(do meu diário)
30 de Janeiro
Acabei o post do livro do
António Caeiro.
Deixei em aberto a última
parte, em que a reflexão incide sobre "Férias" e naturalmente a
infância.
Esta ideia de infância deu-me
outra, que ficará aqui.
Lembrei-me de Proust, de Rilke, da infância evocada nos seus livros, e do poema de Mignon, no Wilhelm Meister de Goethe (Os Anos de Aprendizagem).
Lembrei-me de Proust, de Rilke, da infância evocada nos seus livros, e do poema de Mignon, no Wilhelm Meister de Goethe (Os Anos de Aprendizagem).
Jung e Kérényi, ao escreverem
sobre o Puer Eternus não é apenas
sobre o deus Hermes que escrevem, é sobre a criança em nós, a nossa pulsão não
domada ainda por uma Razão mais forte, um Senex
sublimado. Essa pulsão, inconsciente, arquetípica, cria um sentimento de ânsia
e de saudade por algo que nos está longe, foi quem sabe outrora vivido, ou
conhecido e a que desejaríamos voltar. O país da infância é um desses lugares,
mas sendo o tempo um rio que corre, inexorável, para um fim que nos aguarda,
embora desconhecido, nada se pode fazer. Fica o apelo, o lamento, o canto da
alma exposta a si mesma e aos outros.
É o que lemos no mais célebre
dos poemas do ciclo de Mignon:
Conheces o país onde os
limões florescem,
E brilha na folhagem escura o
ouro das laranjas,
Do céu azul sopra um vento
suave,
A murta silenciosa e o altivo
loureiro,
Conheces?
Partir! Partir,
O meu desejo é ir para lá
contigo, meu Amado.
Conheces a casa? Sobre colunas está pousado o tecto,
A sala brilha, refulge o
aposento,
As estátuas de mármore
fixam-me com o seu olhar :
Pobre criança, que fizeram
contigo?
Conheces isso ?
Partir! Partir,
É o que desejo, contigo
partir, meu Protector.
Conheces o monte, o carreiro
entre as nuvens?
A mula procura o caminho na
névoa;
Nas grutas vive a antiga raça
dos dragões;
Despenham-se os rochedos e em
torrente as águas,
Conheces?
Partir ! Partir,
Seguir nosso caminho! Ó Pai,
vamos embora!
Outros, além de Goethe, exprimiram
uma mesma nostalgia. Penso em Baudelaire, penso em Rimbaud e Verlaine.
De Baudelaire o conhecido
poema L'Invitation au Voyage (O
Convite à Viagem) tem o mesmo apelo de ir viver para longe ( o além, o mais ali,
no longe), onde seria possível viver juntos, felizes, num país que é feito à
sua imagem: "Aí tudo é ordem e beleza / luxo, calma, volúpia".
Objectos requintados, suaves
perfumes, esplendôr oriental "tudo falaria / à alma em segredo / na doce
língua natal".
A língua natal é-o também por
ser a língua da infância - o tempo perdido, lá longe, sonhando que é possível
voltar atrás para o recuperar. Poeta feliz é o que não cresceu, é o que não
precisará de se lembrar. Mas há poetas felizes?
Fernando Pessoa evoca a sua
ama, sonha com ser princesa, para poder ser feliz.
Mas falemos de Proust, na sua
Busca do Tempo Perdido. Começa por
contar como em criança se deitava muito cedo, era uma criança doente, que a mãe
protegia do frio e da humidade do cair da noite: Pendant longtemps je me suis couché de bonheur.
Sofria de asma, e mesmo já em
adulto continuou, quando se sentia pior, a ficar de cama, recostado, a ler ou a
escrever este seu passado, de uma infância de mimo, de uma juventude e
maturidade em que um certo isolamento, um olhar mais distanciado e quem sabe
por isso mesmo mais curioso e atento, ajudaram a fazer dele o melhor cronista
do seu tempo.
Pensando noutra infância, a
de Rilke, nos Cadernos de Malte Laurids
Brigge, a luz e os jardins felizes de um Proust transformam-se em
corredores sombrios de mansão antiga, povoada de fantasmas, de vozes e
lamentos, da morte poderosa do Camareiro Brigge , morte
única, inenarrável, arrepiante, que punha os seus dogues a uivar. Uma infância
que Rilke evoca, mas não é um Longe de que se tenha saudades.É antes um Aqui e
Agora que mete medo, pois quem sabe se volta a repetir-se?
Tento às vezes recordar a
minha infância: em Lisboa, em Tavira ou em Lagos, antes e depois da Argentina.
Ficam-me poucas coisas. Já da adolescência e da juventude - grande parte em
Paris - teria muito a dizer. Foi por lá que cresci, lendo autores que me eram totalmente
novos, e inovadores, como Henri Michaux, amando a pintura que a Guenia expunha
na sua Galeria de Arte, ou simplesmente passeando a pé nas ruas até parar numa
livraria, ou numa esplanada onde tudo à volta chamava por mim. Foi desde aí que
comecei a gostar de esplanadas. Sentar-me, ficar a perder-me do tempo, o que me
parecia o mundo inteiro desfilando diante dos meus olhos.
Paris foi o meu
"là-bas".
Se estava doente, como
aconteceu por vezes, chegava a Paris e já ia curada.
Mas também eu, como Proust,
durante muito tempo me deitava bem cedo: Buenos Aires, para onde fomos com o exílio do meu pai, em 1946, tinha um clima húmido, e eu sofria de anginas.
Chegava do colégio e o ritual foi sempre o mesmo: lanche leve, porque ia jantar
cedo, banho, cama, ler um pouco (lia uma enciclopédia infantil)jantar na cama e
dormir. Às vezes, antes de adormecer, o meu pai contava-me a história da
Princesa Magalona.
Rilke também fala da sua
infância e da questão da leitura:
"Quando era criança,
considerava a leitura como profissão que se deveria assumir, mais tarde, um
dia, quando chegasse a hora das profissões. Para dizer a verdade não tinha
ideia de quando isso aconteceria ao certo. Pensava que haveria uma época em que
a vida se fecharia, de algum modo, e não chegaria a não ser de fora, como antes
fora chegando a partir de dentro. Imaginava que então se tornaria inteligível, fácil de interpretar, e não deixando margem para equívocos (...). Este ilimitado
tão singular da infância, este não-relativo, que nunca o olhar dominara, seria
então pelo menos ultrapassado (...) Mas na verdade quanto mais se olhasse para
fora mais se remexia em coisas dentro de nós: quem sabe de onde viriam! "
E continua:
" É na época destas
transformações que também situava a leitura.
Então os livros seriam tratados como amigos, haveria um tempo para lhes
ser dedicado, um certo tempo que passaria de modo regular, dòcilmente, tão
demorado quanto nos apetecesse consagrar-lhe".
Claro, observa ainda, haveria
livros que prenderiam a atenção a ponto de se adiar um passeio, um encontro, a
resposta a uma carta urgente.
Todos nos podemos reconhecer
nesta experiência, de criança e até mesmo de adulto.
Rilke refere então que foi em
Ulsgaard, nas férias que "entrou subitamente em leitura" - como quem
entra numa outra fase da vida. Um salto na passagem da infância ao estado de
adulto. Conclui que "não temos o
direito de abrir um livro se não nos comprometemos a ler todos. Em cada linha
se abria o mundo".
Antes de se abrirem os livros
o mundo estava intacto, afirmação que muito nos interpela: pois antes das
leituras de descoberta, deste ou daquele autor, diante de nós oferecidos, o
mundo não existia? Não existia para nós, mas onde estava, aberto e disponível,
para todos os outros que já tinham lido? Era o fantasma de Abelone que
acompanhava as leituras nocturnas de Rilke. A jovem que o desafiava, brincava e
fazia troça, parecendo nunca o levar a sério.
Mas lá o ia levando pela
leitura dentro...desenhando-lhe, sem que ele se apercebesse logo, a sua alma de
sombra, a de uma Amada sonhada e logo a seguir perdida.
Mas este é Rilke.
Há tantas outras infâncias,
repletas de memórias, chamamentos, hesitações, zangas, escapadelas, que só esse
tempo permite. Eu já adolescente, em Tavira, ia fazer vela com um amigo. Barco
pequeno, da Associação Naval, apontávamos à Barra para chegar à ilha. Era difícil, e
o inevitável aconteceu: ficámos encalhados na lama da Armação do antigo arraial
Ferreira Neto, onde o Rogério trabalhava na pesca do atum (era um amigo do meu
pai, que ajudara a criar, porque também trabalhava às vezes para a minha avó
Rosa na herdade do Roxo). Enfim: foi um escândalo na cidade: a neta da Dona
Rosa com um amigo, naufragados, deixando o barco na Armação e voltando a pé
pelo rio acima.
Pensando em leituras de
Verão: foi nesse Verão, já sem licença para velejar, fosse com quem fosse, que
li os primeiros romances de Agustina Bessa Luís: Os Incuráveis, e Ternos
Guerreiros. A prosa intensa, densa, de que nunca mais me curei, até hoje.
Li tudo.
Hoje leio de outros autores,
outras praias.
Como é o caso do livro de
António de Castro Caeiro, de que me ocupei de início, e me levou até aqui, na
onda dos seus tempos recuperados, alguns, de modo minucioso, como os de Proust,
ou deixando antever um lá longe que permaneceu inatingível, apesar de
evocado. Eis um momento das suas praias:
"A praia ao entardecer
tem a luz mortiça. Na infância, as tardes de praia são estranhas. Na juventude,
é a hora de normal de ir dar um mergulho à praia depois de pequenos-almoços.
Sagres, de véspera, continua
ao sol escaldante.
Há tempo para se perder.
Perder-se competentemente. Corpos e corpos e corpos sem nunca nos determos no
tempo daquela noite com vésperas de corpos e antecipação de corpos. E romances
sem romance.
Ao longe, ficamos sempre ao
longe. É para mais tarde.
(...) Mas adora-se o
regresso, quando se está de novo a sós consigo."
Na solidão do regresso, da
recuperação de rotinas - as rotinas são afinal mais repousantes do que pareciam,
antes das férias - o autor recupera-se, reencontra-se, redefine-se de novo, e
apesar de tudo renovado: sente que afinal é ele mesmo, em si mesmo, apesar de
dizer, como Rilke, " tudo acontece no espaço exterior".
Foi o mundo que se abriu,
nesse tempo de férias, e no regresso delas: "Começo a ver do lado de lá
das lentes e não atrás delas. Aos ouvidos. ouço através das paredes. No lado de
lá do pé. Só toco na areia com a sola do pé e digo que a areia (toda daquela
praia) está a ferver. No lado de fora da pele. (...) Nem de olhos fechados há um
interior. Fecho os olhos. Vejo montanhas cobertas de neve, o fundo do mar em
mergulho. Acompanho-me no colégio, menino. Eu, adulto, a ver-me. Ressuscito
mortos.Visito quem vive à distância.Todo o interior ficção é também sempre
fora.(...) Durmo espaços vastos e estreitos, com cima e baixo, direita e
esquerda, longe e perto, fundo e forma. Entre mim de olhos abertos e
o que eu "vejo" não está a realidade da percepção".
Fomos deslizando por várias esferas, de evocação e Iluminação, ao modo de Rimbaud, culminado na contraposição de opostos: vasto e estreito, cima e baixo, longe e perto, fundo e forma. Antecedidos por uma imagem de fusão, um dos arquétipos mais interessantes, de que Musil também se serviu e com ele Hesse, ao afirmarem que a montanha e o mar são as grandes provações da alma.
Fomos deslizando por várias esferas, de evocação e Iluminação, ao modo de Rimbaud, culminado na contraposição de opostos: vasto e estreito, cima e baixo, longe e perto, fundo e forma. Antecedidos por uma imagem de fusão, um dos arquétipos mais interessantes, de que Musil também se serviu e com ele Hesse, ao afirmarem que a montanha e o mar são as grandes provações da alma.
(Já Goethe nos falara também
de montes, de mares, de lagos, nas suas poesias).
Do olhar exterior, na sua quase
vidência, levou-nos o autor à sublimação
da Alma contemplada em união. Dir-se-á, não passa de um momento. Pois talvez
não, mas esses são os momentos que nos interpelam, e ao mundo e aos outros. Não
escreveu Fernando Pessoa, o nosso eterno Mentor, no poema Além-Deus I /Abismo:
" Olho o Tejo , e de tal
arte
Que me esquece olhar olhando,
E súbito isto me bate
De encontro ao devaneando -
O que é ser-rio, e correr?
O que é está-lo eu a ver?
Sinto de repente pouco,
Vácuo, o momento, o lugar.
Tudo de repente é oco -
Mesmo o eu estar a pensar.
Tudo - eu e o mundo em redor
-
Fica mais que exterior.
....
É um poema longo, que continua.
Mas por alguma razão, Eduardo
Lourenço, num dos seus primeiros Seminários sobre Fernando Pessoa, que nos deu
na Universidade Nova, em 1976, gostava de ficar a reler e a fazer-nos pensar
sobre a interpelação dos versos iniciais, em que o poeta se interroga sobre o
significado de estar ali a ver correr um rio: o que é ser rio, e correr; e o
que é ele estar ali a vê-lo. No Tempo, que corre, e na imagem do rio que ajuda a fixar a temporalidade do ser humano que o contempla.
Pode não parecer, mas desde o
início que a obra de António Castro Caeiro é para uma interrogação da
temporalidade no Tempo que nos deseja levar. No todo da sua escrita, por vezes
com laivos de mão corrida, da escrita automática dos surrealistas, ou da
corrente de consciência de William James, e por vezes, não menos importante, com
uma recuperação da infância perdida, o país onde as laranjas brilham e com o qual vamos sonhando.
Porque há sem dúvida, para
cada poeta, chegado o seu momento, um país semelhante...
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