DOIS BOIS E Uma Arma Na Mão,
o livro de João Paulo Esteves da Silva que tenho estado a ler. Quando leio, oiço música, ele está algures a compôr, dentro dos seus poemas. Ou a contar, demorando-se na mística dos números.
Criador complexo e completo: erudito com a paixão da mística hebraica, poeta e compositor que nos leva por tempos e espaços de desvio onde nos podemos perder, que sempre haveremos de nos voltar a encontrar com ele e o seu riso de criador que gargalha, dobrado sobre a obra que criou. Como o riso de Deus dos Kabalistas.
Abro ao acaso, como gosto de fazer:
A ILHA
O tempo apressa-se na cabeça
agora, os anos parecem dias
a vida há-de caber em meio segundo
e a história do universo passará por nada.
Podia entristecer de pensar nisto
mas oiço o nada a rebentar de riso;
instável, carregado de universos
e rio com ele, como uma romã.
Dividido em 4 partes, da primeira, Matéria Inquieta, à última, Casca de Noz, seguimos com o poeta por um tempo e um espaço que a vida sempre atravessa, com o seu ritmo próprio, um quotidiano que o perturba mas o deixa continuar mesmo assim e ele continua, não se nega à aventura, ao imprevisto tanto quanto ao previsível já adivinhado. Um poeta músico, de alma aberta, oferecida:
MATÉRIA INQUIETA
O ruído da televisão
apaga a história da literatura
cobre a música imaginada
e quero voar daqui
mas esqueço-me de existir
ainda não posso ser pássaro
e não sei continuar à espera
na margem, no café
o estrondo tapa-me o céu
rajadas de metralhadora
avisos filtrados nos megafones
criam nada, tanto nada
que já se conseguem ouvir
premonições de novo
ouve-se estalar a casca do ovo
Em cada poema pode surgir uma imagem mais forte, mais carregada de sentido, que nos faz meditar. Aqui encontramos duas, a do pássaro que o poeta ainda não consegue ser, e a do ovo, arquétipo da criação primordial, em tantos imaginários, religiosos e alquímicos.
A imagem deste ovo cuja casca se ouve estalar remeteu-me para a simbólica da alquimia, e em especial de uma obra, ATALANTA FUGIENS (1617), de Michael Maier, alquimista do século XVII, da corte de Rudolfo II, a quem serviu igualmente de médico e astrólogo.
Na gravura VIII desta obra que inspirou seguidores ao longo dos tempos, vamos encontrar, diante de uma lareira onde arde o fogo, um adepto em pleno trabalho, de espada erguida sobre um ovo, colocado no centro de uma pequena mesa. Percebe-se pelo gesto que ele irá cortar ao meio esse ovo, e que essa divisão terá um significado importante para a Obra.
Sob a gravura lemos, no Epigrama:
" O céu tem um pássaro, de todos o mais bravo,
Do qual procurarás o ovo, sem que mais nada te ocupe.
Uma albumina branca rodeia a gema. Com prudência
Dá-lhe um toque com uma espada flamejante (é a norma).
Marte terá de vir em auxílio de Vulcano; nascerá
Um passarinho vencedor do ferro e do fogo".
Maier, também ele compositor, escreveu para esta gravura uma Fuga, de que não poderei ocupar-me, pois sou leiga na matéria, com o seguinte apontamento ao alto:" Pega no ovo e parte-o com um glaivo de fogo".
Matéria inquieta é esta, que o adepto, poeta, sublima como alquimista no poema. Ovo e pássaro são as figurações da norma.
Termino com o poema DIZIA RABI NACHMAN porque nele se explica e se agradece com humildade que o desespero não é permitido, o caminho será de redenção. A redenção que um poeta como Celan não teve, ele que falava dos corpos lavados, das palavras nuas, e escolheu a água como lugar de apagamento, a água do rio Sena, num certo dia de abandono especial. Mas João Paulo, pelo contrário, estudioso embora das matérias hebraicas, escolhe entregar-se ao "calor do coração". Fiquemos com o poema:
É proibido desesperar.
Está bem. Não desespero.
Respiro, suspiro, e canto.
Tenho riscado tantos versos
alguns deixam-se ler através da rasura
parecem melhorar com a cobertura
espreitam por entre caracóis de tinta.
Alegra-te na hora má! diz a canção
e eu vejo os olhos do rabi, já louco,
a dançar vivo em pleno fogo
não sigo, não posso, só agradeço
as chispas, o calor no coração.
Direi, com Celan: "Afundam-se os longes aqui,
e tu, estrela de cabelos em flocos, cais aqui feita neve
e tocas na boca térrea".
Sublimando deste modo os vários elementos, do canto aqui cantado, do fogo, do ar, da terra e do branco da neve, transmutado.
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