Friday, June 20, 2025

Christian Bobin, traduzido pela ed. BARCO BÊBADO

 O título é O MURMÚRIO.

Seduz logo à primeira, pois que pode dizer de novo esse murmúrio que nos prenda, nos atraia para uma leitura seguida, e há muito tempo desejada, quando sentimos que os nossos dias pedem mais alimento?

Esta obra de Bobin dá-nos esse alimento: primeiro conduz-nos por um SOKOLOV magistral, pianista que também eu prefiro, quando aparece no Mezzo fico horas a ouvir, depois segue levemente por Chopin, ou uma alusão a Bach, o sempre inspirado Mestre, e pelo meio do que diz da música murmura palavras carregadas de sentido, e percebemos que era delas que estávamos a precisar para dar conteúdo às horas que estavam, sem esperança, aborrecidas, à nossa frente num dia que se adivinhava vazio, como tantos outros.

Bobin veio preencher esse vazio, quando eu menos esperava. Acontecem-me de vez em quando estas surpresas felizes. Não consigo ler obras que sejam lamechas, ou simplesmente bacocas, achando que isso é humor, obras em que tudo acaba bem ou acaba mal e a mim não dizem nada. Acabo às primeiras páginas. Agora, por coincidência que acho quase milagrosa, estou com os murmúrios de Bobin na mão, e tanto do que ele vai dizendo parece ser dito para mim, que não conseguia escrever. 

Quem é Christian Bobin? Um poeta francês, nascido em 1951 e falecido em 2022, cedo demais para o tanto que nos deu entretanto nos seus curtos textos, fragmentos de reflexões que lhe ocorriam, subtis, lembrando às vezes Novalis, mas mais leves, como se pensar pesado fosse desnecessário, as ideias subtis chegariam a quem as entendesse.

Quando lhe perguntaram com que finalidade a escrita, a que se dedicava, no murmúrio tão discreto, servia, ele diz que o murmúrio amplificava o murmúrio.

- Com que finalidade? 

- Arrancar a linguagem ao inferno das opiniões.

Ah, como é certeira e actual  esta resposta!

Adiante dirá mais uma vez algo que eu sinto que poderia ter dito:

"Não me perguntem o que faço, mas antes a quem peço socorro."

E é um livro antigo que o ajuda, como a mim é sempre a um livro dos que li outrora que vou encontrando o que preciso. Preciso de pensamento, de sentido, algures no caminho perdi o que devia ser o sentido da vida e os dias passam, rápidos e sei que me levarão sem resposta para a interrogação que me consome.

Esqueço os males do mundo, que a ele consomem doente, no hospital (não há aqui algo de Rilke?) ouvindo como ele faz, os acordes do amado e sempre citado Sokolov:

"As mãos de Sokolov sobre o teclado têm mil vidas. Uma tem por missão procurar os baixos, o martelar dos trilhos da terrra, enquanto a outra se ocupa da colheita das notas mais jovens, das mais tenras violetas. Sabes que se pode morrer de desgosto quando surgem as violetas selvagens? "

Mas segue com a consolação que salva: " Mesmo ferida a alma das coisas oferece-se para nos salvar. Talvez as sonatas de Haydn. Sim, talvez essas notas que rolam como grãos de pó entre os dedos russos" (será Solokov de novo?) ressaltem sobre o chão, batam nas janelas, talvez a tentativa de fuga dessas notas me ensine alguma coisa sobre a côr amarela dessas raparigas das ruas que peocuram também elas um outro mundo, sem saber que são dele a prova tonitruante e discreta".

"Sokolov mergulha no líquido amniótico do eterno, sem nenhum desvio pela terra. Tocar piano é fundalmente amar, e amar não pretende ser um espectáculo".

Saímos deste modo, indirecto, da elegante corte de Haydn, vamos mais longe e mais fundo, entregues à sonoridade sublime de notas que deslizam e se afundam no mais íntimo do ser. Podemos, também nós, voltar a ser numa entrega total. Afirma ainda Bobin, deste seu amor incondicional pela música que é o " retorno do espírito". Alguém lhe dissre que o seu preferido, Kantorov, era velho. E Bobin escreve: "velho é o ponto mais alto de uma chama".

Será que ao ler esta reflexão também eu saberei o que significa? E que é esta uma depuração necessária, em que todo o supérfluo arda e se deixe consumir sem recriminações contra um mundo que será sempre cruel? 

Para falar de amor Bobin cumpre o ritual de Kierkegaard: onde falta as palavras, entra a música. Assim se defende e se rodeia, e a nós com ele, de música. Assim Sokolov e alguns outros vão surgindo na sua narrativa. Feita de bocados de pão da vida, pedaços que alimentam. Dispam-se das vossas quinquilharias ornamentais, para poder ouvir, absorver, o eterno alimento da música, quando vão a um concerto.

O livro, embora pareça pequeno, é grande nos temas que aborda, a infância (esse é o primeiro sofrimento) a vida e a morte, pelo meio uma doença que tortura, outras artes, fala de Camille Claudel que venera pela sua arte magnífica e sua vida tão torturada, revela-se um poeta de grande cultura e que responde sempre ao apelo da música,  que o completa. Página a página, ou parágrafo a parágrafo o leitor que o segue aprende sempre algo mais que não sabia. Logo para começar o pensamento, o que é pensar, e o sentimento, o que é sentir.

Viagens por um imaginário que algum surrealismo por vezes atravessa, e que lembra o Pessoa que exclama quero sentir tudo de todas as maneiras, ao modo de Rimbaud, pai espiritual desta inquieta geração de poetas que afinal apenas pretendia viver. 

Escreve Bobin, retomando Sokolov: 

"Vejo esse homem como uma muralha: uma muralha contra a morte...

O pensamento que dança nú, sem palavras, sem perseguir uma vã resposta para uma vã pergunta. Ao escutar este homem, esqueço-me de tudo e lembro-me de alguma coisa da vida que havíamos descurado...alguma coisa."

Eu fico por aqui, mas a obra de Bobelin continua por temas que todos se relacionam connosco, quando num certo dia, eu hoje, preciso de caminhar acompanhada por outros, que amam a poesia, a música, na eternidade das esferas que percorrem.  


 



No comments: