Sunday, December 28, 2025

  Freud, por outras palavras.

De Teolinda Gersão, Autobiografia não escrita de Martha Freud, ed.Porto Editora, 2024

Numa bela edição, design de Susana Cruz, e letra boa de se ler, sem esforço que cegue. A Imprensa Nacional devia dar atenção a este pormenor, de uma letra boa e cuidada.

Teolinda Gersão, sendo uma Académica experiente, nunca brincaria às biografias ficcionadas. Podemos esperar que este livro, de título que parece querer brincar com o género literário, não ignore o suporte de    leitura prévia e investigação que uma personalidade controversa como a de Freud ainda hoje exigem. Por aí podemos ler em segurança, há um trabalho prévio, de honestidade intelectual, que não desmerece do valor quer de Freud quer da autora.

Escolhe um modo que pode surpreender, de início, mas a que depressa nos habituamos: veste o corpo de Martha, mulher de Freud, assume a sua voz de mulher numa época em mudança e numa altura da sua vida (mais de oitenta anos) em que já não se pode alterar o que se foi. Alguma sensação de alter-ego, numa situação em que se sentiu, por alguma razão, próxima daquela mulher que deu a sua vida a um homem tão influente e que transformou a psicologia da alma em matéria de revolução social, pessoal e por aí em parte política também.

Mas Teolinda tem pressa em chegar à personagem de Martha, a ficcionada e a real, passando por cima de Sigi, o petitnom de Sigmund Freud, prevenindo o leitor que não se ocupará do grande estudioso da mente humana, mas sim da sua mulher, cujo estatuto era ou tinha sido durante anos apagado, até à publicação das cartas em edição completa, onde ela se afirmava de carácter tão forte como o dele e merecia um lugar não igual, mas igualmente importante. 

É depois da sua morte que finalmente vibra, gozando uma liberdade até esse momento raramente sentida. A obra dele e ele era acima de tudo a sua obra, tinha devorado em parte o que podia ter sobrado para Martha. Mas naquele tempo, como em tantos casos ainda hoje, a mulher era acima de tudo o pilar da família, esperando-se dela o ser   boa dona de casa, mulher, mãe, e perfeita na relação com o seu marido - o dono e senhor de que por vezes a mulher, sem nada dizer, se sentia cansada.

Nos romances que agora se escrevem nota-se a evolução dos tempos, a liberdade assumida, mas menos vezes o cansaço da aceitação submetida. Martha, agora que se sente livre e dona de si mesma e do seu destino - mas tem mais de oitenta anos - decide então falar da relação que moldou a sua vida nesta série de relatos que recupera das cartas que escreviam um ao outro, ela e Sigi. 

Teolinda refere, na nota prévia, que leu muito enquanto preparava esta publicação e sobretudo a correspondência de uns e outros. Notei a falta da publicação das cartas que Freud e Jung trocaram entre si, abordando situações (algumas amorosas, no exercício das sessões de psicoterapia) e conceitos que viriam a alterar a sua relação de amizade, entre eles o de inconsciente colectivo que trazia à superfície os casos onde se adivinhavam símbolos e mitos primordiais, que levaram Jung  a uma visão da psique diferenciada, que Freud não entendia ou não queria entender porque em parte lhe roubaria espaço no meio médico e social a que ambos pertenciam.

Hoje penso que o pensamento de Jung lhe levou a melhor.

Mas nada disto interessava à viúva, uma Martha  agora leve  e liberta de todas as anteriores restrições sociais e familiares. Não gostava de Anna, a filha continuadora fiel da obra do pai e nunca lhe entregaria o manuscrito que agora preparava, pois ela o rasgaria de imediato. Adiante talvez venhamos a saber porquê. São sempre complexas as relações entre mãe e filha, mais do que entre filha e pai, talvez este tema não seja abordado, porque afinal há mais na vida recuperada de Martha.


 


  

   



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