Tuesday, March 23, 2021

Maria F. Roldão, Pequeno Sangue, ed.volta d'mar, 2021

 Conhecia Maria Roldão como a corajosa editora da Revista NERVO. dedicada à poesia e que já vai no nº9. de 2020. É poeta e resistente e convida para a ela se juntarem outros, oferecendo neste colectivo de poesia uma variedade de vozes que vindas de outros lados nos enriquecem mais. Portugal tem grande tendência para se fechar nos seus e com os seus, e há tempos que o mundo mudou e nem sempre dão por isso, neste país dito de poetas, o que nos empobrece, e muito. Pois bem, chegam às editoras e às livrarias disponíveis para o que se chama, injustamente os mais pequenos, finalmente as outras vozes, as novas vozes, livres, originais, desprendidas, exprimindo sentimento, reflexão, pensamento que apenas presta contas a si próprio. É um imenso progresso, e oferece um imenso prazer a quem os lê, aos novos que aí estão a correr os seus riscos, com um Nervo que sustenta corpo e alma, e preenche com um "pequeno sangue" as veias de uma poesia envelhecida, esvaziada. 

Aqui está Maria Roldão, com um livro que é estreia, e de quem se espera que continue assim: pequeno ou grande, em cada poema transporta sentimento renovado, reflexão contida, mas inspirada e que também inspira quem a lê.

A capa é de Sérgio Ninguém, que já nos habituou, em EUFEME, a capas bem concebidas, contendo indicação mais explícita ou menos, de um conteúdo que vamos enfrentar: Aqui, sobre fundo negro, um coração arrancado a um corpo que vai deixar correr esse pequeno sangue...

Começando a leitura pelo fim, destaco OURO:

Percorro-lhe o corpo pequeno

verificando as falhas

os excessos.

Entro e saio inúmeras vezes

da loja das palavras

em busca de sinónimos.

Compro metáforas a peso de ouro. 

Fica caro o poema

- ruína do poeta.

(p.50)

Aqui se lembra que este corpo é o das palavras, que a inquirição é permanente, procurando falhas, despindo os excessos, para chegar a uma nudez perfeita. É esse o Ouro escondido do poema, envolto nas metáforas.

E sublinha-se a VOZ:

Aqueduto por onde

correm as palavras.

Distribui o

relato

consoante a sede.

 Muitos ouvidos 

formam um 

regato.

Estamos perto da emoção de traços orientais na sua poesia. Mas Maria Roldão evoca também outras leituras de poetas que amou, em CEMITÉRIO DE TRAÇAS:

O estômago ressequido das traças liberta o

pó das minhas leituras. (...) E vejo agora Sophia e Cinatti em

pequenos montinhos - levíssimos -, com as

asas partidas e o coração à ré. Única virtude: 

misturarem-se os dois na mesma penugem

de indigestão.(...)Agonizantes - secam em cima das estantes,

regurgitando rimas, versos brancos e métrica.

(p.48)

Eis o que fica dos outros que amamos, em nós que os absorvemos até que secam, feitos poeira de memória, nos livros arrumados que estão lá cima nas estantes, entregues à devoração das traças, que se alimentaram com o tempo, de rimas, versos brancos e métrica - aquela que agora chega a nós, na sua diferença.

Não posso no espaço exíguo de um post citar tudo o que gostaria que fosse lido por todos: porque em cada poema nos surge algo de inovador, imprevisto e com traços de humor subtil. Deixo os títulos, como em OXIGÉNIO, o corpo-bola de carne, mas que respira...ou IMPROVISO: assoo-me ao riso.  Herança de haiku presente em poesia culta  ainda que embrulhada em expressões que só a um iletrado parecem quotidianas. Sim, abordam o quotidiano, até ao mais íntimo da sexualidade, por vezes, como em RENDIÇÃO (p.36), ou ATRITO(p.27), ou ainda SISMO (p.25), ou LEGO (p.23) que deixo já entregues à curiosidade do leitor.

Em PEQUENO SANGUE (p.20) que dá nome ao livro, é o vestido que assume as funções do corpo e da palavra entregue:

Dou sangue ao vestido.

 Abro-o com o coração desabotoado

e enfio-me na primeira  trégua do linho.

(...)

Desenhas uma casa 

com o meu corpo. Dispo-me.

Engomas o sangue que despi.

E vou chegando ao fim agora pelo princípio. Momentos de um quotidiano real, o dos dias e as suas acções misturam-se, - é a vida a entrar pela escrita dentro, sendo que a escrita se tornará cada vez mais forte:

preciso de pensar com absoluta nudez -

ideologias, cismas, tensão

e arbítrio

são fibras que me pesam

(p.12)

E para que se compreenda o todo do que se segue, Maria avisa:

Debulho em delírio a pele entre as palavras.












































































































































                                     


 



























































Tuesday, March 16, 2021

PRELÚDIOS, de Manuel de Freitas e João Paulo Esteves da Silva, ed. Alambique, 2020


A Pandemia fez nascer muito livro, de editores fiéis, fazendo pequenas tiragens ou tiragens um pouco maiores, conforme cada caso. O que todos têm, como se fosse combinado, é uma escolha de capas escuras, sóbrias e elegantes, como o vestido preto de sair à noite. Pegamos nesses livros que nos chegam por amizades várias, com cuidado, com amor, e temendo não estar sempre à altura da leitura que merecem. É o que me acontece agora de novo, com estes Prelúdios, que abrem com um shot de Manuel de Freitas, que João Paulo evoca, antes de iniciar a sua parte, ou a sua partitura que nos dá a ler.

Manuel de Freitas, que diz gostar acima de tudo de cães abandonados, de pessoas que desconhece e bebidas nunca provadas, é levado, apesar disso a afirmar: "E, no entanto, recomeço". O seu recomeço poético, entenda-se, nasce do inusitado a que chama insónia, pesadelo, golpe baixo. Qual de nós pode dizer que nunca sofreu desses males? Em DEDICATÓRIAS(p.13) reflecte em como são perecíveis, passado tempo, e que melhor seria nunca as ter feito. Mas a algumas mantém-se fiel, como o in memoriam a José Escada, o pintor que foi embora mais cedo do que os seus amigos esperavam. Manuel, leal, fiel ao nome ar amizades conclui :" Prefiro apagar poemas, ou até um livro inteiro, a rasurar um nome". Sabemos a quem se refere, e fica-lhe bem ser fiel, ou assumir o erro...saímos da poética para a ética, neste poema...

Leio e recordo os meus Poemas com Endereço. Escrevi muitos, a dada altura, e também eu nada alteraria do que fiz e do que disse. O livro sumiu por si próprio e não mereceu mais atenção. No ANDANTE, dedicado ao João Paulo Esteves da Silva, Manuel resume no poema o que foi uma tarde com João Paulo, em que todos os temas foram abordados, do estudo da língua hebraica a ver  um mendigo em Londres, passando por compositores de Jazz, sem esquecer um Mozart paciente, que aguarda o seu momento. Com espanto veremos que na obra de poeta e de compositor (como de tradutor de uma língua sagrada) João Paulo escreve uma partitura entrelinhada de estrelas, são VINTE E QUATRO PRELÚDIOS, que darão título ao livro feito a meias. Os títulos (os acordes) não serão de acaso, mas talvez, se bem recordo o que leio e releio, de um ocaso pressentido numa memória extinta, que se deseja "seguir como um cão", DÓ MAIOR. (p.41).

Pela poesia de João Paulo Esteves da Silva passa um sopro que da grande cultura, de repente, nos leva para um quotidiano que é de todos nós e assim descemos com ele à terra: pela sua mão deixou de ser banal a rua, o gato do quintal, um amor de infância, uma vendedeira como já não há. Ou um concerto onde ele tocou e ouviu um comentário que primeiro pareceu desagradável e a seguir o seu ouvido corrigiu para outra mais positiva alusão: FÁ MAIOR, p.51).

Em LÁ MAIOR (p.59)encontro uma espécie de confissão que é resumo de vida: "Também não gosto das coisas, em geral.Nem da música, nem da poesia, nem, sobretudo da humanidade. Amo esta ou aquela música, sim, esta ou aquela pessoa, ou este poema ou povo em particular. / A minha alma foge das grandes ideias. Se sai para o infinito, é nas coisas ínfimas". Não tenho piano para ir ouvir o Lá Maior. Mas ressoa em mim a sabedoria do seu dito. É no pequeno que se revela o grande, e ocorre-me Paul Celan, no poema ENTRADA DE VIOLONCELOS, nos versos finais: "tudo é menos do que / é / tudo é mais". 

João Paulo, em SI MAIOR, retoma o somatório de que são feitos os dias (a vida): "As rotinas, os padrões, os circuitos, as repetições do dia a dia, as casas, as ruas, os bares, os rostos, tudo pode acabar a qualquer hora. Fora melhor não reparar nesta possibilidade. Mas os poemas vêm a quem dá por ela, um pouco, de esguelha, devagar (p.63).

A vida do seu gato que ele vê ser apagada, em SI MENOR transporta-nos no fim para a meditação da morte que tantos agora colocam nas agendas políticas. João Paulo entende que chegou a hora de desabafar: "Não me falem de eutanásia. Matem se tiver que ser, mas calem-se quanto ao valor do porquê"(p.64).

E volto aos Shots do início, para reler o desafio: São copos ou são tiros?






Monday, March 15, 2021

 Koan (variante)

Um branco areal imenso

aos pés de um mar azul

sangrento 

Para a Graça Santa-Bárbara

 Koan

Imenso areal branco

aos pés do mar azul

Paulo da Costa Domingos, Ilícito, ed. Averno 2020

 



Sobre fundo negro, o cinzento do que poderíamos chamar um mandala, ou um círculo mandálico, tendo por dentro rasgões e peças do quotidiano. É assim a poesia de Paulo: eleva o quotidiano que lhe chama a atenção a uma esfera outra, transcendente, que não explica, deixa em suspenso para que o nosso olhar se fixe e se demore, enquanto lê. A poesia de Paulo da Costa Domingos não permite leituras apressadas, exige a demora, a lentidão de um pensamento que acompanhe o som da sua voz. Podemos ler em voz alta e logo se perceberá melhor o que se diz, num diálogo com um Mestre invisível, Deus ou Diabo, que não respondem à pergunta essencial: "Que tempo fará / quando eu estiver ausente?" 

O poema forma-se, diz ele, como "um veio" (p.6) "no meio/ da fractura/ avulsa/ d'escritura avulsa". 

Os poetas sabem que sem fractura não haverá poema, sem dôr não haverá a exaltação final tão desejada. Há um veio no mandala da capa, que é já um sinal. Dentro estarão os verso que o preenchem.

Adiante de novo um apelo ao Mestre: "Mestre, mestre / esta máquina pós-moderna/ceifa os doze indomáveis na hora/ primeira, o homem da montanha/ na hora terceira.Fende o dique/ para que o dia anoiteça em óleo/ e lama: a lama dúbia da noite".

Dos pesadelos da noite surge a escrita do dia, o verbo que se faz livro, "árvore de cordel" (p.9). Em tudo Paulo sente a fragilidade, do que começa ou do que acaba: "Eu sozinho, mestre, perplexo/ ante a ciência que me deste/do compasso, pétala e agulha". (p.13).

A conclusão devagar se vai afirmando, como os versos anteriores, discretos, deixavam suspeitar:"Nada resta/senão a feroz inteligência da cobra/ em todos expulsar do seu rastro" (p.19). No  poema da página 20, bem como no último com que se fecha o livro, há uma reminiscência da infância (a inocência) perdida e a descoberta de um "nome novo". Nome novo que poderá ser de um homem novo, sem "idolatria nem religião."

Na fresca escuridão, uno.

Foi preciso descobrir e despojar-se, de todas as grandes e pequenas coisas, para atingir este momento em que liberto afirma: "E aqui eu pude, por fim descalçar-me".

Despido e entregue, como Job, tem por fim o poema, o verso libertador, do Uno e do Todo da Tábua de Esmeralda, que não cita, mas reconhece e resguarda.


Saturday, March 13, 2021

Monday, March 08, 2021

8 Koans sobre Ventanias de Pedro Chorão

 

8 Koans (sobre Ventanias, de Pedro Chorão)

 

1

Uma abelha na flôr:

Busca o mel ou a côr?

 2

O ramo que se quebra

Sob o vento mais forte

 3

Um tronco despido

 Dá lenha a outra vida

 4

No Outono chuvoso

O brilho da aurora

 5

No preto e branco

O suave sopro da forma

 6

Não se mata o Pato Selvagem

Ele voa com a nossa alma

 7

Um ramo:

um braço que se inclina

buscando o seu abraço


8 (no dia da mulher )

Mulher:
um corpo
despedaçado


 


COROAÇÃO

 

 

8 de Março, 2021

Dia da Mulher

 Coroação

Eva é Raínha

foi coroada,

enrolou a serpente

à volta da cabeça.

 A seus pés, Adão castrado

rói o caroço da maçã

que lhe caiu no chão