Friday, June 16, 2006

Alexandre O'Neill



AUTO-RETRATO

O'Neill( Alexandre ), moreno português,
cabelo asa de corvo; da angústia da cara,
nariguete que sobrepuja de través
a ferida desdenhosa e não cicatrizada.
Se a visagem de tal sujeito é o que vês
( omita-se o olho triste e a testa iluminada )
o retrato moral também tem os seus quês
( aqui uma pequena frase censurada...).
No amor? No amor crê ( ou não fosse ele O'Neill )
e tem a veleidade de o saber fazer
(pois amor não há feito ) das maneiras mil
que são a semovente estátua do prazer.
Mas sofre de ternura, bebe demais e ri-se
do que neste soneto sobre si mesmo disse...
( 1962 )


Outra editora de referencia, a Guimarães, onde era alegria e privilégio poder ser editado.
Alexandre O'Neill, com esta obra, oferece à leitura os seus amigos, muitos, de Breton a Michaux, Éluard, João Cabral, os seus pintores, Júlio Pomar, o seu quotidiano e o de um país a adoecer de cansaço de alma, ao gosto de Pessoa, ortónimo e heterónimo que todos líamos naquele tempo, com grande normalidade. Só hoje, tantos anos depois, é preciso fazer "projectos de leitura para as escolas". Naquele tempo lia-se desde pequeno, sem programas especiais, conversava-se nos cafés, nos escritórios dos editores onde muitos se encontravam sem temor de plágios, as ideias eram abertas, circulavam, as imagens davam consistencia às ideias, discutia-se, enfim, vivia-se ainda que por vezes nas entrelinhas de grandes dificuldades.
Alexandre tem poesia certeira: vejam só como o poema SIGAMOS O CHERNE pode ser relido, na sua mensagem actualizada e para quem não aceite "contratos" incondicionais, algo melancólica, pois os tempos, de que noutros poemas ele também se ocupa, "apodrecem", no reino da Dinamarca de marca Portugal.

Deixo-vos com a última estrofe, esperando que procurem a obra de O'Neill, em antiquários, se não for de outro modo, e a leiam por inteiro:

Sigamos, pois, o cherne, antes que venha,
Já morto, boiar ao lume de água,
Nos olhos rasos de água,
Quando, mentindo o cherne a vida inteira,
Não somos mais que solidão e mágoa...

De um outro humor é a SAUDAÇÃO A JOÃO CABRAL DE MELO NETO:

João Cabral de Melo Neto,
Você não se pode imitar,
mas incita a ver mais de perto,
com mais atenção e vagar,
o que está como que em aberto,
ainda por vistoriar,o que vive entre pedra e terra
e o que é entre muro e cal,
o que tem "vocação de bagaço"
e o que resiste no osso ou no "aço
do osso", mais essencial.

...

De prosaico há-de ser chamado
pelos do "estilo doutor",
cabeleireiros da palavra,
pirotécnicos do estupor,
que dão tudo por uma ária
de alambicado tenor,
que encaixilham a dourado
morceaux choisis de orador,
mas de prosaico não foi chamado
o nosso Cesário Verde?
O lugar comum se repete
aqui ou do outro lado...

...

Prosaico: o não enfático,
o que não mente a si mesmo,
o que não escreve a esmo,
o que não quer ser simpático,
o que é "a palo seco",
o que não toma por outro
mais fácil trajecto
quando está diante do pouco,
nem que seja um insecto.

Já se deixa ver que prosaico,
assim, mal definido,
não é uma atitude
que se arvore ou um laivo,
uma tinta de virtude:
é um modo de ser,
mesmo antes do verso,
mesmo fora do verso,
mesmo sem dizer.

Será neste sentido,
prosaico Melo Neto,
que no poema "O RIO"
cita Berceo:"Quiero
que compongamos yo e tú una prosa" ?
Será no mesmo sentido
de Pessoa-Alberto Caeiro
(outro prosaico, mas desiludido...) :
"...escrevo a prosa dos meus versos
e fico contente " ?

*

Quanto a mim, ainda o bonito
me põe nervoso, o meu canito
ainda tem plumas- e lindas !-
e o emu verso deita-se muito,
não sobre a terra, mas em sumaúmas,
já com bastante falta de ar...

Ó Poeta,
não é motivo para não o saudar !

(1959 )

Reparei, no meu counter, que tenho vários amigos brasileiros consultando o blog, o que me deixa feliz.
Por isso escolhi a homenagem a João Cabral, entre os poemas com endereço do O'Neill.
Vale a pena, em outro momento, trazer aqui Cesário Verde, seu muito preferido, e referir o excelente e sempre actual ensaio de Helder Macedo, publicado na &ETC.

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