O seu primeiro livro, que li ainda em Madrid, numa estadia em que fui falar da obra de Fernando Pessoa, os inéditos sobre ocultismo e esoterismo em geral, deixou-me logo "agarrada", pela invenção, criatividade e originalidade. Não havia nada de semelhante no que tinha lido até aí. Ficámos a conhecer-nos melhor no jantar que o meu cunhado, João Aurora, ofereceu nessa noite, na Embaixada de Portugal. No dia seguinte foi o Julián que me convidou para um café. Falámos de tudo o que líamos, de tudo o que gostávamos, e já tínhamos lido, coincidindo como era de esperar na obra de Joyce, que eu já tinha devorado e em que ele se inspirara, sendo o mais Joyceano dos escritores que li, até hoje. Falou-me da escrita feminina do antigo Japão, os contos de Gengi, de Murakami (séc. XII) e as reflexões por vezes severas, críticas, das Notas de Almofada de Sei Shonagon, do mesmo século, mas de olhar bem diferente do de Murakami. Eu, com grande espanto dele, nãs conhecia, mas cheguei a Lisboa e encomendei logo. Hoje conheço. E como já era moderna a prosa feminina naquele tempo da corte japonesa!
Julián brincava, no seu texto, com as notas de almofada colocadas ao lado do corpo principal, e a nós de decidir se parávamos mais no principal ou nas notas...afinal íamos parando em tudo o que a página nos oferecia. Rara capacidade de absorção de um corpo alheio, feito de palavras e de uma reflexão permanente sobre o que isso significava.
Têm corpo as palavras na obra de Julián, têm sexo, ora se abraçam ora se despegam, a contragosto, umas das outras, procurando em devoração polígama, outras que as substituam. Reais? Imaginárias? Mas nada mais de dentro do imaginário oculto do autor do que aquilo que escreve. Inventou a sua fórmula, que não esqueço: escriviviendo.
Aplica-se a todos os que escrevam, dando a vida pela escrita, escrivivir.
Assim me sinto, quando escrevo: forma de vida, ou morte se não resulta.
A escrita - junto com a leitura- alimento - sustenta a prosa de Julián.
Serve tudo o que a imaginação lhe traz à boca, voraz e sem contemplações. Mastiga, absorve e devolve para nós algo de transformado, comida feita na altura, nele não há pronto a servir, o que é servido foi primeiro muito preparado. Difícil? Muito. Reler tantas e tantas vezes. Mergulhar não tanto no sentido, por vezes aleatório (bebido no surrealismo) mas na corrente de pensamento, mergulhar fundo, deslizar com ele, para chegar ou não chegar a nenhum lado.
Que pode ser algum lado...e passamos então para o seu livro de ALICE, obra que também a mim me seduziu, anos a fio, até que percebi o seu lado excêntrico, quântico, e me fixei no gato que ora está ora não está, como suprema imagem do que afinal todos somos : vivos, mas tão perecíveis como se já a morte fosse já a nossa substância primeira.
A minha Alice surge na ópera, na pintura, nas múltiplas variações. Talvez seja Bob Wilson o meu preferido. Mas Julían usa os múltiplos chapéus com idêntica dignidade, a de ser, ou poder ser e não ser, conforme.
Leio agora a sua PONTE. Que imagem mais complexa, lembra-me a TERCEIRA MARGEM do conto de Guimarães Rosa.
Houve antes a ponte de Goethe, no conto da Serpente Verde, ponte alquímica, unindo as duas margens do rio como um todo concebido para servir os povos de um e outro lado, em comunhão.
Mas não espero nada disso em Julián: espero separação e desordem, pandemónio, como na Babel de Larva, perigo iminente de ruína, como nas almas que se entregam e se perdem, elas próprias, nas confusões do ser.
Ser é penas isso, não é saber.
Está por aqui uma outra noite de São João, parisiense, muito com os tiques da moda dos eventos, onde todos se desejam presentes, se espreitam para novas relações logo desfeitas. Não é uma noite de inspiração shakespearana, rica de magia e ilusão, nem muito menos pessoana, embora Julián me tenha dito outrora que admirava muito a obra de Pessoa. Este seria aqui mal vindo.
Conceptual, pensador filosofante, com ele o texto seria de conter e nunca de contar. E Julián, vertiginoso, quer contar, e no ritmo do que conta arrastar-nos com ele. Assim descobrimos que a alma aqui é a PONT d'ALMA, em Paris, onde os festejos da noite babélica decorrem. Nada de simbolismos, tudo de pós-modernismos e para lá disso, se a correria permitir.
A sua prosa não é de conter, mas como já disse, de contar.
Abrir os grandes portões dos impulsos, das visões, dos desejos. Sendo que o centro é o corpo, não a alma, que anda desviada por aqui. O corpo que se esgota nos arremessos da escrita.
Uma escrita que vou descobrindo em acumular de nomes, de personagens, de situações que se cobrem por vezes de ridículo para quebrar empatias. Não há aqui sentimento e pergunto se pode haver mesmo desejo. Talvez o rápido e fácil, que não prende, embora arraste, mas só isso.
Não se cansa, o autor? Não, porque já vai ele mesmo arrastado na corrente que soltou. Teremos de seguir com ele, sem saber como, nem até onde. É preciso amar esta prosa, é preciso amar tanta cultura e invenção. Julián não quer mudar o mundo, rola com ele e irá se fôr preciso até à exaustão.
Agora mudo o discurso, passo a escrever-te uma carta, que nunca escrevi, a muita, de que me lembro foi ao Henri Michaux, que conheci bem, me ajudou com as pesquisas para a minha tese, que encontrei tantas vezes em Paris, que trouxe a Lisboa para uma exposição na São Mamede, que a pedido dela apresentei a Natália Correia, a diva da revolução portuguesa. Mas em geral sou reservada.
Agora, que a nossa geração se vai devagar, ora uns ora outros, extinguindo, e que tu, um ou dois anos mais novo do que eu também és dessa geração, preciso de notícias, desde o ano em que nos falámos pela última vez. Arredores de Paris: quais e porquê? Estarás de pincel na mão, à frente de uma enorme tela, como as de Robelin, ou Anselm Kiefer no intervalo da escrita e seu tumulto? E estarás bem, pergunta óbvia que agora todos fazem, por bem ou por obrigação? Se escreves estás bem, mas estarás, como eu, diante daquela porta que se encontra ainda não aberta, mas entreaberta, rangendo um pouco, na espera. Dá-me notícias , eu não sou de massacres, mas tenho gosto em que percas uns minutos a ler o que escrevo. Leio menos romances, teriam de ser empolgantes, como este teu de agora e não há, entre nós. Quando falámos a Inglaterra, Londres, era a tua matriz. E continua, embora estejas em França. Porquê França? Um Rabelais, o seu livro cinquième, pouco estudado, porque muito hermético, chamou a tua atenção? É-me difícil situar-te em novas leituras, de Lautréamont já falei e da sua cópula com a tubarão gigante. O elemento Água, diria Bachelard, que conheces. Mas os outros? a Terra certamente, és elemento terra e de terra moldas as tuas personagens, com aquele primordial lodo que no Génesis é descrito e a humanidade nunca mais sacudiu de si. Lês, nos mitos primordiais, como a Jeová foi difícil chegar a um modelo aceitável para Adão, que recusou as primeiras tentativas. Escrevi em As Mulheres de Adão a esse respeito, mas ficou no meu blog de literatura e arte. Como era fácil no outrora dos tempos, conversar, discordar, discutir com as divindades.
E agora tu, com que divindades da palavra te envolveste neste últimos anos? Menos com Diónisos ou Baco noutra versão, a romana, que não desejava a cidade ordenada e se viu enfiado numa cavalariça (encenação em Berlin, de Peter Stein) o deus das orgias, o das bacanais que na dança frenética das Bacantes despedeçariam o rei ordenador.
A escrita como desordem, a escrita como dança e delírio das palavras, não cabendo nas tábuas de Moisés, nem noutras que se pudessem conceber, nesta definição de pós-modernismo que tudo aceita, tudo relativiza, e embora seduzindo é de pouca duração. Em breve sairemos da Waste Land para outras paragens.
Pensando em Portugal só me lembro de Agustina, seus Ternos Guerreiros ou Os Incuráveis, para teu contraponto de escrita de arrastão. Ou os surrealistas, mas da tua França de agora já tens que chegue, não seriam novidade. Do Brasil? Ah, tanta produção. A última obra de que me ocupei foi a Hora da Estrela, de Clarice Lispector. Foi mesmo a sua última, morreu pouco depois.
Estará esta tua Ponte de Alma, perto da sua Hora da Estrela? Ou é de novo um recomeço, um arremesso, que bate contra nós, a sociedade, com a ironia de um Proust ou de um Wilde e seguirá em frente, num comboio japonês de alta velocidade que leva consigo todos os Eus possíveis?
Eis-me no capítulo VII, OUTRA VIDA.
Nem de propósito...pois de outra vida se trata, pelos menos para mim há já algum tempo e para ti, que passeaste por uma Londres amada, a seguir à tua Galiza onde nasceste e por isso me lês em português e a Madrid, a respiração da criatividade. Descobriste a França da pintura, da literatura surreal, das brincadeiras dos OULIPO, e chegas a uma das minhas pátrias muito amadas, a Alemanha! É mesmo outra vida, a grande cultura, teatral, musical, filosófica, literária...estiveste convidado como só eles sabem convidar, em residência. Aí me reencontro agora, de longe, no que dizes. Eu fui muitas vezes à Bienal de Bona, onde confluíam os encenadores do mundo, tantas outras à Philarmonie, de som único, inesquecível, ao teatro e da ópera, já depois de Berlin livre, do mais experimental ao mais clássico em tudo me reencontrando como agora dizes que te encontras. Livre e realizado, escrevendo sem pressão.
Diriges-te ao teu caro Mestre, de Yoga, como eu outrora a Michaux e a Perrot, meus mestres de alquimia. Anos de aprendizagem, como no Wilhelm Meister...e segues com a tua narrativa mais tranquila, ainda é rio, mas corre mais suave, não te afogas nem afogas os outros. É o efeito da música. Nunca te veria, nem tu (a coisa do Yoga foi mais piada do que outra coisa, tu serias mais do Kamasutra, isso sim, mas não vamos por aí) procuras no desfilar de nomes as reacções de quem reconhece, dizes Munch, eu vejo o Grito, dizes Mãe Coragem e eu vejo todo o Brecht que traduzi, passas para a discussão do que é ou não um género literário, os alemães adoram discussões teóricas, tu nem tanto, e embora não refiras o movimento estás com os Internacionais Sensacionistas, os fundadores do grupo Cobra, e outros. Uma arte de expressão social, universal, que toque em todos, e traga uma nova Vida. Com que então a Alemanha, a sedução musical de Berlin, tão amada!
Recordo Celan, a quem perguntaram um dia por que razão escrevia na língua do inimigo. Não há inimizade nas línguas, todas as palavras são puras e nuas à nascença, nós é que depois as vestimos de negro, ou de ouro. E de chamas douradas falará ainda, mais adiante, o nosso Julián.
Mas fico por aqui.
2 comments:
Adorei o texto. Emocionante!
Agora é ler o livro...
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