Eugénia de Vasconcellos, Sete Degraus Sempre a Descer, ed. Guerra&Paz, 2018.
Já tinha escrito no blog de literatura sobre o
anterior, mas este tem talvez mais matéria para reflexão, não apenas literária,
quem sabe. Só lendo com cuidado.. Marco Luchesi que escreve na contracapa,
designa-o logo como “livro de alta poesia”.
Não será coincidência, este ano tem sido para mim uma
sucessão de sincronias, como prefere Jung que se chame. E esta, de novo, com o sete. Pois em Janeiro as edições sem nome – sempre amigos do
Norte – a tomar conta de mim, vão publicar as minhas traduções dos SETE CANTOS
DE THOTH, de Étienne Perrot, hinos inspirados nas gravuras de Michael Maier
(que ele próprio traduziu). São as meditações de um alquimista junguiano com
quem durante quase 20 anos aprendi em Paris o que sei, de leituras feitas,
análises tentadas, “aberturas” de portas como as secretas dos sonhos mais
arcaicos.
Pois aqui está à minha frente um 7 para decifrar. Luchesi
chama-lhe rito de passagem, a este livro. Não vou discordar aqui das suas
afirmações, que atribuem à obra uma dimensão mais religiosa quase, do que
mítica.
A descida pode ser uma ausência sofrida, um adeus que
se aceita ou rejeita, a busca no escuro da uma cave na montanha altíssima de
uma meditação que transforme (como na alquimia). Ou tão simplesmente uma descida
à noite escura do silêncio da alma, como em São João da Cruz, enquanto a luz de
uma nova Aurora não se faz anunciar.
Prosaicamente, fiquemos no singelo, como diria a Clara
Andermatt, conhecedora do íntimo valor do simples, que Paul Celan já glosara e
eu não me canso de repetir ( e praticar...):
Tudo é menos do
que é
tudo é mais.
(Entrada de
Violoncelos)
O sete é um número que descobrimos no Génesis, - o dia
em que Jeová repousa, feliz com a sua criação do mundo e da espécie a quem
entrega a guarda do Jardim do Éden. Nas correspondências tradicionais temos os
sete dias da semana, os sete planetas, os sete graus de perfeição, as sete
esferas celestes, as setes pétalas das rosas, os sete ramos da árvore cósmica
dos vários chamanismos, e sem esquecer muito mais, da simbologia que lhe é
atribuída: as setes hierarquias dos Anjos, por exemplo para figurar a
totalidade da perfeição dos mundos celestiais.
Assim descobrimos que no sete ( e voltemos ao Génesis)
se encerra o todo da perfeição, divina, cósmica, e por lhe pertencer, também a
material: o primeiro par humano feito
de lama...
O sete indicaria um ciclo completado numa enumeração
positiva.
Passo adiante toda a enumeração de cultos, do ocidente e do oriente em que o
sete intervém, como energia condutora. Até na lira de Orfeu...
Em resumo, podemos dizer que o sete simboliza a
totalidade do espaço e a totalidade do
tempo.
Passo adiante
Heidegger, na discussão do Ser e do Tempo.
Mas pressinto, ao ler, que nestes poemas é o Ser que
se expõe, e à margem do tempo que imobilizou algures no íntimo da alma, que é
forma secreta do ser.
Eugénia, neste seu livro, deixa uma porta aberta para
uma transcendência que pode escapar aos incautos. Como Dante, que andou pelos
seus versos, a viajar num caminho que também foi de descida, - inferno,
purgatório – até chegar ao deslumbramento da cósmica visão do Centro -
Clemente de
Alexandria ( 150 AD) podia ser outro a entrar por essa porta: àcerca de Deus, Coração do universo, escreve o santo que
Dele emanam os seis espaços e as seis fases do tempo, e que esse é o segredo do
número 7: regresso ao centro, ao
Princípio, pois a seguir à sequência do seis surge o sete que o fecha.
Podia ficar eu agora a pensar, por isso Jeová deus,
descansa....mas não há descanso, na verdade, há movimento perpétuo. O sete
contém o movimento, não o repouso, na sua totalidade. É um número de dinamismo
total, como podemos ler em tantos tratados, das várias religiões, Surge no
Apocalipse de João, surge em Avicena, nas sete aberturas do corpo e do coração que os chineses figuram nas sua
práticas médicas, filosóficas, secretas e e alquímicas.
Passemos do sete das míticas religiões ao sete de
Dante, que a autora conhece bem, e à descida de uma escada de sete degraus, –
os degraus sempre a descer. Por que razão? Que impulso negro se adivinha por
aqui?
O desejo de chegar à libertação da rua ? ou de chegar
às profundezas da cave em que toda a matéria do inconsciente arcaico se revela
e nos abre ao conhecimento de nós próprios, limitações, qualidades,
defeitos...necessidade de continuar no caminho, ainda que no tropeço de muitas
banalidades. Sem esquecer que afinal toda a escada é de ouro, liga o céu à
terra, um corpo a outro corpo.
Dante ( no Paraíso)
Vi uma escada côr de ouro
iluminada por um raio de sol, e que se
erguia
tão alto que o meu olhar não conseguia
segui-la.
Vi ainda descer pelos degraus tanto
esplendor
que pensei que todas as luzes que se vêem no céu
se tinham espalhado por ali. (cap.21, 28-34)
Falei do coração, no imaginário chinês.
E é no coração,
num ciclo de trigramas, que vou permanecer, na escolha dos poemas que formam os
Sete Degraus Sempre a Descer, como
miolo do livro...
Perguntar o que é a poesia, ou o que é o amor : não
tem resposta, ainda que numa língua de outro.
Era Jung quem nos recordava que a língua do
inconsciente – essa sim, era a língua de outro, do outro em nós, ainda
desconhecido, e ansioso por comunicar. Eugénia reserva para o meio do seu livro
a tal imagem do coração para onde se desce, e onde o centro se pode finalmente
revelar.
Vamos pois com ela, descer os sete degraus (pp.15-21):
1
O coração, rico em fogo, arde
de amor até que o beijo termina
numa
boca de cinzas.
2
É tão funda a travessia da tua ausência...
Estrelas perdem-se para encontrar
o meu coração no escuro.
3
Companhia intensa e íntima,
melhor amigo, meu riso, meu confidente,
meu Amor.
Ao teu lado, contigo, sempre, dentro
de ti me levavas, e habitava-te, meu Amor,
minha casa.
Excessivos pronomes possessivos: meu, tua.
Já nenhuma morada, só um endereço.
4
Apenas as horas sucedem às horas,
nenhum intervalo de milagres e
é quase noite: a luz desce
e a vida. Não há respostas, só
as janelas agora cegas e este
ponto de interrogação de frente para
o ponto final.
5
Esperei a palavra que salva,
a boca que, beijasse ou mordesse,
fosse sopro e nome de vida.
Não chegou.
6
Sinto. Penso. Sei:
o Amor, porque não tem princípio,
não tem fim.
E é da sua condição iniciar-se na dôr,
e vencê-la,
sem que a chama se apague.
O outro nome de um coração é liberdade
e só por isso nos deixamos prender.
O outro nome do Amor é tu
e só por isso nos deixamos matar.
Há outra eternidade?
7
O Amor é um canto
de riso e de lágrimas,
um canto concreto e fremente,
uma existência.
Uma oração.
A pequenina chama sempre acesa que
serve à adoração.
Quebrando, porque a actual narrativa poética
pós-moderna impele à desconstrução, temos nas páginas seguintes a esta
meditação em sete passos ( carregada de interpelações existenciais, para não
dizer místicas e sofridas) um capítulo III de Corações No Escuro (como que evocando uma Clarice Lispector, não
citada, mas certamente conhecida, pelo célebre Perto do coração Selvagem, obra que atravessa o inesperado da vida cortando-o
com a velocidade da prosa) – quebrando, dizia eu, o ritmo dos versos
anteriores, Eugénia traz agora à nossa leitura situações de um quotidiano
familiar, a laranja na mão, a cozinha onde a corta, a evocação de alguém que
ali não está. De um real ou possível passeio nos jardins da Gulbenkian, para um
beijo real ou imaginário, resume a poeta o que é a existência, como agora a
descreve: “ uma existência de papel”. Fugiu-lhe algo da vida, na descida dos
degraus, agora vive se escreve. Em A
Carne Suspira Melhor (p.27) poema que descreve um sonho acordado, porque
sonhar já não é possível, a consciência tomou conta da vida, o que se deseja
agora é o dia a dia, “os passos concretos” (nos outros de que abdica, da escada
invisível, o caminho era incerto...) e devagar se chega do espaço da cozinha ao
espaço de um corpo que se deseja, é bem real, tem cheiro, tem pele com sabor, e
já é só memória “ o céu aberto de
estrelas” de um Dante ultrapassado.
Contudo, um pouco do maravilhoso que todo o Amor
guarda em si, veremos adiante como brilha o seu trono:
O amor de um homem é um trono
adornado de céu e estrelas e,
toda a gente sabe,
a mulher gosta de jóias
(p.30).
Não fosse o leitor embalar-se de novo nalguma visão
etérea, Eugénia com o seu subtil (ou nem tanto) sarcasmo volta a pôr os pés no
chão de quem iria com ela descer novas escadas...O amor acaba, afirma
continuando noutro poema, que repete o que ficou dito. Evoca um Ulisses que
perdeu a sua força mítica, evoca Pedro e Paulo, santidades esquecidas, para
fechar com um verso que apesar de tudo interpela, não é afirmação categórica:
“ Talvez o coração nada tenha para aprender” (p. 38).
Eugénia de Vasconcellos é tão jovem ainda, a vida lhe
trará outras experiências, literárias e não só, viajará por dentro de corações
mais inquietos ainda, quem sabe, do que o seu, e o túnel de que fala, erguido
entre dois sonhos, seja afinal menos negro do que as negras asas dos Anjos com que julga saudar a morte (p.36).
Reset
Respira.
Não há plano.
Não há sonho.
Não há futuro.
Só há agora:
de hora a hora
até o passado se desfaz.
Não vais morrer:
respira.
(p. 40).
Respiremos, vai ser preciso reler...