A IMAGEM (notas para um ensaio)
Imagem,
imaginar, imaginários – uma mesma raiz aberta a múltiplas reflexões.
A
Imagem é uma Representação.
Remeto
para o célebre quadro de René Magritte, um óleo datado de 1928-1929, um
cachimbo, com uma legenda por baixo: ceci
n’est pas une pipe.
Estabeleceu-se,
com esta legenda, uma primeira reflexão sobre o que é uma imagem: é uma
representação (do real) a não confundir com a realidade em si mesma, que seria
no caso, um cachimbo que se pudesse fumar!
Aliás
o título do quadro já é uma indicação do entendimento que o pintor tem das
imagens face ao mundo real: o título é LA
TRAHISON DES IMAGES.
E
este é o comentário do artista, quando à sua volta se ergueram vozes de
escândalo:
“
O famoso cachimbo. Como fui censurado por causa dele! E no entanto, seria
possível carregar de tabaco o meu cachimbo? Não, é só uma representação, não é
verdade? Por isso, se eu tivesse escrito no meu quadro’isto é um cachimbo’,
estaria a mentir! “
Michel
Foucault discute no seu estudo de 1973, Ceci
N’est Pas Une Pipe, o aparente paradoxo com que o quadro nos confronta.
Falando
de imagem/representação podemos discutir se a representação o é de um objecto
real (como neste quadro) ou de um objecto imaginário: com este conceito de
representação do imaginário, trazendo-o até nós, tornando-o por sua vez real
deste modo, alcançamos, ou propomos, um novo patamar de discussão.
Neste
patamar teriam lugar de destaque os Surrealistas e as suas criações, vivendo do
imprevisível, do surpreendente, do que poderíamos chamar a lógica do
inconsciente.
E
neste caso já o real em si mesmo pouco nos preocuparia, dado que um outro real
– o imaginário – se tinha tornado visível e apetecível.
Este
é um patamar onde para além da questão da imagem se coloca uma outra: a do dizer, e em que linguagem: pictórica,
literária, musical, etc. (deixando de fora um imaginário não menos
interessante, o científico, com as novas capacidades de elaboração tecnológica
hoje tornadas possíveis).
O prefixo
in, remete desde logo “para dentro”,
ou seja para uma íntima visão (representação) emanada / construída a partir das
esferas da nossa psique (consciente, sub- e in-
consciente). Sendo assim, a Imagem, neste contexto, mais restrito ou mais
amplo, terá sempre uma forte marca de subjectividade.
Nada
que incomode um criador…ele procura, não o real imediato, acessível, mas a
parte de mistério que o transcende. Algo como um para-lá do real de que o
criador resolveu ocupar-se. Podemos perguntar: mas há mistério no real ? Não é
o real uma absoluta objectividade em si mesma? Pelos vistos não, para um
criador que o interroga e pelo caminho se interroga também a si mesmo.
A
imagem, tomada no sentido da Psicologia das Profundidades (Jung) é uma forma
que se constrói nos sonhos, nas imaginações e fantasias a partir de um núcleo de relacionamento entre o Sujeito
consciente e a esfera profunda do Inconsciente. A alma (die Seele, Jung) projecta nas imagens a psicodinâmica do
inconsciente na consciência. A alma cria imagens e símbolos e é ela mesma Imagem (itálico meu).
Imagens
e símbolos, diz ainda Jung, são de
origem mais primitiva e mais variada do que a linguagem, e por isso um importante
fundamento da comunicação humana.
Podemos
avançar um pouco mais pelos conceitos : imagem, representação, projecção de
conteúdos do inconsciente. Nos casos de que nos fala Jung, os sonhos, as
fantasias, o conceito de Alma- sendo que a Alma é Imagem, é representação de
uma Essência que de outro modo não seria inteligível – fomos sendo guiados para
a tal visão íntima, subjectiva, da representação.
Mas
fomos avançando um pouco mais.
Da
Imagem /Representação à Imagem/Comunicação:
- em
primeiro lugar do eu consigo mesmo (imagem /representação, do inconsciente à
consciência)
- e
em segundo lugar do eu com o outro, com o mundo (por via da representação /
comunicação)
E fica uma pergunta: não poderá haver um
centro próprio, específico, demarcado no cérebro de forma mais objectiva que seja o criador da imagem,
e da representação?
Ao
“mapear” um cérebro o que descobre, ou o que poderá vir a descobrir um dia, o
neurobiólogo do século XXI? Guardo a ideia de que a imagem é talvez a sinapse de dois neurónios felizes que
se entendem, como na definição de Eternidade que Rimbaud nos oferece no seu
poema L’ÉTERNITÉ, de 1872:
“Elle
est retrouvée. / Quoi? – L’Éternité. / C’est la mer allée avec le soleil”
ou
seja, o mar e o sol, a água e o fogo, numa conjunção ideal de completude: eis a
sua imagem /representação da Eternidade:
Rimbaud
L’ÉTERNITÉ
Elle est retrouvée.
Quoi? – L’Éternité.
C’est la mer allée
Avec le soleil.
Âme sentinelle,
Murmurons l’aveu
De la nuit si nulle
Et du jour en feu.
Des humains suffrages,
Des communs élans
Là tu te dégages
Et voles selon.
Puisque de vous seules,
Braises de satin,
Le Devoir s’exhale
Sans qu’on dise: enfin.
Là pas d’espérance,
Nul orietur.
Science avec patience,
Le supplice est sûr.
Elle est retrouvée.
Quoi?- LÉternité.
C’est la mer allée
Avec le soleil.
Água e Fogo nesta junção elementar de opostos que definem, com o seu fulgôr, o Todo da Eternidade.
Encontramos
no imaginário alquímico um semelhante entendimento da Eternidade como reunião,
conjunção de opostos:
lua
/ sol ;
água
/ fogo;
dia
/ noite;
mercúrio
/ enxofre
macho
/ fêmea
etc.
Sendo
que a Pedra Filosofal, de muitos nomes, como dizem os alquimistas, os reúne em
si numa imagem de perfeição e completude.
A
imagem ideal é a do Andrógino, trazida até à Modernidade a partir do Banquete
de Platão. Ser esférico, completo, integrando os dois géneros, o masculino e o
feminino, mas posteriormente castigado e dividido pelos deuses, permanece como
arquétipo de um estado ideal que a Pedra dos alquimistas recupera.
Mas
continuemos com a nossa reflexão:
O
que será mais propício à nossa elaboração criadora? Um arquétipo, como o
referido acima, ou um puro vazio, um espaço branco onde todas as imagens se
podem projectar?
Recordemos
a célebre série de Kazimir Malevich, nas telas a óleo de 1918: Branco sobre Branco.
A
contemplação destes quadros, onde apesar de tudo o vazio não é pleno, pois se
podem distinguir com clareza as marcas do pincel, a tensão e a intensidade dos
tons de branco aplicados, abriu mais discussão na História e na Crítica da
Arte. Os defensores destas formas ditas de suprema abstracção, designados como
“Suprematistas”, o que propõem, seja no Branco seja no Negro, como absoluto
contraponto ao Branco? Um novo entendimento da criação ou um novo entendimento
da nossa relação com a obra criada e o seu criador?
É
o criador um alter-ego nosso que faz a mediação entre nós e o mundo, visto
pelos seus olhos? E que papel desempenha a imagem de suposto absoluto em
relação a nós, ou ao seu criador?
É
um suporte livre do nosso imaginário?
José
Gil, numa obra que gosto de recordar, A
Imagem-Nua e as pequenas percepções (1996), abre com “A visão do
invisível” e dedica um capítulo em
especial ao “Caos e Quadrado Negro” (p.
135).
Interroga-se
José Gil: “ Porque é que a percepção estética precisa de ao mesmo tempo
conhecer e ignorar a forma como objecto?Se a percepção neutraliza o
conhecimento, este último, ainda que neutralizado, permanence: o quadro mais
abstracto conserva sempre alguma coisa de ‘figurativo’. Até mesmo no Quadrado Branco sobre Fundo Branco de Malevitch o olhar reconhece alguma coisa, um ‘quadrado’ pintado
sobre um ‘fundo’ falso: adivinham-se aqui formas e fantasmas de formas.O quadro
mais informal mostra ainda pontos, manchas, contornos, ou materiais rugosos,
pregueados, lisos” (p.136).
É
assim que a perturbadora criação do Quadrado Branco e a do Quadrado Negro leva
o pintor a considerar a ruptura “total e definitiva com o mundo do objecto”
(p.138).
Nasce
a arte abstracta, como Suprematismo.
Neste
movimento, de descoberta e de anulação, o que acontece à imagem como
representação? Permite o anular da imagem dar lugar a novas formas ainda que
não o desejem ser? Ou é imperioso que, para existir negação, haja primeiro
alguma forma de real que se negue? E como podemos, pintando, anular a pintura?
Ou falando anular a palavra? Esvaziando o sentido? Procurando um sentido no
Vazio criado, adivinhado?
Encontro
numa poema recente de Manuel Alegre uma interrogação semelhante:
Depois do Branco
Depois do Branco
Quem sabe o que na página se esconde
e se dentro do branco está um muro
e se depois do muro não há onde
e se depois do branco é tudo escuro?
Quem sabe o que pode acontecer
quando ao verso já escrito outro se
junta
e tudo está no verso por escrever
e o que se escreve é só uma pergunta?
Quem sabe o que se vê e não se vê
se por dentro do branco apenas cabe
esse nome que nunca ninguém lê
e o verso que se sabe e não se sabe?
( in NADA
ESTÁ ESCRITO, 2012 )
Este
poema sublinha uma contradição de fundo : a do branco com o escuro ( podia
chamar-se negro, como na alquimia e teríamos claramente o jogo de opostos da albedo com a nigredo); a da afirmação (do verso escrito) com a pergunta (a
dúvida da interrogação) e finalmente a do visível ( a forma que se vê, o verso
que se escreve) com o invisível (o nome que ninguém lê, o verso que não se
sabe) e que é precisamente o que o branco contém.
Sendo
que este branco de Manuel Alegre, como o do Quadrado
de Malevitch, pressupõe uma revelação
que o pintor, no seu tempo, também teve. Não a da fusão intemporal de Rimbaud no seu poema, mas a da anulação objectiva, temporal, que o branco sobre o branco permitiu, abrindo
a imaginação dos artistas a novos e revolucionários conceitos de produção
artística.
O
Suprematismo de uns, abolindo o Simbolismo ou o Realismo de outros, está na
base da produção dos Modernistas em geral; e aqui se poderia aludir ao exemplo
de Fernando Pessoa e a um dos seus mais antigos e interessantes poemas,
ALÉM-DEUS, datado de 1913. Lança uma mesma interrogação, com a mesma carga
metafísica, ao olhar o rio Tejo:
“O
que é ser-rio e correr?
O
que é está-lo eu a ver?”
A
descrição do que sente conduz à imagem de “Vácuo”, o vazio que toma o lugar do
momento ( o tempo) e do lugar ( o espaço). Desta anulação da consciência
nascerá a experiência de Deus. Veja-se através de que passos:
Tudo
de repente é ôco-
Mesmo o meu estar a pensar.
Tudo – eu e o mundo em redor-
Fica mais que exterior.
Perde tudo o ser, ficar,
E do pensar se me some.
Fico sem poder ligar
Ser, idéia, alma de nome
A mim, à terra e aos céus.
E súbito encontro Deus.
Este
Deus, secreto, escondido no escuro e no silêncio da alma, Essência que não se
revela mas arrebata e absorve, como um buraco negro, levando à dissolução da
consciência de si, na dissolução de todo o mundo exterior – não é um Deus que
Malevitch ou outros dos seguidores tenham de verdade procurado. O que
procuravam, no exercício da sua Arte, era antes como destruir a norma, que lhes
pesava, de um Figurativo realista que se tornara obsoleto. E pelo apagamento da
Forma recuperar o Sentido: um sentido, qualquer um, desde que aberto a todas as
sensações (o que em Portugal seria o projecto do Sensacionismo). E por
oposição, seguindo o mesmo modelo, recusando todas as sensações, pois a recusa
de tudo é uma forma de inclusão.
Servem
estas reflexões para o aprofundamento da definição de Imagem? Imagem como
representação ou anulação de um real que na Arte perdeu o sentido?
Haverá
sempre um momento em que a energia profunda de uma ideia poderá apropriar-se da
mão que pinta, ou que escreve – e então nascerá uma Imagem: mais realista do
que outrora ( com os surrealistas, por exemplo) ou mais abstracta, mas representando sempre a pulsão que impele
o criador nesse seu gesto, que será sempre vivido como primeiro, primordial e
fundador.
O que nos remete de novo para o conceito de Arquétipo,
como Jung o definiu.
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