Um Dia Não São Dias, uma discreta e ao mesmo tempo belíssima edição, daquelas a que a abysmo já nos habituou. Pensamento embalado em arte, em objecto que nos apetece guardar, deixando-o bem à vista para os outros. Como quem acha também, segundo o autor, que um livro não são livros...Os dias serão os da semana, de segunda a domingo. E um final de férias...
Oferece antes um café (podia ser um aperitivo), que para mim é bom: desperto com o café, e prepara-nos para a meditação (leitura) da segunda-feira, deixando já no ar algumas considerações.
O autor é filósofo, e não renega essa formação, entre várias outras, que tornam o seu filosofar mais dinâmico...
Desta leitura que antecede o enumerar dos dias da semana retiro a importância que desde logo atribui aos nomes. Nomear não é um acaso: é um começo, e leva consigo o peso do Verbo, a Voz que nomeou. Assim irá abordar os sete dias da semana, cada qual com a sua especificidade, ultrapassando a questão das diferentes línguas em que são nomeados, e as raízes de onde provenham, indo-europeias ou ugro-fínicas, ou outras, da grande árvore das línguas, porque não é com a raiz que António se vai preocupar, é com a substância do tempo que em cada dia da semana é dado viver a cada um.
Não há dias iguais, a segunda-feira com que o livro abre (depois do pequeno prólogo oferecido a prévio enquadramento) não será igual para todos, a dele não será a minha, a nossa não será a de tantos outros, pelo mundo fora. Esta ordenação dos dias da semana é um esforço temporal, cronológico, mas de tão grande diversidade que podemos interrogar-nos: será que por esse esforço chegaremos à substância do que se possa dizer, ou melhor, viver?
Estamos na verdade, a reflectir sobre o Tempo: o da vida, da infância à maturidade e à velhice, o seu fluir, um rio que tem no seu percurso, nunca igual, em cada hora vivida, uma pedra bem diferente para cada um, em cada momento. António fala da infância, o seu vibrar próprio, quase autónomo - não há ainda aqui uma consciência verdadeira do tempo - e que depois se recorda, porque recuperar é impossível, na velhice.
A criança que está no seu fim de semana, vamos imaginar que feito de brincadeiras felizes, não vive esse tempo contado como o velho que sozinho no lar já nem aguarda visitas de ninguém.
A segunda-feira da criança terá obrigações, horários, bancos de escola, atenção às lições, algo de antecipado ao que será (e já são os seus pais ) no futuro. Um tempo condicionado. Contará os dias para chegar de novo ao tal fim de semana de liberdade, ainda que relativa.
Pois a questão do Tempo, e do tempo, dos dias da semana, é uma questão relativa. A verdade, na relação do Ser e do Tempo - que puxa o filosofar imediato, é esta: o ser da criatura que somos materializa-se no tempo e no modo como o vivemos. Mais ricos ou mais pobres, nessa vivência, não haverá nunca um dia, uma semana, um mês, um ano que se possa universalizar, a não ser nas celebrações desta ou daquela memória. Algo que distrai, que interrompe, que pode até alegrar, mas em nada muda a essência da coisa : que para cada um haverá um tempo, o seu, e nada mais.
Assim, quando pela mão de António, no decurso dos seus dias, chegamos à quarta-feira, que ele define como meio da semana, eu, ou alguém que tenha quartas-feiras que não são vividas (sentidas) como metade dos oito dias subentendidos,- na realidade são sete, os dias da criação mais o do descanso dominical - alguém, dizia eu, para quem o ritmo seguido das horas condicione a liberdade dos dias, não haverá o sentimento de chegar ao meio de coisa nenhuma, pois nem fim de semana terá se calhar no seu trabalho.
Os dias contados, como as semanas do autor, foram, ao longo dos séculos, nas sociedades em geral, uma conquista difícil. O que houve foi sempre um fluir contínuo, que só noite e dia podiam dividir. Ou as estações, que condicionavam também a caça e a pesca dos primitivos, na sua luta pela sobrevivência.
Para os meus filhos, a quarta-feira era, de facto uma espécie de meio da semana: não tinham aulas de tarde. Mas isso foi naquele tempo...e cá estou eu a referir-me ao tempo, e não aos dias...
António Caeiro, no seu cronómetro interior, por alguma razão sentiu que quarta-feira era um corte (por analogia fonética? associação livre?quarta de corte? ) e assim desenvolve as suas razões, por uma travessia de espaços, -não de tempos - que se demora especialmente em Lisboa, a Lisboa, de muitos, a Lisboa de todos, colorida ou tristonha (lá está, conforme os dias) para não dizer mesmo as Lisboas de Pessoa.
Para o nosso autor, que procura nos detalhes as razões dos seus dias, a quarta-feira é "um marco":"o dia em que a semana atinge o seu apogeu. Quando o fim-de-semana passado começa a ser esquecido". Eu ia antes de dizer que seria talvez quando o fim-de-semana seguinte se aproxima, veloz. Mas não foi preciso, o autor afinal diz isso por mim:
"É o tempo intermédio entre o fim-de-semana passado e o fim-de-semana que se aproxima".
É do tempo que passa que ele deseja falar, e de como se passa o tempo...e de como se irá passar o resto do tempo que aí vem...
Depressa se chega a quinta-feira ( com a idade, não quando se é jovem): a idade comprime a vivência do tempo.
Mas António é jovem e lá está, a sua quinta-feira não poderia ser igual à minha, e ainda bem, porque a minha já eu conheço bem...a dele irei agora descobrir, na sua prosa corrida, na escrita que desliza de um dia para o outro, como vai acontecer:
"A quinta-feira isola-se de todos os dias da semana. Às quintas de manhã, a 'janela' de sexta-feira parece já abrir-se. É como se a quinta-feira e sexta-feira fizessem parte de uma mesma unidade de sentido temporal".
E entramos na descrição de uma "luz da tarde" e de uma série de situações do quotidiano, em pormenor demorado, que permite que se chegue a seguir a um poente em que tudo se dilui. Eis que se descreve então o dia e a noite, a luz de um, que define contornos, objectos e pessoas, o escuro de outra, que apaga, anula, confunde o que antes estava tão iluminado. Na verdade o que aconteceu foi uma alteração de como se percepciona o tempo dos dias (cada dia) para uma outra sensação, a do tempo dentro dos dia, que se divide na aurora, o amanhecer, que os inicia, depois o meio-dia, depois o entardecer, que precipita o poente e a noite. Não por acaso temos, desde São Tomás de Aquino, seguido por Boehme, uma Aurora Consurgens, tão carregada de simbolismo.
Os momentos do dia são apontados pelo autor como "fases que passam continuamente de umas para as outras (...) Mas podia ser sempre noite escura ou dia claro, como sucede em algumas zonas do globo. Cada dia, porém, decorre entre o nascer do sol e o pôr do sol."
Eis que a natureza, o seu ritmo, se sobrepõe às nossas divisões, às nossas nomenclaturas, às nossas cronologias...Natal e Novo Ano não se celebram nos mesmo dias entre cristãos, judeus, chineses. Neste momento em que escrevo, lendo António Caeiro, celebra-se o Novo Ano Chinês, que será do Galo, supostamente de abundância de grão...
Mas o interessante é este desvio, esta mudança, que se verifica na reflexão proposta: de novo interpelamos com ele o Tempo, a inscrição dos dias (dos seres) no Tempo, na Unidade Maior da Criação. É o próprio autor que nos conduz nas interrogações:
" Será a vida um único grande dia, e os dias do quotidiano as suas fases? "
E esta sua quinta-feira, " que alonga e estreita o tempo de modo radicalmente diferente " - direi que em mim , no meu caso, que não pode ser o dele, estreita, mais do que alonga, - esta quinta-feira onde chegámos na leitura não altera o tempo, como julga o autor, "se é de manhã, se é de tarde ou se é de noite". Antes voltaria à questão das idades, se se é criança, jovem, adulto ou velho, e para cada idade o viver das Estações, da Primavera ao Verão, ao Outono, ao Inverno...
E demoro então na reflexão que mais se aproxima de mim (na verdade, toda a leitura é subjectiva, e a minha é tão só isso, não pretende ser mais do que a reacção, numa proposta que se me tornou sedutora):
" O que encurta o tempo? O que o alonga? Como é o ser do tempo para poder ser curto e longo? Não é o tempo o mesmo?Não podemos passar as mesmas horas sem darmos por elas, quando para outras pessoas parecem custar a passar?(...) Quer dizer que o tempo é determinado subjectivamente? (...) Sou eu o tempo? Como? Ninguém percorre o meu tempo, como ninguém é eu. Só eu sou eu."Mas da abstracção que se adivinhava, se materializa a concretização - também ela sendo o que é, para cada um - dos momentos do dia, até que chegada a noite se abre o portão ante-previsto, desejado, de uma sexta-feira. A sexta-feira, também ela única, a seu modo, e abrindo já o espaço aparentemente tão maior do fim-de-semana.
Para o autor, a sexta-feira, que a quinta já antecipou, é o dia em que se "abre o possível", com a sensação "de tempo a haver" ( e não a perder, como quem perde a vida, a cada dia que passa).
Diz ainda:
" O horizonte do tempo semanal expande-se, do mesmo modo que às segundas se contrai".
E mais:
" A raiz do tempo revela-se às sextas-feiras como em nenhum
outro dia da semana. A sexta-feira radica no futuro (...) à sexta-feira tudo é antecipação".
Na verdade está a definir este dia como um tempo que dá já a saborear "um simulacro de férias". Óbvio que não o será para todos, e quem lê estas afirmações poderá contrapôr, da sua experiência, se calhar o contrário, não tendo tido nunca nenhum momento de férias...
Mas há de facto, culturalmente enraizada, esta ideia de que ao poente de uma sexta-feira se inicia um "tempo de suspensão", no ritmos da vida quotidiana, seus afazeres, suas obrigações. Para viver um Tempo Maior, de liberdade, mesmo que para cumprir alguma outra obrigação, moral ou religiosa, ou pura e simplesmente, sem mais, para não fazer nada, só o que a cada um apeteça.
Será que a meditação do tempo, da partilha dos dias e das horas, no grande ciclo da vida, nos empurra para questões maiores? E haverá questão maior do que a da vivência, no tempo, da própria vida? Que outra coisa lhe daria mais sentido?
Fomos criados para ser inscritos: a nossa lápide é essa mesma, do tempo, seja qual fôr o dia.
No fim do livro somos conduzidos para o tempo das férias, os dias da infância...mas de infâncias falarei num outro post.
Monday, January 30, 2017
Friday, January 27, 2017
Saturday, January 21, 2017
Tâmaras trazidas pela mão de um músico-poeta, João Paulo Esteves da Silva...
É assim que eu gosto de ouvir, em silêncio. Seguir, quando possível, um tema ou um motivo que se estrutura, desestrutura, se amplia para respirar e volta a centrar-se numa esfera que sendo a mesma é outra - lembrando-me-me a música das esferas que Shakespeare em muitas das suas peças mais inspiradas descreve. Esferas que são da noite, são do abismo da alma, que a música, subtil, ilumina e revela.
Não fiquei admirada quando descobri que João Paulo era poeta, fazia todo o sentido que ele se exprimisse também numa outra linguagem, igualmente musical, da imagem na palavra, do pulsar do ritmo na palavra, como quem diz é assim que bate o coração do homem, quando fala. Um tal dom é precioso, não é distribuído a todos por Orfeu, o que se perde na noite, e perdido muitas vezes se encontra, daí que seja eterno o mito, eterno o seu fascínio, o seu canto de encanto.
Falemos então de tâmaras, o fruto do deserto, nascido na sombra dos oásis que protegem palmeiras, como se protege a Árvore da Vida. Um frito que sacia, que alimenta, que concede, por breve tempo, repouso.
Aí me encontro com ele, fugindo a um sol que queima, reduz a alma a cinzas.Na Nota final com que encerra o livro, João Paulo explica um pouco do método que seguiu na escrita: mão livre, sem programa prédefinido, "gota a gota, aqui e ali, situações, contemplações, memórias e acasos que, por alguma razão, quiseram deixar rasto escrito".
Deixaram. O resto é arrumação, escolha, com ou sem ajuda amiga e uma decisão: dar a ler, para que os outros vibrem com ele, também na sua poesia.
Abre com um Prólogo, para que não restem dúvidas:
Ninguém consegue
secar esta terra
Uma luz maravilhosa ilumina os pântanos
eterniza amores e pensamentos húmidos
Dentro dos sons
ouve-se sempre um chapinhar
Estamos ou iremos estar na plena eternidade de um Rimbaud que se esconde, mas está vivo e atento, à Eternidade:
Q'est-ce l'Éternité?
C'est la mer allée avec le soleil
Alquimia, íntimo sentido do que é a fusão do elementos: a terra (matéria), a luz ( o sol), a água (mercurial, com o sal da vida que retém e transforma). Em tão pouco, ao espírito oriental do que poderia ser um Haiku, se consegue dizer tanto.
A palavra faz falta, mesmo que transborde, quantas vezes, para os sons dos maiores momentos musicais.E aqui a reencontro, páginas adiante, Segundo o Talmud:
As letras e a escrita fizeram-se entre dois sóis,
no tempo duvidoso dos milagres,
nem na noite, nem no dia, in extremis,
a caminho do descanso.
....
nós misturamos as iniciais dos nomes,
seguramos nestas ferramentas
que quase não existem
e fazemos coisas do outro mundo.
Não é a primeira vez que me acontece, ao ler estes poetas que amo e acompanho, rever ou melhor reencontrar o que escrevi outrora, jovem, ou com uma idade próxima da que eles t~em agora, no seu meio de vida: algum sentimentalismo, mas mais racionalizado por eles, faz parte da sua geração, algum olhar que descreve e se distancia ( encontro por aqui alguns dos meus poemas de Opus 1, quando lia Prévert, Vian, Sophia, Pessoa, ou do Barco na Cidade, que escrevi em Paris ) esta afinidade que sinto, para mim é um sentimento feliz, de que o poeta, evidentemente nada sabe. Mas eu neste momento em que leio, fico grata. Algo de eterno perdura na palavra, flui no tempo, na sua energia sonora, também ela. JoãoPaulo tem o seu poema da Sagração do Verão, eu tive o da Sagração da Primavera: anos sessenta, Stravinsky, Béjart com o seu bailado no cinema Tivoli e o meu amigo de juventude, seu primeiro bailarino na altura, o Patrick Belda, que morreu a caminho de Bruxelas, onde Béjart se tinha instalado com a sua Companhia, numa noite tão trágica que chorei, ao saber, de joelhos no chão. Quando um poeta de agora me traz de volta o meu próprio passado, fico-lhe grata:a poesia vive. É que, como ele escreve no fim da orgia "sagrada" está-se "perto do fim de qualquer coisa / que passou, e ninguém soube, e houve festa".
As lágrimas fazem parte da festa...o lamento, como a evocação, inscritos na partitura.Não demoro muito mais, há que deixar espaço ao leitor, para que folheie e descubra por si próprio, mais momentos, reflexões em que não falta um Descartes, nem um Jorge de Sena, olhando para um Van Gogh...o real está presente, no grande imaginário até mesmo por vezes musical.
Escolho as Tâmaras do título:
São tâmaras vinda de Israel: "o sabor leva-me / divago, mastigo".
Entretanto,
olho a colina da Graça, logo abaixo do céu
e vêm-me umas imagens de ermitas a fugir para o deserto,
campeões do ascetismo,alimentados só a tâmaras.
....
Campeões do ascetismo, o tanas,
isto é uma refeição completa, fruta altamente nutritiva,
e requintado acepipe, seus gulosos,
assim, também eu.
....
Esta facilidade de regressar à razão, à informação curial, não menos saborosa no humor que interrompe algum misticismo (que se calhar com o esplendor da colina da Graça não faria sentido) - é também uma das irreverentes qualidades que iremos encontrar ao longo das outras páginas. Escrever, ou tocar, para surpreender, faz parte da aventura...E já que no início João Paulo citou o Talmud, digo, como se diz na Bíblia:
" Que o Justo floresça, como a Palmeira..."
Wednesday, January 18, 2017
Poesia e patafísica de hoje...
Ao acabar de ler um conjunto de poemas de um poeta desta nova geração (que me confiou o seu ms. original) ocorreu-me logo um nome: Ambrose Bierce, cujos contos eu tinha, há muitos anos, comprado em França na tradução de Jacques Papy: Contes Noirs.
De Ambrose Bierce basta hoje em dia fazer um google e ficamos a saber tudo: do jornalismo à escrita de ficção, a sua obra, de sátira ou mais subtil humor negro, por vezes equiparada aos contos de terror de Edgar Allan Poe, marcou os tempos.
Em França, nos anos cinquenta-sessenta, lia-se (descobria-se) Boris Vian, Prévert, os exercícios surrealistas, os cadavres-exquis, os autores do célebre OULIPO (quem sabe hoje quem eram, estes poetas e cientistas que se compraziam na reversão e invenção de regras? )- enfim toda uma produção em que o humor era rei, a crítica e o absurdo punham a nú a sociedade da época (aqui entraria Ionesco).
Tenho ainda algures, perdido nos meus papéis, um exemplar de um dos documentos que teorizava a doutrina dos Pataphysiciens...
Entre escritores e sábios de origens várias, o que se propõe não é muito diferente do que propunha André Breton, nos escritos surrealistas: ir para além de... rompendo normas (de doutrina política, social, cultural, artística) atingir algum outro objectivo, que fosse pertinente para a intervenção de cada um, e de todos, no seu conjunto. Tinham uma revista (de novo, vale a pena ir ver ao google) que durou desde 1950 a 1957. Nela foram escrevendo, para puro gáudio, os maiores daqueles anos, e a sua influência perdurou por uns anos. Era o imaginário à solta, mesmo na produção de pseudo-ensaios de humor sem peias, que não vou citar aqui, mas que permitiam rir à gargalhada sem perder a capacidade, verdadeira, de nos fazer pensar.
Ocorrem-me estas reflexões porque encontro na produção poética de hoje, em alguns casos que me chegaram às mãos, uma mesma capacidade de reinventar situações, vocabulário poético, estruturas que não estruturam, deixam espaços abertos.
Mas falta a capacidade de rir, ou fazer rir, ou ao menos sorrir. Tudo o que não se quer dito, de forma convencional, torna-se convencional, de tão sério.
É bem verdade que a forma mais subtil, a mais difícil, por exigir muita cultura suportando muita inteligência ( Oscar Wilde poderia estar comigo, nesta conclusão) é a forma humorística de expressão. Qualquer um não pode ser o Ricardo Araújo Pereira, como outrora (já o coloco nas páginas da História) não podia ser o Hermann José.
Mas voltando à escrita e aos pataphysiciens: são tantos os jovens de hoje, criativos e originais no que propõem: por que razão, atávica não são capazes de rir? Almada Negreiros ria, e nem por isso foi menos futurista, pelo contrário.
Num dos números dos cadernos de patafísica (n.19) Ionesco escreve: L'Avenir est dans les oeufs. O futuro está nos ovos.
Neste mesmo número colaboram Boris Vian, Raymond Queneau, e há divertimentos como o da escrita em conjunto de Patholorimes, etc, etc. Muito mais, até ao fim - tudo tem um fim, das publicações, já em 1957, como disse, e de continuações sob a forma de volumes de homenagem, como o de Boris Vian, ou sob a forma de revista, até ao fim dos anos sessenta. Há números à venda na amazon, para curiosos, coleccionadores.
E agora devolvo a quem me fez lembrar todo um passado literário - (convivi, imaginem, quando jovem, em Paris, com um ou outro destes génios do humor-livre) a alegria que ele me fez redescobrir:
foi HUGO MEZENA, com o seu Alfabetário, que espero ver publicado em breve. São micro-narrativas, de A a Z, percorrendo o alfabeto da primeira à última letra, em situações imprevistas, que deixam em aberto, para o leitor que as lê, a hipótese de algum desfecho que possa , de tão absurdo, contribuir ainda mais para o tom já de si irónico quanto baste.
Uma ou outra vez, como por exemplo quando define o Intelectual H como "gordo e reconhecido na praça pública" sinto que o adjectivo "gordo", a menos que ele tenha, no momento de escrever, alguém especial em mente (sim, também conheci alguns gordos, muito reconhecidos...) não faz falta, para a descrição que se lhe segue. Definir como gordo limita a dimensão da crítica que pretende. E toda a crítica humorística deve ser universal, e transversal a gordos e a magros (que os há muitos) para ser mais pertinente. Mas é só um detalhe, não retira qualidade à prosa escorreita, pela qual vamos deslizando, com agrado.
Ter uma prosa escorreita é uma grande qualidade, quando se verifica hoje em dia uma abundância de elaborações confusas, trapalhonas, barrocas de tanto enfeite, tanto em políticos como em comentadores e escritores que não conseguem desfiar a meada de um único pensamento sem se enrodilharem nele, a ponto de não sabermos se ali existe mesmo pensamento!
Este ALFABETÁRIO, contido no alfabeto que é o nosso, ultrapassa a ordenação das letras, e faz de cada micro-narrativa uma narrativa maior: de substância condensada, como nos HAIKAI, conduz-nos a outras paragens, paisagens de um imaginário muito mais alargado...
De Ambrose Bierce basta hoje em dia fazer um google e ficamos a saber tudo: do jornalismo à escrita de ficção, a sua obra, de sátira ou mais subtil humor negro, por vezes equiparada aos contos de terror de Edgar Allan Poe, marcou os tempos.
Em França, nos anos cinquenta-sessenta, lia-se (descobria-se) Boris Vian, Prévert, os exercícios surrealistas, os cadavres-exquis, os autores do célebre OULIPO (quem sabe hoje quem eram, estes poetas e cientistas que se compraziam na reversão e invenção de regras? )- enfim toda uma produção em que o humor era rei, a crítica e o absurdo punham a nú a sociedade da época (aqui entraria Ionesco).
Tenho ainda algures, perdido nos meus papéis, um exemplar de um dos documentos que teorizava a doutrina dos Pataphysiciens...
Entre escritores e sábios de origens várias, o que se propõe não é muito diferente do que propunha André Breton, nos escritos surrealistas: ir para além de... rompendo normas (de doutrina política, social, cultural, artística) atingir algum outro objectivo, que fosse pertinente para a intervenção de cada um, e de todos, no seu conjunto. Tinham uma revista (de novo, vale a pena ir ver ao google) que durou desde 1950 a 1957. Nela foram escrevendo, para puro gáudio, os maiores daqueles anos, e a sua influência perdurou por uns anos. Era o imaginário à solta, mesmo na produção de pseudo-ensaios de humor sem peias, que não vou citar aqui, mas que permitiam rir à gargalhada sem perder a capacidade, verdadeira, de nos fazer pensar.
Ocorrem-me estas reflexões porque encontro na produção poética de hoje, em alguns casos que me chegaram às mãos, uma mesma capacidade de reinventar situações, vocabulário poético, estruturas que não estruturam, deixam espaços abertos.
Mas falta a capacidade de rir, ou fazer rir, ou ao menos sorrir. Tudo o que não se quer dito, de forma convencional, torna-se convencional, de tão sério.
É bem verdade que a forma mais subtil, a mais difícil, por exigir muita cultura suportando muita inteligência ( Oscar Wilde poderia estar comigo, nesta conclusão) é a forma humorística de expressão. Qualquer um não pode ser o Ricardo Araújo Pereira, como outrora (já o coloco nas páginas da História) não podia ser o Hermann José.
Mas voltando à escrita e aos pataphysiciens: são tantos os jovens de hoje, criativos e originais no que propõem: por que razão, atávica não são capazes de rir? Almada Negreiros ria, e nem por isso foi menos futurista, pelo contrário.
Num dos números dos cadernos de patafísica (n.19) Ionesco escreve: L'Avenir est dans les oeufs. O futuro está nos ovos.
Neste mesmo número colaboram Boris Vian, Raymond Queneau, e há divertimentos como o da escrita em conjunto de Patholorimes, etc, etc. Muito mais, até ao fim - tudo tem um fim, das publicações, já em 1957, como disse, e de continuações sob a forma de volumes de homenagem, como o de Boris Vian, ou sob a forma de revista, até ao fim dos anos sessenta. Há números à venda na amazon, para curiosos, coleccionadores.
E agora devolvo a quem me fez lembrar todo um passado literário - (convivi, imaginem, quando jovem, em Paris, com um ou outro destes génios do humor-livre) a alegria que ele me fez redescobrir:
foi HUGO MEZENA, com o seu Alfabetário, que espero ver publicado em breve. São micro-narrativas, de A a Z, percorrendo o alfabeto da primeira à última letra, em situações imprevistas, que deixam em aberto, para o leitor que as lê, a hipótese de algum desfecho que possa , de tão absurdo, contribuir ainda mais para o tom já de si irónico quanto baste.
Uma ou outra vez, como por exemplo quando define o Intelectual H como "gordo e reconhecido na praça pública" sinto que o adjectivo "gordo", a menos que ele tenha, no momento de escrever, alguém especial em mente (sim, também conheci alguns gordos, muito reconhecidos...) não faz falta, para a descrição que se lhe segue. Definir como gordo limita a dimensão da crítica que pretende. E toda a crítica humorística deve ser universal, e transversal a gordos e a magros (que os há muitos) para ser mais pertinente. Mas é só um detalhe, não retira qualidade à prosa escorreita, pela qual vamos deslizando, com agrado.
Ter uma prosa escorreita é uma grande qualidade, quando se verifica hoje em dia uma abundância de elaborações confusas, trapalhonas, barrocas de tanto enfeite, tanto em políticos como em comentadores e escritores que não conseguem desfiar a meada de um único pensamento sem se enrodilharem nele, a ponto de não sabermos se ali existe mesmo pensamento!
Este ALFABETÁRIO, contido no alfabeto que é o nosso, ultrapassa a ordenação das letras, e faz de cada micro-narrativa uma narrativa maior: de substância condensada, como nos HAIKAI, conduz-nos a outras paragens, paisagens de um imaginário muito mais alargado...
Friday, January 06, 2017
Ler os Clássicos pela mão de Fernanda Lapa
Fernanda Lapa, fundadora e encenadora da Escola de Mulheres, no Clube Estefânia, abre o ano 2017 no seu palco habitual, mas transformado para a representação de As Fúrias (ou de como o Pai venceu a Mãe) a partir de As Euménides, de Ésquilo.
Uma encenação despojada, acção decorrendo entre o palco ao fundo da sala (a esfera dos deuses, Apolo e Atena) e o centro da sala propriamente dito, preparado para as Fúrias ( as Erínias) com os lugares do público distribuídos à roda.
O gosto pelos clássicos surge de há anos, com As Bacantes, de Eurípides, e nunca se perdeu pela dimensão que Fernanda encontra na universalidade e actualidade dos temas.
Se em As Bacantes se opunham dois modelos civilizacionais, o da Razão, ou da Racionalidade grega na cidade ordenada, e o da memória de um culto primitivo, fundador, da natureza-mãe pela intervenção de Diónisos, agora nesta produção, o grande tema é o da justiça: podem os deuses perdoar o crime do matricídio, cometido por Orestes e deixá-lo sem castigo, fazendo dele não um exemplo (pelo castigo) mas um modelo de herói a quem o crime (ordenado por Apolo) sendo vingança pelo outro crime de Clitmenestra (que mata Agamémnon no seu banho) tem de ser perdoado?
Surge Atena, a deusa da Justiça, a quem são apresentados argumentos (uma Grécia democrática, antiga, sublinhe-se a ironia de Fernanda) a favor e contra o perdão do crime. Subtil, e ainda mais irónica é a ideia da encenadora: distribui pelo público dois cartões, um azul e outro vermelho-rosa: na altura de se fazer uma votação (viva a Democracia) as Erínias colocam no chão, diante das filas de cadeiras, dois enormes vasos de latão, as urnas para os votos, onde cada um irá depositar o seu voto, para contagem final: o cartão azul absolve, o rosado condena. Os votos serão contados.
Quando as Erínias viram as urnas ao contrário, reparei que embora do lado da nossa fila houvesse maioria de condenações, havia, ainda assim alguns perdões azuis, para o crime de matricídio (na Grécia antiga o mais execrado de todos). O mesmo do lado oposto das filas. De qualquer modo a decisão estava tomada , não caberia ao voto democrático...Apolo e Atena absolvem Orestes do seu crime, as Erínias, estranhas figuras nascidas das entranhas do mundo subterrâneo das pulsões primitivas mais selvagens, serão finalmente domadas pelo poder de uma justiça masculina, que abastardou o Feminino Eterno, pela mão de Atena. Deusa que ao dizer que não nasceu de ventre feminino, mas da cabeça de Zeus-pai, não tem lugar, no seu posto, para qualquer emoção que a leve a condenar Orestes pelo seu matricídio. Justiça que não é cega, mas fria (a cabeça, não o coração...).
Além de nos fazer pensar num tema que aprofunda, o espectáculo merece ainda ser louvado pela capacidade que tem a encenadora de fazer muito com pouco: o despojamento leva a que reinvente o espaço, as luzes, os figurinos e as máscaras por trás das quais o discurso é vigoroso, articulado, enquanto uns corpos se arrastam na impotência da revolta e da fúria, e outros, na arrogância vencedora, esboçam os gestos mais cautelosos e perfeitos.
Perfeitos a concepção da encenadora (com o artifício das cadeiras de rodas, libertação violenta de início, humilhação fatal no fim) e o trabalho dos actores.
Imperfeita a Justiça que governa o mundo em que vivemos...outrora como agora.
Agradeçamos o gesto final do copo de tinto oferecido, saudação a Diónisos-Baco, feita por nós - o público - com todos eles, os criadores, como quem diz: esperem, estamos aqui, vamos voltar de certeza...
Agradeçamos o gesto final do copo de tinto oferecido, saudação a Diónisos-Baco, feita por nós - o público - com todos eles, os criadores, como quem diz: esperem, estamos aqui, vamos voltar de certeza...
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