me reprimo e engulo o chamamento

Dum soluçar escuro.

(Trad. Paulo Quintela)

Em Rilke o espanto manifesta-se sob a forma de interrogação e temor, a interrogação permanente sobre o divino, e sua manifestação tão poderosa, tão aterradora, que pode matar. No fundo estas Elegias exprimem a sua curiosidade, ou angústia sobre o que é a condição humana, o seu sentido e a sua relação com o divino. O que é a nossa existência para a existência do divino? E os Anjos, que percorrem cada verso, ou quase, como intermedeiam a nossa ignorância e o nosso receio? Um espanto que se pode também dizer perplexidade.

 Em conclusão: podem espantar-nos o Horror, e o seu contrário, o Sublime (como é definido por Longinus no seu tratado). Ou uma interrogação que interpela, mas não obtém resposta e ao longo da vida e da criação poética, como em Rilke, permanece imutável. Será sempre em todo o caso uma reacção de forte carga emocional perante um acontecimento inesperado,  excepcional, como o aparecimento de um Anjo que outrora profetizava, e agora, nos tempos modernos não anuncia, não revela o mistério, nem da sua presença (se surgisse) nem da sua existência.

P.S. Seria injusto esquecer aqui o Espantalho, não o insulto, mas a figura de trapos que espetada num pau, com o seu chapéu enfiado na cabeça, serve no campo para espantar os pássaros que roubam as colheitas...


 

 

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