Clara Andermatt, a arte Inconfundível
Perante o que sinto diante de
uma obra de arte, a minha primeira reacção é o silêncio. Um silêncio feito de
espanto que me obriga com tempo a encontrar, porque as procuro, as palavras com
que o dizer. Porque desse silêncio nasce algo de mais profundo, um espaço ou um
tempo que têm a marca dos primórdios da criação, do seu mistério, da sua
interpelação.
Parece imperativa , a
necessidade de dizer, e não é fácil: com o corpo, com a música, com palavras
que são igualmente corpo, e música.
Já é longo o percurso de
criação de Clara Andermatt: viagens, travessias e atravessamentos, de que
trazia consigo o gosto da surpresa e da inovação.
Para mim a primeira e maior novidade, na altura, –estava eu há anos a ler e traduzir o poeta Celan – foi a
coreografia ao mesmo tempo tão simples e complexa CIO AZUL (1993).
Assim mesmo, indicação aos
que acham que sem ter tudo não podem fazer nada, quando no nada já tudo está
contido, como no QUADRADO BRANCO de Malévich (1918) que José Gil tão bem
estudou. Ele pinta logo a seguir à Revolução Russa, como Celan escreve logo a
seguir ao Holocausto, explicando que “ tudo é menos do que é, / tudo é mais”,
em ENTRADA DE VIOLONCELOS, e afirmando que a poesia a partir daquele momento já não se impunha,
mas se expunha (1969). E assim mesmo,
nua, despojada, cadáver que se lavava um cadáver-palavra ( como no poema
dedicado aos amigos Hannah e Hermann Lenz, arrepanhados de noite):
Uma palavra- bem sabes:
Um cadáver.
Vamos lavá-lo,
vamos penteá-lo,
vamos voltar-lhe os olhos
para o céu.
Estamos neste poema como no
mais singelo dos discursos de Clara, nesta coreografia carregada de sentido. É
o OLHO DO TEMPO (de novo Celan) que olha de través “sob um sobrolho de sete
cores”. Assim “ o mundo aquece / e os mortos / brotam e florescem”.
Por outras palavras, da
simplicidade do Nada exposto o mundo volta a nascer. O mundo que é a Obra, só
em singeleza concebida.
Parece e é bem verdade, que
neste início de século, o mundo nos preocupa a todos, criadores e cientistas e
que de repente (quase como nos séculos de antigamente, do Humanismo e do
Renascimento) nos sentimos mais próximos uns dos outros, nas nossas
interpelações.
Assim chego à grande
Revelação deste ano que Clara Andermatt com João Lucas, seu compositor de
excelência - quase alma gémea – nos apresentaram no Teatro São Luiz: PARECE QUE
O MUNDO (a 22, 23, 25 de Novembro, tão pouco tempo, infelizmente). Inspirada,
dizem, esta obra, numa de Italo Calvino, Palomar,
salientam os autores:
“Na construção da peça
propusemo-nos , em total paridade criativa, uma renovada ambição no nosso
percurso em comum: não dissociar, em nenhum momento, a invenção coreográfica
da invenção musical”. E adiante: “ Esta peça oscila entre três planos
distintos: o da observação, o da narrativa e o da meditação....A escrita de
Calvino deu também origem, em múltiplos desdobramentos de leitura e de
interpretação, aos enunciados da invenção do gesto e do som...colocando cada
espectador num observatório da sua própria experiência.”
E aqui me sinto eu um pouco
mais à vontade, porque eu senti sobretudo uma grande consciência e reflexão sobre o que o mundo parece (ou
chega a ser, no caso de cada um), uma grande intuição ou um grande conhecimento
já em parte adquirido, por estes criadores. Referem a relação mais ampla com o
cosmos, ora seria impossível essa relação não estar ali presente, vivida e
sentida, materializada em cada movimento de energia mais intensa, que irrompe
como forma de maravilhamento que a todos surpreende. Referem o infinito, que
naturalmente a relação com o cosmos não pode deixar de arrastar consigo. É
discussão permanente do tempo em que vivemos: é finito este cosmos, do pouco
que ainda sabemos dele? Ou infinito? E que sentido adquirem então nele o SER e
o TEMPO de que Heidegger falou, deixando-nos sem resposta? O ser é a matéria, é
o espaço em que os corpos se movem, o tempo a energia que os sustenta, os transposta, os
transforma? Porque Einstein veio trazer esse novo conceito, de um tempo-espaço
que abriu o nosso imaginário, de criadores e de cientistas, a novos e
insuspeitos horizontes. Temos de navegar neles.
E o que fazem este nosso
criadores de que agora me ocupo? Sem temor, embarcam, e deixam no ar, para nós,
espectadores ainda impreparados, mas maravilhados, todas as interpelações.
A cada um sua busca, sua
resposta...atravessada ou não pela sua vivência de um quotidiano que é seu.
Assim, perplexos, assistimos
num palco que se complexificou no seu
conjunto muito elaborado de propostas, já não é o singelo do passado (nem
poderia ser, em pleno post-modernismo do século XXI) é algo que é mais do que
uma proposta artística, uma elaboração
de um conceito complexo, aprofundado, ampliado nas suas várias vertentes, artísticas,
filosóficas e até científicas que vão para além do inspirado Calvino.
Lidamos aqui com a matéria,
os corpos, e com a energia, os sons, a música. E uma matemática de raiz
simbólica, pitagórica (séc.VI A.C. ) estruturada nesta coreografia
surpreendente que eu definiria como variante do seu número de ouro ( pois bem sabemos, pelo alinhar dos versos
de ouro, que se trata ali de conceitos relacionados com o Belo, com o Bom, com
o prodígio
do imaginário humano).
Impossível, na meditação que
a peça impõe, não recuar aos tempos míticos da fusão andrógina do ser, na sua
primordial completude: a existência
nasce da fusão do verbo com a matéria, nomeada, para poder existir. Como ali no
palco música e bailarinos se fundem, se confundem, a ponto de haver até uníssonos
nas vozes que suavemente se sobrepõem e erguem, dizendo que estão ali, fazem
parte de uma estranha união que, como na física quântica, ora são ondas ora são
partículas, consoante a atenção do nosso olhar virado para o palco. Na música
sentiremos a energia da ondas, nos corpos a materialização das partículas.
Mas eis que os criadores,
perversos, para nosso espanto tudo invertem: os músicos, com a sua música vão
como pura matéria pelo chão fora, e os bailarinos, misteriosamente
transmutam-se em puro som, pura energia, transparente quase e invisível.
Tudo ali de repente é
matéria, e por vezes explode, tudo ali é espírito (energia) e como o gato de
Schroedinger nos deixa sem saber : está ali ou não está. E nunca esteve? E se
está estará vivo ainda ou estará morto? Ou ambas as coisas, em simultâneo,
conforme?
Por isso amamos tanto estes
dois criadores, que nos abrem num palco este princípio só aparentemente fácil,
da INCERTEZA.
Eles próprios dizem:
PARECE QUE O
MUNDO pode ser “uma daquelas felizes coincidências em que o mundo quer olhar e
ser olhado no mesmíssimo instante”.
Ou por outras palavras: o
impossível.
Só de impossível pode ser
feita a arte...
Y.K.Centeno
2018
1 comment:
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