DA FAMÍLIA, de Valério Romão, edição recente da abysmo, consegue surpreender-me como Boris Vian, quando o li pela primeira vez. São contos, mas são muito mais do que isso.
Tanto mais que tenho dificuldade em situar esta sua obra, com um pequeno espelho na capa que nos reflecte a nós, seus leitores, e onde ele certamente não precisou de se ver.
Se a nota biográfica não foi inventada - toda a escrita nele é inventada para deleite nosso e dele (estou a ver como se concentra e ao mesmo tempo se diverte, qual surrealista ao modo de um Buñuel ou de um Dali) e nos confronta com uma prosa escorreita, tão escorreita que de novo surpreende porque a transforma por meio de situações inusitadas, ritmos galopantes, rios que vão em associações de vagas que ele aproveita para surfar...
Valério , terá mesmo nascido em 1974? Tão jovem e já tão "lido" revela uma consciência aguda do que diz mas atravessada por um imaginário sub- que evoca Lautrémont, o stream of consciouness, um Ionesco de herança francesa e um Beckett mais recente e à moda, Valério corre no seu caminho, que atravessa com um maravilhoso (por vezes doloroso, ou antes cruel) sentido de humor, raríssimo entre nós.
Esta é uma obra notável, que teremos de ler, quem sabe múltiplas vezes até a decifrar por completo. Tem chave, que ele não diz onde ficou escondidad: Noites de insónia? Fugas a algo de intolerável? Haverá de tudo. Logo pelo título, que sendo da família é dele no centro dela.
Descubro que há uma colaboração sua no VÔO Rasante, antologia de que falei atrás :"Dez Razões Para Aspirar A Ser Gato",p. 185.
A situação é aparentemente simples: uma criança que na festinha da escola terá de ser gato, enquanto outras serão príncipes ou cavaleiros, ou mesmo ovo (adivinhamos que se trata de uma encenação de Alice no País das Maravilhas), e as peripécias que se vão seguir, desde o momento em que ele declara que não, não quer ser gato, até ao final, em que o ser gato faz dele no palco o herói da peça (da vida?). A narrativa é entrecortada de memórias de adulto, mas a mim,na verdade, o que me chamou a atenção foi a recusa de uma criança, a aceitação imposta, e um final que não a reduziu ao nada que ela temia.
E avanço para um episódio familiar: nessa mesma idade das fetinhas escolares, um dos meus sobrinhos chega a casa e diz aos pais (não diz, antes declara) "eu não vou de padeirinho! "
- Que mal tem, é divertido, todos vão de qualquer coisa....
- Já disse, eu não vou de padeirinho.
Sei que não foi de padeirinho e também já nem sei se chegou a ir à festinha que tanto o aborrecia.
Do mesmo modo, esse meu sobrinho, de quem gosto muito, pela clareza com que diz o que escolhe ( e nem isso hoje é fácil, muito ao contrário do que se pense) chegou um dia a casa, já no fim do liceu, e disse (declarou) quero ser paraquedista, das forças especiais.
E assim foi. Esperava-se que fizesse um dos chamados bons cursos, direito, engenharia, medicina - cursos que havia na família, avôs, pais e tios, mas não.
Se ao outro, o nosso Valério, o Gato de Alice (que era na realidade um sedutor, como todos os gatos, mas ainda por cima filosofante) devolveu a consciência de ser, ao meu sobrinhito que na altura nada queria saber de festas com padeirinhos foi a escolha de uma profissão exterior ao que seria habitual na família que fez dele o homem, o pai de família que hoje é.
(Só para memória, recordo que nas suas missões andou sempre nos teatros de guerra da "nova" Europa, não houve facilidades).
Em resumo, cada um de nós é o que é e a sua circunstância....e eu ainda hoje leio e releio a ALICE, como acho que lerei e relerei Valério Romão, neste conto arrasante!
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