Maria Teresa Horta, Anunciações, um romance
Estando eu entre Bíblias, lendo uns Evangelhos e outros, na tradução de Frederico Lourenço, eis que recebo o último livro de poemas de Maria Teresa Horta, Anunciações, um romance.
É um romance feito de poemas, como diríamos de romanza, canções, poemas cantados ou para cantar e encantar.
Na verdade este livro ocupa-se da Vida de Maria, e da sua surpreendente relação de enfrentamento com o Anjo Gabriel.
Enfrentamento, confrontamento, aceitação? Os poemas, de ritmo contado, embalam-nos primeiro, depois deixam a reflexão.
Não se aborda um Mistério como o da Virgem Maria e da sua aceitação da Nova que o Anjo lhe traz sem tomar cautela. Já pelos poemas de Rilke sabíamos que ali se abria facilmente um precipício, o do abismo do corpo, o do abismo da alma.
Porque na mensagem do Anjo corpo e alma se fundem, e é o que acontecerá a Maria, a jovem desprevenida, a Virgem impreparada para tão grande missão de entrega e comunhão.
Teresa Horta conhece a tradição da simbologia de Maria, e do Anjo da Anunciação. Não deseja evocar por completo a tradição, embora o faça às vezes, pois é impossível fugir a uma realidade histórica, religiosa e mítica ( a da mulher que foi mãe e que enquanto mãe de Jesus ascende aos céus, também ela ficando sentada junto ao Pai...). Fascinante, para Teresa Horta, é o mistério que a envolve, desde que o Anjo lhe aparece e lhe fala. Tradição é raiz, mas meditação é liberdade de entrega.
Aqui a autora deixa de parte o mais que se possa avançar, pelos relatos canónicos, e fixa a sua meditação no mágico encontro da Mulher com o Anjo. Na súbita aparição, no mútuo encantamento. Teresa Horta ( o que nela seria já de esperar, devido à fisicalidade de tudo o que escreve) corporiza o mistério, não o quer sublimar. Ou melhor, sublima-o, precisamente porque o materializa.
Humaniza o Encontro e a Revelação. Impõe uma narrativa poética de romance, daí o subtítulo, tão bem achado. É o romance que estrutura os poemas, o romance que se desenha no encontro e leva a uma paixão que bem podia ter sido real.
Há algo aqui, na subtileza de um ou outro detalhe, que nos remete para uma obra anterior, Da Dama e Da Licorna.
O afago deste Anjo (insubmisso, como se depreende, pela releitura de Teresa) é puro, como o da Licorna que se reclina no colo da sedutora Dama?
E Maria, nunca chamada de Virgem pela autora, será ela o modelo daquele ícone medieval tão belo?Nas tapeçarias de Cluny a dama é um emblema alquímico, de sabedoria e pureza, perante as quais a licorna se inclina, domada e com devoção.
Já neste poemas da Anunciação a Maria o que se pretende é retratar um mútuo desejo de aproximação, um deslumbramento que envolverá, ainda que sem ser claramente assumido, Mulher e Anjo: o Anjo que há na Mulher e a Mulher que há no Anjo.
Um só, como se voltassem a poder estar unidos pelo Verbo da Criação, no paraíso de outrora. Por aí não admira que Maria venha a ser, na tradição, a companheira do Deus primeiro e a mãe do seu Filho. O que para os alquimistas ( e alguns místicos teólogos) obriga a um primeiro esforço: o de entender, ou explicar, como pode ela ser mãe de um filho que sendo deus é ele mesmo seu pai e criador?
Mas descubramos Maria pelo olhar de Teresa e continuemos um pouco pelo " romance" oferecido:
MARIA
Debruçada em si mesma
no início do seu dia
Maria estava tão longe
que em si mesma se perdia
Cabelos de côr sombria
o olhar arrebatado
onde o azul tomava
o tumulto do cobalto
Inquieta e arredia
de estranheza sem saudade
de si mesma nada sabe
(p.19)
ÉS POETA?
Chegas com a aura
de um anjo
E és poeta?
Asas de perdimento
olhar de água
e tudo à tua volta
se inquieta
(p.52)
A linguagem é propositadamente arcaizante, por vezes, neste como noutros poemas, recordando que de uma romanza se trata, e não tanto de um verdadeiro romance.
Tudo canta, tudo por aqui se embala, num leve sopro de asas, num leve esfumar de espanto.
É assim a poesia de Teresa, e encontramos aqui a coerência de sempre, do seu ritmo. Um respirar tão natural e físico como o do seu próprio corpo, sublimado. O título recorda que estamos diante da palavra poética que é, em si mesma, a inesperada presença de um Anjo.
Em OLHEIRO DO SENHOR (p.54-55) surge um anjo vigilante, Uriel, apontando-se já no verso algum pecado iminente. Mas não seria preciso, pois todo o livro levanta essa suspeita de amor, à medida que o verso corre, do sagrado para o profano.
Em EMISSÁRIO OU REFLEXO (p.72) e em ESPELHO(p.73), coloca Teresa, pela boca de Maria , criatura perturbada quanto mais abençoada, o problema do Ser, na íntima aparição do Anjo.
Afinal o que é? Como se diz em cada último verso, de cada estrofe: reflexo? excesso? reverso?
Assim, devagarinho, a autora desconstruirá o mito: o mito da virgindade e da pureza. O "abismo perverso" a que alude no poema seguinte, o do "nada absoluto/onde a luz /é o excesso" já faz descer a sombra de um corpo material, na interrogação de amar e ser amado. Não fala Teresa de um corpo todo ele de energia subtil, mas de um corpo onde se esconde, mal, a violência do desejo.
PRESSENTIMENTO (p.79) já é tão só confirmação do que foi dizendo atrás: pode Maria pecar contra o Senhor seu Deus?(p.78).
Voltamos ao "perdimento" arcaizante, porque de arcaico mito se trata, ou de arcaico e desde sempre existente, latente, sentimento:
Que pressentimento
é este
de queda e de vulcão?
Que ambíguo perdimento
devastado
entre amante e amado?
Entre vida e sagrado?
Não posso deixar de citar mais um dos poemas em que a entrega é dita, num claro dizer de poesia "imperdoada" pois desflora um espaço que era segredo, antes mesmo de ser sagrado:
ELEGIA
Sempre te esfumavas
nos meus braços
mais bruma, mais ávido
mais lívido
mais pálido
meu brevíssimo amor
imperdoado
(p.260)
O livro está dividido em 14 Estações, cada qual um caminho, e em que a última já contém o destino de mãe, que será também o de Maria. Amada, Mulher e Mãe - e de poema em poema a Condição Feminina, pois que é essa mesma que Teresa interpela, desde que pela primeira vez a li, nos seus poemas, na década de sessenta.
Fecha-se o ciclo com um POST-SCRIPTUM, uma CARTA A MARIA que resume de algum modo o que não coube na poesia, embora verso a verso tudo ficasse dito: que Maria não aceitou a "vontade do Senhor".
Teresa marca distância, ao contrário de Rilke, que em tudo aspira à proximidade, e cada vez maior, em fusão plena, seja do mistério de Maria, seja do mistério da rosa (como em Dante) com que nos deixa nos últimos poemas.
Cabem agora ao leitor outras interpretações, que as haverá, e certamente muitas.
Este livro merece...
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