Wednesday, March 25, 2015
Os Abutres
Os abutres:
I
morre um poeta
cai um avião
os abutres
limparão os corpos
deixando os ossos
espalhados
na montanha;
roubarão ao poeta
as palavras não-ditas
que ele fora amortalhando
como se adivinhasse
Bastaria morrer
para que se abrissem
as páginas dos jornais
com o seu rosto cansado
Poderá ver de longe
com um sorriso amargo
alguma correria aos livros
mais antigos, de que ele
dizia irónico são apenas folhetos...
II
Eu guardo para mim
os primeiros encontros
no café Gelo, ao Saldanha,
diante da bica
nesses anos sessenta, onde
o sucesso pouco importava e
apenas se falava do livro
entregue para publicação
ou de algum outro
que se estivesse a ler
Vivia-se entre amigos,
era o Carlos Ferreiro quem fazia
as vinhetas e as ilustrações
que o Vítor Silva Tavares lhe pedia
para as edições eETC.
Os seus desenhos eram ampliação
da palavra mais negra, mais oculta
batiam no coração
E anos mais tarde, já depois
da Revolução de Abril,
era com o Alberto Pimenta
outro poeta, um amigo de sempre,
que se discutia o interesse
da tão aguardada nova escrita:
escassa e rara, fazia-se politiquice,
não se lia, e era assim que o poeta
entristecia
Pego ao acaso num desses "folhetos"
que ele sabia enviar-me, sabia que eu gostava
fui sempre fiel e lia -
desde A Colher na Boca não mais me separara
E aqui o tenho e leio,
um deles,
as folhas amareladas de
O Corpo O Luxo A Obra:
reparo que há lá dentro uma carta
de que não me lembrava,
estamos em 1978 e ele escreve a agradecer
algo que eu lhe tinha enviado:
uma carta gentil, caligrafia miudinha,
de letra bem desenhada...
Para O Corpo O Luxo A Obra
ele escolhera uma epígrafe de Húmus,
anterior de dez anos (1966/67) mas já fecha o seu livro
com a Tabula Smaragdina, de Hermes Trismegisto,
o Pai fundador da alquimia:
é um aceno discreto que me faz
recordando que também ele estudava
o ouro da alquimia que se gera a si próprio
no interior da terra
queria ver talvez se eu tinha mesmo chegado
ao fim do seu folheto, que o não era,
era já o poema contínuo de uma vida
ela sim forrada por dentro a folha de ouro,
o ouro das palavras
"o nervo que entrelaça a carne toda,
de estrela a estrela da obra".
Despeço-me, aqui mesmo,
como no café Gelo,
sem saber até quando
A mim, também já de saída,
citar ou evocar já não me chega,
aguardarei o sinal que a Mãe
na véspera me tinha dado
mas sem dizer mais nada:
era um sonho, vejo a Mãe,
aguardando de pé, elegante e de negro
enquanto à sua frente, na mesa coberta
por toalha de linho, vários talheres de prata
iam ser arrumados
Vejo-a que espera.
Sei que virá alguém
para arrumar aquele resto de vida:
era afinal o Poeta,
o filho tão aguardado...
(escrito a 25 de Março)
Monday, March 16, 2015
Valério Romão
DA FAMÍLIA, de Valério Romão, edição recente da abysmo, consegue surpreender-me como Boris Vian, quando o li pela primeira vez. São contos, mas são muito mais do que isso.
Tanto mais que tenho dificuldade em situar esta sua obra, com um pequeno espelho na capa que nos reflecte a nós, seus leitores, e onde ele certamente não precisou de se ver.
Se a nota biográfica não foi inventada - toda a escrita nele é inventada para deleite nosso e dele (estou a ver como se concentra e ao mesmo tempo se diverte, qual surrealista ao modo de um Buñuel ou de um Dali) e nos confronta com uma prosa escorreita, tão escorreita que de novo surpreende porque a transforma por meio de situações inusitadas, ritmos galopantes, rios que vão em associações de vagas que ele aproveita para surfar...
Valério , terá mesmo nascido em 1974? Tão jovem e já tão "lido" revela uma consciência aguda do que diz mas atravessada por um imaginário sub- que evoca Lautrémont, o stream of consciouness, um Ionesco de herança francesa e um Beckett mais recente e à moda, Valério corre no seu caminho, que atravessa com um maravilhoso (por vezes doloroso, ou antes cruel) sentido de humor, raríssimo entre nós.
Esta é uma obra notável, que teremos de ler, quem sabe múltiplas vezes até a decifrar por completo. Tem chave, que ele não diz onde ficou escondidad: Noites de insónia? Fugas a algo de intolerável? Haverá de tudo. Logo pelo título, que sendo da família é dele no centro dela.
Descubro que há uma colaboração sua no VÔO Rasante, antologia de que falei atrás :"Dez Razões Para Aspirar A Ser Gato",p. 185.
A situação é aparentemente simples: uma criança que na festinha da escola terá de ser gato, enquanto outras serão príncipes ou cavaleiros, ou mesmo ovo (adivinhamos que se trata de uma encenação de Alice no País das Maravilhas), e as peripécias que se vão seguir, desde o momento em que ele declara que não, não quer ser gato, até ao final, em que o ser gato faz dele no palco o herói da peça (da vida?). A narrativa é entrecortada de memórias de adulto, mas a mim,na verdade, o que me chamou a atenção foi a recusa de uma criança, a aceitação imposta, e um final que não a reduziu ao nada que ela temia.
E avanço para um episódio familiar: nessa mesma idade das fetinhas escolares, um dos meus sobrinhos chega a casa e diz aos pais (não diz, antes declara) "eu não vou de padeirinho! "
- Que mal tem, é divertido, todos vão de qualquer coisa....
- Já disse, eu não vou de padeirinho.
Sei que não foi de padeirinho e também já nem sei se chegou a ir à festinha que tanto o aborrecia.
Do mesmo modo, esse meu sobrinho, de quem gosto muito, pela clareza com que diz o que escolhe ( e nem isso hoje é fácil, muito ao contrário do que se pense) chegou um dia a casa, já no fim do liceu, e disse (declarou) quero ser paraquedista, das forças especiais.
E assim foi. Esperava-se que fizesse um dos chamados bons cursos, direito, engenharia, medicina - cursos que havia na família, avôs, pais e tios, mas não.
Se ao outro, o nosso Valério, o Gato de Alice (que era na realidade um sedutor, como todos os gatos, mas ainda por cima filosofante) devolveu a consciência de ser, ao meu sobrinhito que na altura nada queria saber de festas com padeirinhos foi a escolha de uma profissão exterior ao que seria habitual na família que fez dele o homem, o pai de família que hoje é.
(Só para memória, recordo que nas suas missões andou sempre nos teatros de guerra da "nova" Europa, não houve facilidades).
Em resumo, cada um de nós é o que é e a sua circunstância....e eu ainda hoje leio e releio a ALICE, como acho que lerei e relerei Valério Romão, neste conto arrasante!
Tanto mais que tenho dificuldade em situar esta sua obra, com um pequeno espelho na capa que nos reflecte a nós, seus leitores, e onde ele certamente não precisou de se ver.
Se a nota biográfica não foi inventada - toda a escrita nele é inventada para deleite nosso e dele (estou a ver como se concentra e ao mesmo tempo se diverte, qual surrealista ao modo de um Buñuel ou de um Dali) e nos confronta com uma prosa escorreita, tão escorreita que de novo surpreende porque a transforma por meio de situações inusitadas, ritmos galopantes, rios que vão em associações de vagas que ele aproveita para surfar...
Valério , terá mesmo nascido em 1974? Tão jovem e já tão "lido" revela uma consciência aguda do que diz mas atravessada por um imaginário sub- que evoca Lautrémont, o stream of consciouness, um Ionesco de herança francesa e um Beckett mais recente e à moda, Valério corre no seu caminho, que atravessa com um maravilhoso (por vezes doloroso, ou antes cruel) sentido de humor, raríssimo entre nós.
Esta é uma obra notável, que teremos de ler, quem sabe múltiplas vezes até a decifrar por completo. Tem chave, que ele não diz onde ficou escondidad: Noites de insónia? Fugas a algo de intolerável? Haverá de tudo. Logo pelo título, que sendo da família é dele no centro dela.
Descubro que há uma colaboração sua no VÔO Rasante, antologia de que falei atrás :"Dez Razões Para Aspirar A Ser Gato",p. 185.
A situação é aparentemente simples: uma criança que na festinha da escola terá de ser gato, enquanto outras serão príncipes ou cavaleiros, ou mesmo ovo (adivinhamos que se trata de uma encenação de Alice no País das Maravilhas), e as peripécias que se vão seguir, desde o momento em que ele declara que não, não quer ser gato, até ao final, em que o ser gato faz dele no palco o herói da peça (da vida?). A narrativa é entrecortada de memórias de adulto, mas a mim,na verdade, o que me chamou a atenção foi a recusa de uma criança, a aceitação imposta, e um final que não a reduziu ao nada que ela temia.
E avanço para um episódio familiar: nessa mesma idade das fetinhas escolares, um dos meus sobrinhos chega a casa e diz aos pais (não diz, antes declara) "eu não vou de padeirinho! "
- Que mal tem, é divertido, todos vão de qualquer coisa....
- Já disse, eu não vou de padeirinho.
Sei que não foi de padeirinho e também já nem sei se chegou a ir à festinha que tanto o aborrecia.
Do mesmo modo, esse meu sobrinho, de quem gosto muito, pela clareza com que diz o que escolhe ( e nem isso hoje é fácil, muito ao contrário do que se pense) chegou um dia a casa, já no fim do liceu, e disse (declarou) quero ser paraquedista, das forças especiais.
E assim foi. Esperava-se que fizesse um dos chamados bons cursos, direito, engenharia, medicina - cursos que havia na família, avôs, pais e tios, mas não.
Se ao outro, o nosso Valério, o Gato de Alice (que era na realidade um sedutor, como todos os gatos, mas ainda por cima filosofante) devolveu a consciência de ser, ao meu sobrinhito que na altura nada queria saber de festas com padeirinhos foi a escolha de uma profissão exterior ao que seria habitual na família que fez dele o homem, o pai de família que hoje é.
(Só para memória, recordo que nas suas missões andou sempre nos teatros de guerra da "nova" Europa, não houve facilidades).
Em resumo, cada um de nós é o que é e a sua circunstância....e eu ainda hoje leio e releio a ALICE, como acho que lerei e relerei Valério Romão, neste conto arrasante!
Sunday, March 15, 2015
Vôo Rasante
Sim, acrescentei um acento, no Post, que também ele pode voar, mas aqui antes envolve a proposta de leitura.
Para mim não há acordos, mas pode haver e aprecio a criatividade do designer.
O título desta bela antologia é pois Voo rasante, sem acento. E os dois Oo voaram para o alto da capa, onde vibra um V grande vermelho, que nos chama a atenção.
Helena Vieira, que fez a coordenação, oferece-nos uma bela proposta de leitura de poetas contemporâneos, alguns que já li e reconheço, como João Paulo Esteves da Silva, compositor, e que tem buscado na Palavra Oculta da Cabala judaica o sentido profundo, o mistério do Ser.
O seu poema, um ciclo, como se fosse um hino, tem de ser lido lentamente. Com ele chegaremos a essa Árvore plantada no ar, de que falavam os místicos. Deu como título ao poema ( um cântico na verdade) UMA ÁRVORE DO CAMPO (p. 75 e segs.)
Não se trata do campo do nosso Alberto Caeiro, embora Pessoa tivesse também ele a sua árvore plantada no ar e os heterónimos possam ser vistos como ramificações ampliadas de uma busca perpétua. O poema de João Paulo remete para leituras do Antigo Testamento, para o Cântico dos Cânticos, e para a actualização de uma língua que se perdeu, na sua hermética simbólica, e que ele tenta recuperar. Recriou, no poema, a Terra Prometida. O coração de judeu de que nos fala é o coração de um Paul Celan: só ele, na sua poesia ignorada durante tanto tempo, recupera o coração que é "madeixa" imortal, e abre a porta sagrada da Palavra aos outros sobreviventes.
Mas não é este o tom geral da poesia escolhida para esta obra: encontramos uma coloquialidade directa, em muitos dos poemas, expressão do dia -a -dia, com um experimentalismo que me leva a ir buscar à estante dos velhos amigos o volume da PO-EX, ou os caligramas da Ana Hatherly (poeta e pintora), para não falar dos exercícios poéticos ou performativos sempre inovadores do Alberto Pimenta. Podemos ler hoje, como líamos outrora, A IDADE da ESCRITA de A. Hatherly
O que quero dizer é que a poesia é de todas as idades, para todas as idades.
Houve uma Antologia da Poesia Portuguesa de 1940-1977 - estava na hora de nos chegar às mãos uma Antologia recente, com poesia de agora.
E o que é o mundo de agora, para muitos destes poetas?
O da leitura em desassossego, o do trabalho, o das horas que pesam, ou que não contam, e também o dos sentimentos) sim, não há que ter receio de exprimir sentimentos) como descubro, por exemplo, em Pedro S. Martins, a páginas 135, ("és o que ao acordar mais procuro"...) ou nas páginas seguintes de Raquel Nobre Guerra, impetuosa, no ritmo e na memória coloquial e expressiva, sem recusar o "calão" do seu dizer.
Numa altura em que tanto se fala da incultura dos jovens, descobrimos, nestes poetas, uma cultura, clássica ou moderna, remetendo para leituras e reflexões que lhes alimentam a escrita.
Porque o vôo da Palavra é permanente, vem de longes tempos, das tabuínhas assírias (agora destruídas) até à muito mais recente ironia de um Chesterton, citado por Leonardo Gandolfi, na sua ESCALA RICHTER (p.89-90).
Este é um dos poemas que gostaria de citar por inteiro, mas perdoem-me os leitores: comprem o livro e leiam!
Numa altura em que tanto se fala da incultura dos jovens, descobrimos, nestes poetas, uma cultura, clássica ou moderna, remetendo para leituras e reflexões que lhes alimentam a escrita.
Porque o vôo da Palavra é permanente, vem de longes tempos, das tabuínhas assírias (agora destruídas) até à muito mais recente ironia de um Chesterton, citado por Leonardo Gandolfi, na sua ESCALA RICHTER (p.89-90).
Este é um dos poemas que gostaria de citar por inteiro, mas perdoem-me os leitores: comprem o livro e leiam!
E há mais tantos outros...vou lendo, e por aqui andarei de certeza, vamos falando, com tempo.
Saturday, March 14, 2015
Ao Miguel Vaz, evocando o seu pai...
A Manuel José Vaz
(in memoriam)
e ao Miguel, evocando o seu pai
Para onde vamos
no corredor de luz
ao fundo
a cesta de vime
carregada de frutos
uma árvore aguarda
virada para o céu
uma árvore aguarda
virada para o céu
o bambú que floriu
jaz caído no chão
tem de ser resgatado
também é nossa
a terra
a treva
a raiz
que o cobriu
(14 de Março de 2015)
Friday, March 13, 2015
António Pinho Vargas
António Pinho Vargas, em entrevista ao Pedro Boléo, no Público.
O que ele define como uma espécie de reencontro consigo mesmo, através do reencontro - que é sempre uma forma de renovação - com a sua obra, desde a primeira composição até agora, só pode ser uma ocasião feliz da sua vida.
Ele refere esse momento raro, da felicidade concedida aos artistas. Revejo-me no que ele define como revisitação dos seus últimos 30 anos.
Embora eu seja mais velha, a nossa geração é a mesma.
Tinha eu feito para a minha licenciatura uma dissertação sobre Robert Musil, e convidada a ir ao Porto para falar um pouco desse autor que à época não era conhecido entre nós, - e deparo no público com um pianista que gostava e lia filosofia e queria saber mais de Musil.
Gosto do Pinho Vargas desde aí: pela sua curiosidade intelectual, que também o conduz na inspiração da arte que é a sua, evoluindo sempre, caminhando e procurando sempre aquele que em cada momento será o novo som, a nova inspiração.
Ouvi-o na Culturgest, faz uns anos.
Espero vê-lo neste concerto, que é marca dele, sem dúuvida, mas que é marca nossa - os que agora envelhecem (é assim que me sinto) um pouco perdidos na relação com o mundo.
Pedro Boléo, excelente crítico, deixa o seu convidado falar, na entrevista.
E quem diria que para ele, Professor e compositor é também, como para mim, enquaanto antiga Professora, o século preferido, o que sempre chamei de séc. I da Modernidade (não confundir com modernismo). O das ideias fundadoras que recentemente, com ajuda da Prof. Manuela Nunes, tentei trazer ao nosso tempo pela via de Lessing e do seu drama líriio Nathan der Weise!
Fechei com esta peça a minha veia de tradutora (em verso livre). Alguém a lerá um dia...como acabaram a ler um Musil ignorado.
Dito isto , divagação saudosa, espero que, enquanto não saia um disco, a sala do São Luiz esteja repleta para a subtileza e o maravilhoso encontro de Pinho Vargas com o seu público.
O que ele define como uma espécie de reencontro consigo mesmo, através do reencontro - que é sempre uma forma de renovação - com a sua obra, desde a primeira composição até agora, só pode ser uma ocasião feliz da sua vida.
Ele refere esse momento raro, da felicidade concedida aos artistas. Revejo-me no que ele define como revisitação dos seus últimos 30 anos.
Embora eu seja mais velha, a nossa geração é a mesma.
Tinha eu feito para a minha licenciatura uma dissertação sobre Robert Musil, e convidada a ir ao Porto para falar um pouco desse autor que à época não era conhecido entre nós, - e deparo no público com um pianista que gostava e lia filosofia e queria saber mais de Musil.
Gosto do Pinho Vargas desde aí: pela sua curiosidade intelectual, que também o conduz na inspiração da arte que é a sua, evoluindo sempre, caminhando e procurando sempre aquele que em cada momento será o novo som, a nova inspiração.
Ouvi-o na Culturgest, faz uns anos.
Espero vê-lo neste concerto, que é marca dele, sem dúuvida, mas que é marca nossa - os que agora envelhecem (é assim que me sinto) um pouco perdidos na relação com o mundo.
Pedro Boléo, excelente crítico, deixa o seu convidado falar, na entrevista.
E quem diria que para ele, Professor e compositor é também, como para mim, enquaanto antiga Professora, o século preferido, o que sempre chamei de séc. I da Modernidade (não confundir com modernismo). O das ideias fundadoras que recentemente, com ajuda da Prof. Manuela Nunes, tentei trazer ao nosso tempo pela via de Lessing e do seu drama líriio Nathan der Weise!
Fechei com esta peça a minha veia de tradutora (em verso livre). Alguém a lerá um dia...como acabaram a ler um Musil ignorado.
Dito isto , divagação saudosa, espero que, enquanto não saia um disco, a sala do São Luiz esteja repleta para a subtileza e o maravilhoso encontro de Pinho Vargas com o seu público.
Monday, March 02, 2015
Antonio Carlos Cortez, LINHA DE FOGO
Está na hora de eu rearranjar os títulos dos meus blogs, que pressupõem temas, indicações, algo assim.
Agora não coloco imagens, e aqui era suposto, quando comecei, há anos, "abrir" o leitor ao sentido de um texto ou de uma imagem, ou de ambos.
Assim a Arte, como eu a desejava ir apresentando no blog, foi desaparecendo. Fica o texto, fica a criação literária, fica a voz dos poetas.
Mas mesmo para um texto a busca se está a tornar difícil. Modestamente procurava eu um poeta, na rede imensa da net.
É jovem, é português.
Mas tudo o que me aparecia, no google, por qualquer razão, eram senhores de alguma idade, e oriundos da Colômbia!
Facebook, blogs, etc. - em nada me ajudaram.
O que eu queria era simples, além de alguma informação extra, uma imagem se houvesse. O que me leva a pensar como o excesso, a abundância, confundem, fazem perder tempo, não ajudam.
O acesso à informação devia ser mais simples, ou mais simplificado, agora que se pode, ao que dizem, fazer tudo.
O tempo é uma das preciosidades que devemos poupar. Mas como, se a distracção é permanente, rodopia, faz de nós cataventos na net, e pelo meio a dada altura ( a dada idade?) o pensamento se perde?
Volto ao pensamento inicial. Fechar os blogs, abrir um único com um título mais adequado?
Enquanto fiz alguns seminários para adultos, criei, durante dois anos, para duas turmas de vinte e poucos alunos os blogs de cultura visual e de escrita criativa. Eram textos (pretextos) de ajuda à reflexão e ao estudo, para os seus futuros trabalhos, dando exemplos mais do que teoria excessiva, que não teriam tempo de ler.
Mas de repente reparo que na escrita criativa já publiquei alguns poemas meus - e não era nada disso que queria fazer! Lembrei-me de uma entrevista da Adília Lopes em que ela dizia: um escritor escreve todo o tempo, na sua cabeça, depois aponta ou não num caderno, ou onde fôr, o que esteve mentalmente a escrever. E é mesmo assim. Quem escreve sabe que é assim.
Outrora eu de noite dava-me a esse trabalho, de pegar no caderno e apontar o que de cabeça, na cabeça, tinha escrito. Agora, sentada no sofá, nem me levanto. Penso: o que eu não digo agora, alguém dirá mais tarde.
E antes procuro um livro para ler.
Estava eu a falar do excesso, mas na verdade tenho já um livro na mão, é de um jovem poeta (para mim, a caminho dos oitenta anos, como digo, é mesmo jovem...) e tal como eu, gostou de descobrir e de estudar Fernando Pessoa.
Deixei de escrever sobre Pessoa, a partir do momento em que tantos estudiosos (alguns ajudei nos seus doutoramentos) estavam a dedicar-se à sua Obra. Fiz bem, pois por mim já sabia o que tinha encontrado nele, de desafio permanente. Foi bom dar lugar a outros.
Tenho então um livro à minha frente: LINHA DE FOGO, de António Carlos Cortez.
Páginas de poesia e prosa que seguem num curso natural como o rio que Ricardo Reis gostava de contemplar, incitando Lídia a fazer o mesmo.
Ficar, para poder ser, enquanto ser é possível:
"Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos.)"
A ode segue, num apelo a não chegar a ser, não chegar a sentir, ou mesmo existir, num paganismo que se diz inocente, mas que de inocente nada tem. Bebeu o imaginário clássico antigo, de mistura com o esoterismo mais recente, de anulação e entrega.
Este rio é o que noutro poema, que Eduardo Lourenço gostou de nos citar outrora, num primeiro seminário que nos deu na recém fundada Universidade Nova é o mesmo rio perante o qual Pessoa se interroga "o que é ser rio e correr/ o que é está-lo eu a ver..."
A interrogação é o que distingue o nosso poeta, neste caso Reis, no contexto do Modernismo e do experimentalismo exacerbado de outros contemporâneos seus, como Almada Negreiros, e os seus outros heterónimos. A interpelação distingue melhor António Carlos Cortez do Reis que acabo de citar.
A interrogação é o enfrentamento com os vários patamares da consciência, por exemplo os três do Zohar, na Kabbala Revelada, ou nos vários graus da iniciação maçónica, de que o de Mestre é para ele sem dúvida o de maior elevação (perplexidade?).
Nada de arroubos como os de Álvaro de Campos, na sofreguidão bebida em Whitman, ou na curiosidade insaciável escondida nas célebres iniciações da Golden Dawn de Israel Regardie, ou das mistificações sedutoras como as de Aleister Crowley, fundador dessa sociedade secreta junto com S.L.MacGregor Mathers, que traduziu do latim a KABBALA DENUDATA, contendo os três livros do Zohar: O Livro do Mistério Oculto ; A Grande Assembleia Sagrada; A Pequena Assembleia Sagrada.
A tradução é feita a partir da versão latina de Knorr von Rosenroth, fundador do movimento Rosa-Cruz, no século XVII (sendo As Bodas Químicas de Christian Rosencreutz, 1459 - um dos livros mais lidos, por Goethe, entre outros, e cuja simbólica se redescobre nos vários momentos da iniciação maçónica e hermética). Tudo isto Pessoa leu, as obras de referência podem ser encontradas na sua biblioteca, agora disponível para investigação.
Mas falava eu de outro poeta, António Carlos Cortez: pessoano, como se costuma dizer dos estudiosos. Apontava, nos seus poemas, uma interpelação: ao quotidiano, horizontal, que logo se pode esquecer, mas talvez mais ao tempo da memória vertical, revelada, mais perto da experiência da palavra . Um dos patamares do Mistério acima referido. Pois todo o mistério revelado é feito da Palavra.
Encontro em LINHA DE FOGO uma realidade (uma objectividade lírica) por vezes detalhada, por vezes aguardada ou recusada, mas sempre interpelada, de exigência absoluta, uma palavra-corpo em carne viva. Memória e sofrimento, como se na memória nunca parasse o tempo. Não sendo eu capaz de fazer melhor ( o tal copy-paste) e porque um blog para ser lido não deve nunca alongar-se, escolherei apenas para meditação, do poema AO LEITOR, uns últimos versos:
"...Para ti tem o texto a posse do que foste
mas a poesia não anula a dôr e os actos
aos poucos sobem aos olhos Escombros
no teu íntimo mar suspenso e vasto
(num escafandro desces aos desastres)
(p.44)
A. Cortez tinha antes deixado um desafio: "se somos o que fazemos...", dirigindo-se ao seu leitor imaginado.
Mas sabe que não é assim, escava nas fábulas, usando as suas palavras, isto é, escava no tempo e na memória, escava como Celan escavara, gota a gota de sangue na palavra, pois só escrever salvava.
Não é por acaso que abre o seu livro com uma referência à "matéria inflamável da grafia", unindo deste modo matéria e energia (o fogo) ou tempo e espaço. O título deste poema inicial é MARÉ VAZA. A onda anímica, aquática, da criatividade atravessa a obra, e também não será por acaso (será antes por alguma sincronicidade, ao modo junguiano) que o livro é fechado com uma LITANIA DO TEMPO, que dita em voz alta nos embala e comove. Vejamos um pouco do que digo:
" Em vagas vem o tempo ter contigo
e traz consigo a pedra transitória
tempo mortal e vivo do destino
...
O tempo é um mar soterrado e limpo
e à superfície reconheces rostos
...
(os livros que tens escrito são a opaca
recordação do sangue aquático
ardendo de cada vez no texto morto
os episódios vibrando biográficos
vindos da adolescente claridade)
O tempo linear uma ilusão... "
(p.62-63)
E ficarei por aqui.
É em verdade de Tempo que se fala, e se é certo que Pessoa não morreu, este poeta é na mesma chama que vai ardendo e vive. Se o fogo é água, se o tempo é mar, António Cortez, como Pessoa-Reis, em silêncio, contempla.
Belos poemas, belo livro!
Agora não coloco imagens, e aqui era suposto, quando comecei, há anos, "abrir" o leitor ao sentido de um texto ou de uma imagem, ou de ambos.
Assim a Arte, como eu a desejava ir apresentando no blog, foi desaparecendo. Fica o texto, fica a criação literária, fica a voz dos poetas.
Mas mesmo para um texto a busca se está a tornar difícil. Modestamente procurava eu um poeta, na rede imensa da net.
É jovem, é português.
Mas tudo o que me aparecia, no google, por qualquer razão, eram senhores de alguma idade, e oriundos da Colômbia!
Facebook, blogs, etc. - em nada me ajudaram.
O que eu queria era simples, além de alguma informação extra, uma imagem se houvesse. O que me leva a pensar como o excesso, a abundância, confundem, fazem perder tempo, não ajudam.
O acesso à informação devia ser mais simples, ou mais simplificado, agora que se pode, ao que dizem, fazer tudo.
O tempo é uma das preciosidades que devemos poupar. Mas como, se a distracção é permanente, rodopia, faz de nós cataventos na net, e pelo meio a dada altura ( a dada idade?) o pensamento se perde?
Volto ao pensamento inicial. Fechar os blogs, abrir um único com um título mais adequado?
Enquanto fiz alguns seminários para adultos, criei, durante dois anos, para duas turmas de vinte e poucos alunos os blogs de cultura visual e de escrita criativa. Eram textos (pretextos) de ajuda à reflexão e ao estudo, para os seus futuros trabalhos, dando exemplos mais do que teoria excessiva, que não teriam tempo de ler.
Mas de repente reparo que na escrita criativa já publiquei alguns poemas meus - e não era nada disso que queria fazer! Lembrei-me de uma entrevista da Adília Lopes em que ela dizia: um escritor escreve todo o tempo, na sua cabeça, depois aponta ou não num caderno, ou onde fôr, o que esteve mentalmente a escrever. E é mesmo assim. Quem escreve sabe que é assim.
Outrora eu de noite dava-me a esse trabalho, de pegar no caderno e apontar o que de cabeça, na cabeça, tinha escrito. Agora, sentada no sofá, nem me levanto. Penso: o que eu não digo agora, alguém dirá mais tarde.
E antes procuro um livro para ler.
Estava eu a falar do excesso, mas na verdade tenho já um livro na mão, é de um jovem poeta (para mim, a caminho dos oitenta anos, como digo, é mesmo jovem...) e tal como eu, gostou de descobrir e de estudar Fernando Pessoa.
Deixei de escrever sobre Pessoa, a partir do momento em que tantos estudiosos (alguns ajudei nos seus doutoramentos) estavam a dedicar-se à sua Obra. Fiz bem, pois por mim já sabia o que tinha encontrado nele, de desafio permanente. Foi bom dar lugar a outros.
Tenho então um livro à minha frente: LINHA DE FOGO, de António Carlos Cortez.
Páginas de poesia e prosa que seguem num curso natural como o rio que Ricardo Reis gostava de contemplar, incitando Lídia a fazer o mesmo.
Ficar, para poder ser, enquanto ser é possível:
"Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos.)"
A ode segue, num apelo a não chegar a ser, não chegar a sentir, ou mesmo existir, num paganismo que se diz inocente, mas que de inocente nada tem. Bebeu o imaginário clássico antigo, de mistura com o esoterismo mais recente, de anulação e entrega.
Este rio é o que noutro poema, que Eduardo Lourenço gostou de nos citar outrora, num primeiro seminário que nos deu na recém fundada Universidade Nova é o mesmo rio perante o qual Pessoa se interroga "o que é ser rio e correr/ o que é está-lo eu a ver..."
A interrogação é o que distingue o nosso poeta, neste caso Reis, no contexto do Modernismo e do experimentalismo exacerbado de outros contemporâneos seus, como Almada Negreiros, e os seus outros heterónimos. A interpelação distingue melhor António Carlos Cortez do Reis que acabo de citar.
A interrogação é o enfrentamento com os vários patamares da consciência, por exemplo os três do Zohar, na Kabbala Revelada, ou nos vários graus da iniciação maçónica, de que o de Mestre é para ele sem dúvida o de maior elevação (perplexidade?).
Nada de arroubos como os de Álvaro de Campos, na sofreguidão bebida em Whitman, ou na curiosidade insaciável escondida nas célebres iniciações da Golden Dawn de Israel Regardie, ou das mistificações sedutoras como as de Aleister Crowley, fundador dessa sociedade secreta junto com S.L.MacGregor Mathers, que traduziu do latim a KABBALA DENUDATA, contendo os três livros do Zohar: O Livro do Mistério Oculto ; A Grande Assembleia Sagrada; A Pequena Assembleia Sagrada.
A tradução é feita a partir da versão latina de Knorr von Rosenroth, fundador do movimento Rosa-Cruz, no século XVII (sendo As Bodas Químicas de Christian Rosencreutz, 1459 - um dos livros mais lidos, por Goethe, entre outros, e cuja simbólica se redescobre nos vários momentos da iniciação maçónica e hermética). Tudo isto Pessoa leu, as obras de referência podem ser encontradas na sua biblioteca, agora disponível para investigação.
Mas falava eu de outro poeta, António Carlos Cortez: pessoano, como se costuma dizer dos estudiosos. Apontava, nos seus poemas, uma interpelação: ao quotidiano, horizontal, que logo se pode esquecer, mas talvez mais ao tempo da memória vertical, revelada, mais perto da experiência da palavra . Um dos patamares do Mistério acima referido. Pois todo o mistério revelado é feito da Palavra.
Encontro em LINHA DE FOGO uma realidade (uma objectividade lírica) por vezes detalhada, por vezes aguardada ou recusada, mas sempre interpelada, de exigência absoluta, uma palavra-corpo em carne viva. Memória e sofrimento, como se na memória nunca parasse o tempo. Não sendo eu capaz de fazer melhor ( o tal copy-paste) e porque um blog para ser lido não deve nunca alongar-se, escolherei apenas para meditação, do poema AO LEITOR, uns últimos versos:
"...Para ti tem o texto a posse do que foste
mas a poesia não anula a dôr e os actos
aos poucos sobem aos olhos Escombros
no teu íntimo mar suspenso e vasto
(num escafandro desces aos desastres)
(p.44)
A. Cortez tinha antes deixado um desafio: "se somos o que fazemos...", dirigindo-se ao seu leitor imaginado.
Mas sabe que não é assim, escava nas fábulas, usando as suas palavras, isto é, escava no tempo e na memória, escava como Celan escavara, gota a gota de sangue na palavra, pois só escrever salvava.
Não é por acaso que abre o seu livro com uma referência à "matéria inflamável da grafia", unindo deste modo matéria e energia (o fogo) ou tempo e espaço. O título deste poema inicial é MARÉ VAZA. A onda anímica, aquática, da criatividade atravessa a obra, e também não será por acaso (será antes por alguma sincronicidade, ao modo junguiano) que o livro é fechado com uma LITANIA DO TEMPO, que dita em voz alta nos embala e comove. Vejamos um pouco do que digo:
" Em vagas vem o tempo ter contigo
e traz consigo a pedra transitória
tempo mortal e vivo do destino
...
O tempo é um mar soterrado e limpo
e à superfície reconheces rostos
...
(os livros que tens escrito são a opaca
recordação do sangue aquático
ardendo de cada vez no texto morto
os episódios vibrando biográficos
vindos da adolescente claridade)
O tempo linear uma ilusão... "
(p.62-63)
E ficarei por aqui.
É em verdade de Tempo que se fala, e se é certo que Pessoa não morreu, este poeta é na mesma chama que vai ardendo e vive. Se o fogo é água, se o tempo é mar, António Cortez, como Pessoa-Reis, em silêncio, contempla.
Belos poemas, belo livro!
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