Disse noutro post que há uma linhagem de mulheres escritoras a que se devia dar atenção, em altura de prémios, e também do Prémio Camões, considerado o maior.
Não que à partida se deva proceder por critérios de paridade - só por si já seria ofensivo - mas simplesmente de qualidade literária e originalidade.
Cristina Carvalho tem uma produção regular que atesta da sua íntima ligação à escrita, talvez porque tem no ADN os genes de uma Natália Nunes e de um António Gedeão.
É romancista, é biógrafa, escreve para adultos e para jovens numa prosa cujo estilo se reconhece pela marca (rara entre nós) da simplicidade directa, e não hesita em aceitar um desafio como o que a levou a escrever sobre os animais da Tapada de Mafra, com fotografias de Nanã Sousa Dias. Um ano a andar de noite à descoberta do que podia ser interessante para o seu leitor.
Cristina Carvalho tem essa disponibilidade generosa de dar atenção ao leitor, e reconhece a importância de dar a conhecer, aceitando uma agenda de convites das Escolas, que por vezes adivinhamos que possa ser carregada, num ou noutro momento da sua vida. Tem esta marca, também genética, de Rómulo de Carvalho, seu pai, o professor ilustre e muito amado por muitos que se escondia sob o pseudónimo de António Gedeão.
Cristina escreve, e pela escrita divulga, fala com os mais velhos ou com os mais novos, dá a conhecer o livro, a leitura, a descoberta do prazer da palavra. Cristina tem o seu mundo aberto à condição da palavra: mas que não seja hermética, que se diga por ela o que se tem a dizer, de forma quanto mais simples melhor. Nela a palavra é descrição, mas acima de tudo comunicação: de alguma ideia, sentimento, emoção...mas que se entenda.
Nas suas páginas o português que lemos é mais do que escorreito, é perfeito no domínio do vocabulário utilizado. A mão parece rápida, mas é mão cuidadosa, que detalha, e a narrativa torna-se intensa, e quando necessário, por vezes até brutal.
Há rebeldia, na sua escrita, há a liberdade que só os rebeldes assumem, nos temas, nas situações em que as personagens se envolvem e no vocabulário usado, coloquial sem que deixe de ser o que é: literatura. Escreve para ser lida, e ser lida regularmente, adivinhando nós que a seguir a um livro publicado outro estará já na sua ideia. Também aqui uma forma de rebeldia. Quem desejasse sossego, dela não o espere: está viva e está presente. É esta a sua forma de criar, sempre em desassossego, um pouco ao modo de Pessoa. Ao ler este seu romance, Rebeldia, publicado agora, nas ed. Planeta, depois de ter recebido em 2016 o Prémio Autores/RTP pelo romance de Modigliani, fico a pensar quem seriam os autores que ela escolheria para antepassados literários: Camilo, mais do que Eça; dos neo-realistas ( de cuja prosa e atmosfera social encontro ecos) Alves Redol, um dos Mestres; Maria Velho da Costa, entre as portuguesas das célebres Cartas. Teria de lhe fazer uma entrevista: o que leu, o que mais gosta de ler, até ao dia de hoje. Ou o que relê, quando não lê...
Tudo o que lemos deixa marcas. Por vezes encontro frescos balzaquianos, na descrição das situações, das personagens, casas, janelas, jardins, vielas mais escuras onde o perigo espreita. Escreve, quem escreve por entrega, o que se vive e guarda na memória das sensações. Não é por acaso que Proust evoca o cheiro da "petite madeleine" e a partir dessa sensação
viaja pelas memórias do seu tempo de outrora, que a sensação arrasta.
Cristina deixa também ela a sua marca nas memórias recuperadas ou ficcionadas ao longo dos seus escritos. Em vez de afirmar "viajar, perder países", diremos de Cristina : viajar, ganhar países, os conhecidos, ou os da alma, sempre por desvendar.
Não foge a temas complexos, com o argumento de que são temas da moda. Vira-os do avesso, lança-os à nossa cara. Há ímpetos de violência no processo. Mas haveria rebeldia possível, sem algum momento de violência, mais ou menos cruel? Aborda a arte e alguns dos seus mais eminentes criadores, como Chopin, ou Modigliani. E como nos diz neste seu novo livro "desenha pessoas". Desenha-as como escritora, observando "o interior dos cérebros, os pensamentos, as idiossincracias, manias, hábitos, sentimentos. É isto que eu desenho" afirma.
Tem a reacção de um analista, e a pulsação que a leva a desenhar, seja em esboço mais rápido ou com o cuidado de um retratista fiel, é o que dá outro impulso à escrita, e à leitura.
Uma última palavra:
Cristina é presença frequente, desejada e divertida, no facebook. Conversadora nata. Dialoga e tem gosto nisso. Comunicar, a sério ou a brincar é com ela.
Mas não nos iludamos: há uma seriedade muito severa e atenta à circunstância do outro, dos outros, na sua obra. E de si própria.
De vez em quando sentimos, ao lê-la, neste livro, que pode não haver mais vida, pode não haver perdão.
2 comments:
Yvete passo para desejar que tenhas um ótimo final de semana.
Um abraço.
Pedro.
Obrigada, com livros não há melhor!
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