Saturday, April 15, 2017

Orfeu, o eterno mito, perdido e recuperado, in memoriam Maria Helena da Rocha Pereira

Com Helena da Rocha Pereira, minha Mestra e amiga, aprendi a amar a grande cultura grega, a grande filosofia, sem esquecer a grande poesia  e até hoje, que evoco o seu desaparecimento, a palavra Grécia, ou alguma matéria grega logo me fazem pensar nela. Esta é a minha discreta homenagem.
Irei primeiro ouvir as óperas, Monteverdi, Gluck, ambientes de misteriosa evocação de um amor castigado? Ou vamos antes ler o longo e belo poema de Rilke, em que Eurídice, arrancada ao seu sonho de sombra, inquieta o herói de tal forma que ele não resiste e rompe a promessa feita de não olhar para trás? Dos deuses, suas manhas, sempre desconfiando...
Em Rilke cumpre-se o mito, mas é ela, a Amada, que desempenha um maior papel. Pois ser a Amada impõe tais condições que tornam todo o amor um amor impossível. Orfeu não tem caminho, Orfeu não tem retorno, apenas a morte que o espera mais adiante, ínvia, apesar de amante...
Toda a morte é amor, pois é feita de uma súbita entrega.
Que fazer deste Orfeu aqui apresentado, num lamento que de novo nos conduz a Rilke, um outro Rilke, o que surge nos Sonetos a Orfeu, aludindo à  morte de uma jovem,  que partiu cedo, e só o poema evoca?
Pina Bausch, entre outros grandes encenadores e coreógrafos escolheram este mito como matéria sua.
Aqui o vermelho sangue escolhido por Pina contrasta, antecipando o final trágico de Orfeu, com o azul profundo, todo feito de sombra, escolhido por Bob Wilson para a mesma narrativa da ópera de Gluck.
O mito remete para os primitivos rituais orgiásticos de iniciação, Mistérios, de que encontramos os Hinos em J.O.Plassmann, ORPHEUS, Altgriechische Mysterien (traduzidos do original e anotados, ed. Diederichs Gelbe Reihe, 1982).
Por estes hinos passa toda a cohorte dos deuses primitivos, os nocturnos, que reinam sobre os mortos, e os diurnos, que reinam sobre os vivos à superfície da terra. Terra que a todos sustenta,  verdadeira Mãe universal, como no início deste hino:
Terra divina,
Mãe dos espíritos celestiais,
E dos seres mortais,
Dadivosa, a todos alimentando
...
Centro do Todo Eterno.

O ritual consta de oferendas, feitas de sementes. Porque da semente nasce e cresce a vida.
Orfeu  é ele próprio semente: será enterrado, para que de novo cresça e o seu mito alimente a imaginação dos tempos.
Goethe também escreveu os seus órficos poemas:
Urworte-Orphisch. Palavras-Mãe, traduz Paulo Quintela. Palavras raiz, palavras primordiais, fundadoras, assim as devemos entender.
No primeiro poema, Daimon/Demónio, se afirma a absoluta necessidade de ser conforme " a leis perfeitas e completas". Tudo é espaço e materialização de um Todo que "não há Tempo ou Poder capaz de destruir / Forma cunhada que, a viver, quer progredir ".
A forma original , "die lebend sich entwickelt" que ao viver se desenvolve (isto é cresce) tem muito do pensamento de Goethe no tocante ao conceito de Entwickelung - desenvolvimento (humano e espiritual, como veremos no Fausto e em Wilhelm Meister). A ideia condutora é a da socialização, contra o isolamento. Assim a própria criação se fez o que é, no que dela vemos.
Ritos iniciáticos são isso: formas de socialização, de integração numa comunidade, seja ela qual fôr. Mas como partiremos daqui para a experiência, que pode ser tão solitária, do amor?
No poema intitulado Amor, eis que narra a chama que vem, precipitando-se do céu, trazendo dôr no prazer, "mel e medo" que traz consigo, numa pulsão de opostos que só se ultrapassarão pela fidelidade a um só, e não à dispersão dos muitos. Em matéria de muitos, Goethe sabia o que dizia. Mas elabora, no seu Testamento poético uma doutrina do Ser regido pela Razão, e em que " a Vida se alegra de ser Vida".
Goethe, poeta solar, mesmo escondido na noite de alma do seu primeiro Fausto é na segunda parte da tragédia, só conhecida anos mais tarde, que deixa a sua lição: a de servir, e servir a humanidade através do esforço de um trabalho honesto e continuado. Uma utopia social, que já nos leva para bem longe do sacrifício de Orfeu, todo feito de amor e entrega insubmissa.






3 comments:

Pedro Luso de Carvalho said...

Olá Yvete.
Uma bela homenagem à sua amiga e mestra, justamente a grandeza de Orfeu e também Rilke, poeta de reconhecido valor (e autor de um único romance, que estou lendo).
Uma ótima semana.
Um abraço.
Pedro

Yvette Centeno said...

Obrigada, Pedro.
Agradeço o cuidado com que me vai lendo...boa semana, boas leituras.

bea said...

Reconheço que não devia pôr-me a comentar textos que não li e de que apenas ouvi falar. Mas pronto.
Ainda não li Goethe e Fausto conheço-o apenas da wikipédia, que é quase desconhecer. Mas é curioso, ainda que natural, que haja um Fausto II e aponte um fim diverso, mais ligado à universalidade "servir a humanidade através do esforço de um trabalho honesto e continuado". Penso que esta conclusão seja a que interessa à faixa etária de Goethe na sua concepção. Parece-me uma das formas da velhice conseguida: o abandono do particular e a apologia do universal bem comum. E o esforço para lhe ficar mais próximo.