Monday, October 24, 2016

Cristina Rodo



Em dia que parece meio chuvoso, uma chuvada de alegria e felicidade risonha.
De Cristina Rodo, o seu livro FELICIDADE não é para quem pode, É PARA QUEM QUER!
1
Lançado agora, tem uma capa quase marítima, um lettering que também foi desenhado pela sua mão, tamanho ideal para pegarmos nele e abrirmos ao acaso, lendo as matérias sobre as quais ela filosofa, como se faz num blogue, em prosa curta e enxuta - a maior qualidade que se pode desejar nos nossos dias, de tanto palavreado fútil, que servirá para vender, mas certamente não para pensar, ou ajudar a pensar. Cristina, como se vê logo na foto da badana em que se apresenta, informalmente, tem o à vontade de quem já andou um pouco pelos caminhos da vida, com o sorriso e olhar malicioso de quem não faz tenção de parar, e ainda bem: espero que sejam os caminhos da escrita, e da felicidade que um livro dá a quem o QUIS escrever e editar.
Recupero uma citação de Walt Whitman, que Cristina colocou em epígrafe antes do texto de CARPE DIEM:
" Felicidade, não noutro lugar mas neste lugar...
não noutra hora mas a esta hora."
Porque ela tem um blogue, aqui deixo a indicação:
sopadeideias-cr.blogspot.pt
Read and be happy!
Leiam para viver melhor...
2
Ainda no livro da Cristina Rodo, aqui à minha frente.
Não se enganem com a palavra felicidade, só porque estará na moda: quem é que não deseja ser feliz? Mas quem saberá ao certo o que é a felicidade, ou o sentimento de ser feliz?
Mais uma comprinha foleira? Não, embora eu concorde que uma comprinha ainda que foleira pode alegrar a alma, e alegra, quantas vezes... Como em tudo, trata-se-se da pessoa e da sua circunstância. Daí aquela velha piada de que o dinheiro não dá felicidade, mas também não tira...ajuda....
Ou não.
Cristina, deste ponto de vista, dá ao seu leitor um exemplo feliz: recolhe o que sentiu, o que pensou, o que escreveu, e sem mais considerações que não esta, avisa que falará de si - que é o que fazemos todos nós, os que escrevemos. Escrevemos antes de tudo para nós próprios, para nos entendermos, e quem sabe se, a partir do que escrevemos, alguém que nos leia venha a entender-se também.
E então terá sido útil o nosso esforço de divulgar. Porque é um esforço, entregar-se aos outros, assim abertamente.Vou concluir, porque vou continuar a ler.
Há aqui uma lição: chegados ao meio da vida (que já ultrapassei há muito) de que modo vamos continuar? Eu que já passei por muitas fases, de grandes, pequenas e médias alegrias, de pequenos e grandes e médios sofrimentos, entendo o que Cristina nos diz, na sua prosa directa e despojada (como eu gosto).
A felicidade, isto é, viver e saber-se que se está vivo e a vida segue em frente, não é uma questão de poder, é uma questão de querer. Sentir a força interior, que todos temos, e fazer em cada momento a escolha do momento. Viver o presente. Haverá melhor sentido para uma vida que se quer bem vivida ?
Para então, finalmente, ser feliz, por poder e querer.
3
Num livro de momentos soltos, bom é também reencontrar alguma coisa do nosso próprio passado, no passado do outro. Por aí se estabelece um dos laços que importa: saber que afinal somos todos de uma mesma espécie, esta, das criaturas humanas, crescendo em perplexidades, medos, certezas ou interrogações.
Quando éramos pequenas eu e a minha prima Eduarda em Tavira, em casa da minha avó Rosa - um casarão enorme, era na cozinha que nos sentíamos melhor protegidas - só íamos para a cama, bem longe da sala dos "grandes" quase à força. A cozinheira era quem nos levava pela mão. Ao atravessar um corredor, também imenso, sussurrava: hoje é lua cheia, e anda um espírito à solta, as meninas não saiam da cama. É um Fleco, cuidado. E pode haver outros... Eu tentava sacudir os arrepios de medo e já muito didáctica explicava : são reflexos, são reflexos da lua nos vidros, não há flecos...mas de verdade metia-me na cama, olhos bem fechados, não fosse aparecer alguma coisa estranha e tivesse de chamar pela Eduarda, na cama ao lado. Eu acredito no mistério, logo a começar pelo próprio mistério da existência...Não ando eu por aqui? Não andamos nós todos?
A sensação do mistério habita as memórias da infância, e Cristina, com humor, evoca num dos textos uma dessas: a do vaso voador que ora caía sem se partir, ora mudava de lugar, durante a noite, como se algum elfo andasse por ali a pregar partidas à família. Mas de verdade era ela que reparava e dava mais atenção. Precisarei de lembrar que toda a escrita nasce da capacidade de dar atenção?
No meio-dia da vida o querer impõe um olhar tão íntimo e ao mesmo tempo tão despojado, memória de balanço, de permanente recomeço...... só simples numa primeira abordagem.
4
Ocorre-me de repente um dos meus autores favoritos: Rainer Maria Rilke, Os Cadernos de Malte Laurids Brigge.
Narra a sua estadia em Paris, secretariando o desagradável Rodin, escultor genial (mas o artista é uma coisa e o homem pode bem ser outra), uma cidade que descreve com as suas ruas de miséria, rostos envelhecidos que se desfazem perante o seu olhar, cidade em que há hospitais mas não há hospitalidade, e ao longo das páginas vemos que vai cruzando, na sua narrativa, as suas memórias de infância, e entre elas o mistério e o espanto do que na casa do Coronel Brigge acontecia.
Este livro, editado em 1910, escrito ao longo de 1908, é, junto com outros, por exemplo os de Joyce ou de Virginia Woolf, a marca fundadora do chamado Modernismo na Europa. A escrita, depois deles, nunca mais voltou a ser a mesma.
Por que razão vou buscar a minha memória de Rilke? Porque nesta obra aparentemente de leitura directa, tudo se cruza, na memória e nos fios que ligam passado (o da infância e juventude, na casa do Coronel) e o presente. Paris é o presente, sofrido, excepto quando  visita no Museu de Cluny as tapeçarias da Dama da Licorna, e se detém perante tanto mistério e tanta beleza contida. Passo adiante as reflexões sobre o que é o amor, a propósito das célebres Cartas da Portuguesa, que ainda hoje se discute se serão mesmo dela ou do cavaleiro francês que terá amado e as terá escrito.  Mas do passado lhe virá a força, que só a memória concede, para ajudar a viver.
Cito Rilke, pelo puro prazer de repetir:
"Aprendo a ver. Não sei porquê, tudo penetra em mim mais profundamente, e não permanece onde, outrora, tudo acabava. Tenho um interior que ignorava. É para aí que tudo vai, agora. Não sei o que lá acontece".
Pois bem, aprendamos a lição, dada tão ao de leve, pela Cristina Rodo: todos temos um interior que ignoramos. É para aí que tudo vai e tudo pode acontecer, quando queremos.





Saturday, October 22, 2016

Maria Teresa Horta, Anunciações

Maria Teresa Horta, Anunciações, um romance

Estando eu entre Bíblias, lendo uns Evangelhos e outros, na tradução de Frederico Lourenço, eis que recebo o último livro de poemas de Maria Teresa Horta, Anunciações, um romance.
É um romance feito de poemas, como diríamos de romanza, canções, poemas cantados ou para cantar e encantar.
Na verdade este livro ocupa-se da Vida de Maria, e da sua surpreendente relação de enfrentamento com o Anjo Gabriel.
Enfrentamento, confrontamento, aceitação? Os poemas, de ritmo contado, embalam-nos primeiro, depois deixam a reflexão.
Não se aborda um Mistério como o da Virgem Maria e da sua aceitação da Nova que o Anjo lhe traz sem tomar cautela. Já pelos poemas de Rilke sabíamos que ali se abria facilmente um precipício, o do abismo do corpo, o do abismo da alma.
Porque na mensagem do Anjo corpo e alma se fundem, e é o que acontecerá a Maria, a jovem desprevenida, a Virgem impreparada para tão grande missão de entrega e comunhão.
Teresa Horta conhece a tradição da simbologia de Maria, e do Anjo da Anunciação. Não deseja evocar por completo a tradição, embora o faça às vezes, pois é impossível fugir a uma realidade histórica, religiosa e mítica ( a da mulher que foi mãe e que enquanto mãe de Jesus ascende aos céus, também ela ficando sentada junto ao Pai...). Fascinante, para Teresa Horta, é o mistério que a envolve, desde que o Anjo lhe aparece e lhe fala. Tradição é raiz, mas meditação é liberdade de entrega.
Aqui a autora deixa de parte o mais que se possa avançar, pelos relatos canónicos, e fixa a sua meditação no mágico encontro da Mulher com o Anjo. Na súbita aparição, no mútuo encantamento. Teresa Horta ( o que nela seria já de esperar, devido à fisicalidade de tudo o que escreve) corporiza o mistério, não o quer sublimar. Ou melhor, sublima-o, precisamente porque o materializa.
Humaniza o Encontro e a Revelação. Impõe uma narrativa poética de romance, daí o subtítulo, tão bem achado. É o romance que estrutura os poemas, o romance que se desenha no encontro e leva a uma paixão que bem podia ter sido real.
Há algo aqui, na subtileza de um ou outro detalhe, que nos remete para uma obra anterior, Da Dama e Da Licorna.
 O afago deste Anjo (insubmisso, como se depreende, pela releitura de Teresa) é puro, como o da Licorna que se reclina no colo da sedutora Dama?
 E Maria, nunca chamada de Virgem pela autora, será ela o modelo daquele ícone medieval tão belo?Nas tapeçarias de Cluny a dama é um emblema alquímico, de sabedoria e pureza, perante as quais a licorna se inclina, domada e com devoção.
Já neste poemas da Anunciação a Maria o que se pretende é retratar um mútuo desejo de aproximação, um deslumbramento que envolverá, ainda que sem ser claramente assumido, Mulher e Anjo: o Anjo que há na Mulher e a Mulher que há no Anjo.
Um só, como se voltassem a poder estar unidos pelo Verbo da Criação, no paraíso de outrora. Por aí não admira que Maria venha a ser, na tradição, a companheira do Deus primeiro e a mãe do seu Filho. O que para os alquimistas ( e alguns místicos teólogos) obriga a um primeiro esforço: o de entender, ou explicar, como pode ela ser mãe de um filho que sendo deus é ele mesmo seu pai e criador?
Mas descubramos Maria pelo olhar de Teresa e continuemos um pouco pelo " romance" oferecido:
MARIA
Debruçada em si mesma
no início do seu dia
Maria estava tão longe

que em si mesma se perdia

Cabelos de côr sombria
o olhar arrebatado
onde o azul tomava

o tumulto do cobalto

Inquieta e arredia
de estranheza sem saudade
de si mesma nada sabe
(p.19)

ÉS POETA?
Chegas com a aura
de um anjo
E és poeta?

Asas de perdimento
olhar de água

e tudo à tua volta
se inquieta
(p.52)

A linguagem é propositadamente arcaizante, por vezes, neste como noutros poemas, recordando que de uma romanza se trata, e não tanto de um verdadeiro romance.
Tudo canta, tudo por aqui se embala, num leve sopro de asas, num leve esfumar de espanto.
É assim a poesia de Teresa, e encontramos aqui a coerência de sempre, do seu ritmo. Um respirar tão natural e físico como o do seu próprio corpo, sublimado. O título recorda que estamos diante da palavra poética que é, em si mesma, a inesperada presença de um Anjo.
Em OLHEIRO DO SENHOR (p.54-55) surge um anjo vigilante, Uriel, apontando-se já no verso algum pecado iminente. Mas não seria preciso, pois todo o livro levanta essa suspeita de amor, à medida que o verso corre, do sagrado para o profano.
Em EMISSÁRIO OU REFLEXO (p.72) e em ESPELHO(p.73), coloca Teresa, pela boca de Maria , criatura  perturbada quanto mais abençoada, o problema do Ser, na íntima aparição do Anjo.
Afinal o que é? Como se diz em cada último verso, de cada estrofe: reflexo? excesso? reverso?
Assim, devagarinho, a autora desconstruirá o mito: o mito da virgindade e da pureza. O "abismo perverso" a que alude no poema seguinte, o do "nada absoluto/onde a luz /é o excesso" já faz descer a sombra de um corpo material, na interrogação de amar e ser amado. Não fala Teresa de um corpo todo ele de energia subtil, mas de um corpo onde se esconde, mal, a violência do desejo.
PRESSENTIMENTO (p.79) já é tão só confirmação do que foi dizendo atrás: pode Maria pecar contra o Senhor seu Deus?(p.78).
Voltamos ao "perdimento" arcaizante, porque de arcaico mito se trata, ou de arcaico e desde sempre existente, latente, sentimento:
Que pressentimento
é este
de queda e de vulcão?

Que ambíguo perdimento
devastado
entre amante e amado?

Entre vida e sagrado?

Não posso deixar de citar mais um dos poemas em que a entrega é dita, num claro dizer de poesia "imperdoada" pois desflora um espaço que era segredo, antes mesmo de ser sagrado:
ELEGIA
Sempre te esfumavas
nos meus braços

mais bruma, mais ávido
mais lívido
mais pálido

meu brevíssimo amor
imperdoado
(p.260)

O livro está dividido em 14 Estações, cada qual um caminho, e em que a última já contém o destino de mãe, que será também o de Maria. Amada, Mulher e Mãe - e de poema em poema a Condição Feminina, pois que é essa mesma que Teresa interpela, desde que pela primeira vez a li, nos seus poemas, na década de sessenta.
Fecha-se o ciclo com um POST-SCRIPTUM, uma CARTA A MARIA que resume de algum modo o que não coube na poesia, embora verso a verso tudo ficasse dito: que Maria não aceitou a "vontade do Senhor".
Teresa marca distância, ao contrário de Rilke, que em tudo aspira à proximidade, e cada vez maior, em fusão plena, seja do mistério de Maria, seja do mistério da rosa (como em Dante) com que nos deixa nos últimos poemas.
Cabem agora ao leitor outras interpretações, que as haverá, e certamente muitas.
Este livro merece...









Saturday, October 15, 2016

Lendo a Bíblia, na tradução de Frederico Lourenço

Frederico Lourenço, num gesto que considero de grande amor à sua causa ( o estudo e a divulgação do pensamento e da cultura grega, como já fez com Homero e outros autores) publicou agora uma tradução do Novo Testamento a partir dos textos em grego antigo normalmente não considerados nas traduções que existem  da chamada Bíblia de Jerusalém.
Comecei por ler o Evangelho de Marcos, que é o meu preferido pela linguagem directa, sem atavios de embelezamento e em quem  sinto (mas sou de facto apenas uma leitora leiga) uma proximidade com os Evangelhos apócrifos, hoje em dia disponíveis desde que se aprofundaram as investigações a partir da descoberta dos manuscritos do Mar Morto. As edições que possuo são de tradução inglesa (The Nag Hammadi Library in English, 1996) como a que tenho da Bíblia de Jerusalém é de tradução francesa (e já antiga, comprei o volume de bolso que muitas vezes leio, em 1955). Para reafirmar que não tenho a capacidade de ler os textos antigos no original, seja hebraico, aramaico ou grego.
Dos textos gnósticos o meu preferido, por deixar em aberto, na minha opinião, tantas sugestões, entre elas a do papel da mulher, matéria melindrosa, outrora como agora, é o atribuído a Tomás. Já falarei dele adiante.
Mas ficando então pelo Evangelho de Marcos, na tradução de Frederico Lourenço, onde posso ler o que  penso ( o que a torna para mim extremamente aliciante e pedindo perdão por não respeitar o AO que ele seguiu, mas a mim me afronta um pouco) :
"A redacção é tersa, o ritmo é veloz e as frases estão carregadas de dramatismo. Compreensivelmente aproveitado (para não dizer plagiado) por Lucas e Mateus, sobre o Evangelho de Marcos podemos dizer que é dos livros mais arrebatadores que alguma vez foram escritos" (p.159, nota introdutória).
Não sabemos ao certo quem foi Marcos. Terá sido companheiro e tradutor-intérprete de Pedro. E, acrescenta F.L. que, segundo uma tradição da Igreja primitiva (da História Eclesiástica de Eusébio, século IV), Marcos terá registado " tudo o que Pedro lhe contou sobre Jesus com exactidão, ainda que não ordenadamente" (ibid.).
Não entrarei aqui no detalhe linguístico de quem pode ou não ter sido Marcos, mas sigo o que o autor nos diz, depois de colocada a questão, que parece "verosímil que o Evangelho de Marcos tenha sido escrito em Roma, conforme reza a tradição"(p.160).
Lendo então o Evangelho, sem colocar questões de ordem teológica,  histórica, comparatista, apenas com o prazer de uma leitura seguida, o que mais me impressiona é que Marcos entra directamente na descrição do que vai contar, como quem está ali a ver e a reproduzir tal e qual, numa reportagem sem filtro, que se deseja fiel.Dou um exemplo:
" Apareceu João baptizando no deserto e anunciando um baptismo de mudança para libertação dos erros. E saía ao seu encontro toda a região da Judeia e todos os habitantes de Jerusalém. E eram baptizados por ele no rio Jordão, reconhecendo os seus erros."(p.163).
Ou ainda, sem outros comentários sobre a estranheza do facto, o modo como João se apresentava:
" João estava vestido de pelos de camelo e com uma faixa de couro à volta da sua cintura, alimentando-se de gafanhotos e de mel selvagem".
Cabe a nós, leitores, supôr que João era um eremita dos que rezavam e jejuavam no deserto, aguardando a revelação e o momento de se manifestarem com o anúncio da Boa Nova:
" Depois de mim vem o mais forte do que eu, de quem não sou digno de me inclinar para desatar a correia das suas sandálias. Eu baptizei-vos com água, mas ele vos baptizará num espírito santo" (p.164).
Continuando, na mesma linguagem directa de quem narra sem perder o fio, descreve a chegada de Jesus de Nazaré e o seu baptismo por João:
" E aconteceu naqueles dias que veio Jesus de Nazaré na Galileia e foi baptizado por João no rio Jordão. E logo, emergindo da água, viu serem rasgados os céus e o espírito descer sobre ele como uma pomba. E uma voz veio dos céus : Tu és o meu filho amado; em ti eu me agradei."
Já tinha sido uma pomba (que Noé levava na sua arca, quando escapara ao dilúvio, na descrição do Antigo Testamento) a dar  a boa nova de que as águas que cobriam o mundo se estavam a retirar e ele, no alto do monte Ararat, poderia retomar uma vida normal.
A imagem da pomba como emblema da Boa Nova perpetua-se até hoje, nas Festas do Espírito Santo, mas já se encontrava frequentemente nos códices da alquimia medieval, atravessando a Idade-Média e ainda as gravuras do século XVII, por exemplo em Michael Maier, na Atalanta Fugiens, em que a pomba marca o momento da sublimação da Pedra, da matéria negra a transformar .
Estamos perante o maior dos mistérios, este do Espírito de Deus que declara o seu agrado no Filho, mas em nada mais se alonga o Evangelista.
O Espírito atrás referido, e agora sob a forma de uma pomba, desce sobre Jesus, e a voz que vem dos céus, a voz do Supremo Criador, proclama a sua escolha e o seu agrado (como em Génesis 1 tinha feito, a propósito da criação, ao afirmar que era bom tudo o que via e tinha feito). Este é o novo Adão e por ele a Humanidade será redimida do pecado original.
Continuando a ler, poderemos estranhar que o imaginário da magia, o mal no mundo, esteja logo ali tão presente, quando Jesus é "impelido para o deserto"  e fica no deserto quarenta dias a ser tentado por Satanás, embora estivesse a ser servido por Anjos.
Satanás será figura muito presente neste Evangelho, e a intervenção de Jesus contra os seus malefícios uma constante com que se afirmam os seus poderes de Cuidador, de Redentor, de Salvador.
Por todo o lado o chamam, para salvar doentes, curar cegos ou paralíticos, expulsar demónios, como no conhecido episódio em que na Sinagoga um homem com "um espírito impuro" lhe berra, dizendo: ' O que há entre nós e ti, Jesus de Nazaré? Vieste para nos destruir? Sei quem tu és: o santo de Deus.' E Jesus repreendeu-o, dizendo: 'Cala-te e sai desse homem'" (p.164-165).
O espírio impuro, com um grande grito sai do corpo daquele homem.
O interessante é verificar a naturalidade com que se tratam um ao outro, o espírito impuro e Jesus de Nazaré, como velhos conhecidos que já se tivessem defrontado antes (Satanás no deserto, naqueles quarenta dias de tentação, com Jesus servido por Anjos mas incomodado pelo diabo) ou ainda quem sabe se nos primórdios da criação, no Jardim do Éden.
Duas faces de uma mesma moeda, uma a energia actuante do bem, outra a energia insistente do mal, num confronto que dura até aos nossos dias, mas que ali se regista com o seu mistério próprio, de uma nova oportunidade oferecida ao Homem.
Como diz Marcos, Jesus veio "para prègar".
Mas em cada momento o que nos é dado a ver é a capacidade de um Curandeiro, um mágico que enfeitiça quem salva e quem o contempla, de tal modo é permanente a referência à quantidade de demónios que em todo o lado e em toda a gente vai expulsando:
" E curou muitos enfermos com toda a variedade de doenças e expulsou muitos demónios; mas não deixava falar os demónios, porque o conheciam" (p.165)
Conheciam-se...desde o princípio dos tempos, desde as trevas primordiais por onde pairava o Espírito de Deus, onde o nó fundo do mal espreitava e espreitaria sempre...mas também deste modo se dá a entender, indirectamente, que Deus estava em Jesus e Jesus estava nele, e desde sempre.
Marcos não se demora a interrogar-se sobre esta questão do mal.
A sua narrativa, aquilo que tem para contar é diferente. Diz respeito a Jesus, Vida, Morte, Ressureição. E à Boa Nova, que é o perdão dos pecados.
No episódio do possesso de Gerasa de novo encontramos Jesus a ser interpelado por um demónio que lhe coloca a questão:
" 'O que há entre mim e ti, ó Jesus, filho do Deus Altíssimo? Conjuro-te, por Deus, que não me tortures! ' É que Jesus dizia-lhe 'Sai desse homem, espírito impuro! ' E Jesus perguntou-lhe:'Qual é o teu nome? Ele diz-lhe:'O meu nome é Legião, porque somosmuitos.' Havia ali, próximo do monte, uma grande vara de porcos a ser apascentada. Os demónios do homem pedem para que Jesus os envie para esses porcos e Jesus faz-lhes a vontade.
Depois de terem saído do homem e entrado nos porcos, que seriam "cerca de dois mil", a vara despenha-se dum precipício para o mar e afogam-se todos".
Não admira que em muitas regiões e religiões o porco seja ainda hoje considerado um animal impuro e impróprio para ser comido. Nasceu aqui a mácula do animal.
Para além desta incessante luta contra os demónios do mal, Marcos adiante no texto vai referindo os milagres que multiplicam o pão, os peixes, e a suprema visão de Jesus caminhando sobre as águas, visão que lhes confirma que ali estavam perante um Ser Supremo.
Será contudo mais adiante que Pedro reconhece Jesus como o Messias (p.185).
É caminhando para as aldeias de Cesareia com os discípulos que Jesus lhes pergunta "Quem dizem os homens que eu sou? "
E este é o momento fulcral, no Evangelho de Marcos, em que o "Filho da Humanidade" se inscreve na história da criação, do judaísmo ao cristianismo:
"Eles falaram-lhe, dizendo 'João, o Baptista; outros, Elias; e outros, que és um dos profetas'. E ele perguntou-lhes: 'E vós, quem dizeis que eu sou?' Pedro, respondendo, diz-lhe : 'Tu és o Cristo.'
Neste momento, outro de grande Mistério, eu precisaria de me socorrer das obras em que o Cardeal Joseph Ratzinger se debruça sobre esta suprema Revelação da origem divina do Homem Jesus,  "o Filho da Humanidade", que Pedro chama de Cristo.
Revela o seu destino, prestes a ser cumprido:
"...o Filho da Humanidade tem de sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e pelos escribas, tem de ser morto e, após três dias, ressuscitar"(p.186).
Jesus, que Pedro tenta que não se exponha tanto, repreende depois o que será primeiro aquele que o renega, depois Pedra fundadora do novo Templo, a Igreja Cristã, exclamando ( o que não deixa de ser estranho): "Vai-te para trás de mim, Satanás, porque não pensas as coisas de Deus, mas sim as dos humanos".
Na verdade Pedro sentia que corriam perigo, e tenta proteger, com mais discrição, o Jesus, agora Cristo revelado.
O epíteto com que Jesus-Cristo se refere a si próprio é "Filho da Humanidade".
Outra matéria a ponderar,  na incarnação divina em Jesus Cristo é toda a humanidade que é abrangida, pois da eterna Criação se ocupa Deus aqui, para a redimir.
Arrependeu-se a dado momento, outrora, Yahvé-Deus, mas eis que deu ao Homem uma nova oportunidade, neste momento confirmada.
Um versículo que Frederico Lourenço considera ter sido uma interpolação " onde o verme não morre e o fogo não se apaga" , a propósito de se poder ser lançado " à geena", bem como outra afirmação, de "Belo é o sal", - remetem-me para o imaginário alquímico dos primeiros séculos da nossa era (também ele de raiz gnóstica) em que fogo e água desempenham um papel fundamental, sendo que o sal, o sal da vida, é o terceiro elemento que permite a sublimação desejada.
Encontro de repente, neste texto de Marcos, uma memória que pode ter  a sua origem nos antigos alquimistas gregos, que todos se diziam cristãos e servidores de deus, ajudando a que se consumasse a Obra da perfeição da matéria, interrompida em dado momento por uma degradação a que não era alheia a Queda, com o Pecado Original.
São muitas as ilustrações e as gravuras em que o verme alquímico, sob a forma de serpente, ou de dragão, está representado, ora a arder no fogo, elemento primordial, ora a ser imolado pela espada de um adepto.
Não menos importante, nos textos alquímicos é o papel da mulher, para o sucesso da Obra.
E como não será de estranhar também nos Evangelhos é vital o papel da mulher.
Antes de tudo o de Maria, a Virgem, Mãe de Jesus. Deveríamos ler, junto com os Evangelhos, os belos poemas de Rilke dedicados à vida e à morte de Maria.
Pura contemplação.
Marcos refere, a dada altura do percurso de Jesus, já como Cristo e reconhecido como tal, na sua plena dimensão divina, a importância da mulher e do respeito que lhe é devido, tal e qual como ao homem, na relação do casamento. Na tradição judaica o homem podia divorcia-se e voltar a casar com outra, mas a mulher não podia fazê-lo, era privilégio puramente masculino; se  a mulher o fizesse seria considerada adúltera em relação ao seu primeiro marido. Ora Jesus, em Marcos, clarifica a questão, explicando, ou lembrando aos discípulos o que é dito em Génesis 1 sobre a criação do homem e faz da dupla homem/mulher um único ser:
"Devido à dureza do vosso coração é que ele vos escreveu esse preceito (refere-se a Moisés, que o terá escrito); mas, desde o princípio da criação, macho e fêmea os fez. Por isso o homem deixará o seu pai e a sua mãe e será unido à sua mulher e serão os dois uma só carne. De tal forma que já não são dois, mas uma só carne. Portanto, o que Deus uniu não separe o ser humano" (p.191).
Na verdade esta questão da androginia do primeiro homem criado, à imagem e semelhança de Deus, em Génesis 1, levanta a questão da dupla essência do Criador, um Yahvé também ele andrógino, e manifestando-se desse modo, na dupla realidade do masculino e do feminino.
Neste ponto da narrativa de Marcos o importante é estabelecer uma igualdade entre homens e mulheres, não existente à época. Um preceito inovador, revolucionário até, em certa medida.
Voltando à importância que as mulheres adquirem ( a contragosto de alguns discípulos) no re-conhecimento e divulgação da Mensagem de Jesus, será interessante ler o Evangelho apócrifo de Tomás, e no que  é contado sobre a importância de Maria Madalena como iniciadora, enquanto discípula dilecta que Jesus protege.
Também aqui, na linguagem simples e directa de Marcos, se vai directamente ao assunto que para ele se revestiu de maior importância, no caso das mulheres, que são Maria, mãe de Jesus, e Maria Madalena, entre outras citadas que ficam a espreitar o que acontece quando o corpo é retirado da cruz, e a seguir levado por José de Arimateia para o sepulcro que já tinha preparado.
" Maria Madalena e Maria, mãe de José, espreitavam 'para saber' onde Jesus tinha sido sepultado" (p.211).
 Maria Madalena acompanhou Jesus pelos caminhos,  e é ela que levará a Nova da Ressureição aos discípulos, estupefactos.
Mas isso não nos é dito nesta tradução de Frederico Lourenço, que fica suspensa na última folha dos códices de grego antigo de que se ocupou. Este Evangelho de Marcos termina de forma abrupta:
" Entrando elas (as mulheres que também acompanhavam Maria Madalena) no sepulcro, viram um jovem sentado à direita, vestido com uma única branca, e ficaram apavoradas. Ele diz-lhes: Não vos assusteis. É Jesus, o Nazareno, que procurais, o crucificado? Ressuscitou. Não está aqui. Vede o lugar onde o depuseram. Mas ide e dizei aos seus discípulos e a Pedro:'Ele vai à vossa frente a caminho da Galileia; lá o vereis, tal como ele vos disse'.
E elas, saindo, fugiram do sepulcro pois dominava-as um tremor e um êxtase. E nada disseram a ninguém:tinham medo, pois"(p. 216).
 Em nota de rodapé, Frederico Lourenço explica que este final incompleto (em relação aos outros conhecidos) se pode dever a várias causas, pergaminhos perdidos ou destruídos pelo tempo, morte do Evangelista, ou apagamento por não se desejar que houvesse continuação.Não há resposta, para este caso.
Na Bíblia de Jerusalém, existe uma continuação:
16
"Ressuscitado de manhã, no primeiro dia da semana, Jesus apareceu em primeiro lugar a Maria de Magdala, de quem tinha expulsado sete demónios. Esta foi dar a notícia aos que tinham sido seus companheiros e que estavam de luto e em lágrimas. Eles, ao ouvi-la dizer que ele estava vivo e que ela o tinha visto, não acreditaram."
Jesus foi reconhecido finalmente, a custo, como ressuscitado, pelos onze. Censurou-os por isso, e mandou que se espalhassem pelo mundo, a proclamar a Boa Nova, a baptizar, a fazer as curas e milagres a que já tinham assistido. De seguida, depois de lhes ter falado, "o Senhor  Jesus foi arrebatado ao céu e sentou-se à direita de Deus".
Fica assim de acordo com a tradição do que se aprende na catequese, este último episódio da  Ressureição de Jesus, não constante dos antigos mss. gregos da tradução de Frederico Lourenço.
Que haja muito mss. apócrifos, entre eles o Evangelho de Tomás e outro de Maria, faz-nos reflectir sobre o que foram estes primeiros tempos de "mudança de mentalidade", onde o deus primitivo se humaniza em Cristo-Jesus, onde o papel da mulher é sublinhado e se adivinha o que um pensador como Jung dirá, numa dos seus volumes sobre a alquimia espiritual, que o Feminino em Deus está presente no mais antigo imaginário, e se torna actuante no inconsciente colectivo de que ele fez uma apologia convicta.
As notas que acompanham a tradução de Frederico para mim foram preciosas, e agradeço que tenha tido o cuidado de partilhar connosco mais uma fonte da sua erudição cuidada.
Por elas vim a descobrir a Bíblia de Nicholas King, que também já comprei, vou ler, porque descobri o que me fazia falta: que ele também se ocupa dos apócrifos que tenho lido, e os traduz das fontes mais antigas.