Tuesday, April 18, 2017

João Paulo Esteves da Silva música e poesia


Ouvi a música de João Paulo, no Hot, antes de saber que também era poeta.
Compositor e improvisador tão inspirado, tão denso, que foi preciso ouvi-lo muitas vezes, para entrar no seu mundo e por lá ir ficando com ele...
Maior surpresa, não nego, foi contudo encontrar na sua poesia um discurso de simplicidade propositadamente quase trivial, por vezes, que nos leva ao engano: pois nada de trivial existe nela.
Tenho ao meu lado, numa edição discreta e bela, de capa cinzenta, feita sobre um quadro que é uma mancha com algo de cósmico, os trinta e quatro sonetos e trezentas e cinco redondilhas, de 2014.
No primeiro soneto define a sua condição: é um solitário, e quanto mais observa o que o rodeia melhor se sente só, e mais à vontade:
É necessário ter um bom orgulho
para poder viver sem laços, só,
a escrevinhar maus poemas no pó
e a encontrar simpatias no entulho.

Claro que há perspectivas para Julho;
melhores dias virão. A mãe do Tó,
que anda na vida e vende pão-de-ló,
mistura as artes sem qualquer engulho.

Talvez seguisse o exemplo desta santa
que sacrifica tudo pelo filho,
que gasta o corpo, as nalgas e a garganta,

num dom perante o qual me maravilho,
e me inteirasse, assim, na sociedade;
não fora o achar-me, só, mais à vontade.

O tom coloquial, irónico, tem o seu quê de pessoano, na variante  Álvaro de Campos, na sua recusa de, aos proclamar-se futurista, com Almada Negreiros, recusar o banal quotidiano, descrito quase ao modo de um fado. O contraste com a forma escolhida, o soneto, torna ainda mais relevante a afirmação de o estar bem, e tanto melhor quanto mais só. Pois na diferença se afirma o poeta, e não na sequência (seja do que fôr).
Olhou, neste soneto, para si e para aquela mulher comum das nossas ruas. Olhará no soneto seguinte para o país - a que todos, poetas de excepção e criaturas comuns - todos pertencemos.
E aqui, se no anterior havia lugar para um poeta só, não haverá lugar para nada e ninguém: apenas ""serem só algo, um nome, sem raiz". Lemos nos  tercetos a chave da interrogação:
Quem é que explica a vida de um país.
Sei que o sinto mais morto do que as pedras,
que as torres novas e as torres vedras

ruíram todas, e vejo pessoas
ajuntarem-se em poças e lagoas,
serem só algo, um nome, sem raiz.

De novo a ironia só esconde uma crítica maior, a de não se se vislumbrar nada de nada, pois para que se entendesse a vida deste país que é nosso, falta o mais necessário, uma raiz.
João Paulo escreve os seus sonetos, contido numa forma de que se rebela pelo olhar atento do que diz. Poesia feita de um olhar que nada perde, para de si mesmo nunca se perder.
Está entregue a um mundo que recusa, e escreve , como quando toca, para se libertar. O dito fica dito e pode seguir em frente, naquela espécie de rap que são as redondilhas. Vale a pena ler esses versos seguidos e em voz alta, como os criadores  liam à Kurt Schwitters a sua ursonate: a sonata dos sons primordiais...com uma diferença, é que encontramos nas redondilhas igualmente geniais de João Paulo uma outra espécie de coisa primordial: uma Lisboa com o desassossego que só Pessoa tão bem descreveu e que este poeta-compositor retoma fingindo que tudo o que nos diz é quotidiano...
Para o homenagear trago aqui a sonata dos sons - a que assisti há muitos anos numa sessão em Berlin - desafiando a outros, dos nossos actores ou compositores, por aqui, a que façam o mesmo com estas redondilhas: velocidade e imaginação vocal é tudo quanto se pede...


   

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