Wednesday, September 20, 2023

CLARICE NA HORA DA ESTRELA

 CLARICE NA HORA DA ESTRELA

Aqui vai o começo de uma nova mini-novela, a contraposição de dois pensamentos que se entendem, duas mulheres que pensando o mesmo não têm o mesmo destino, uma Clarice Lispector que morre cedo, em 1975, ano em que sai esta sua última experiência criativa, e outra, que sou eu, a caminho dos 84 anos e não procuro aqui rever a sua vida, nem a minha, mas antes pensar com ela e sobre ela, na busca dessa hora da estrela que nem uma nem outra soubemos definir, mas procurámos, cada uma no seu caminho, feito de uma vida vivida entre poeira de estrelas e o simples pó da terra a que se regressa um dia.  

Descobri a obra de Clarice Lispector e senti logo uma afinidade de pensamento, rigor de escrita, depurada, como eu gostava de ler e me entusiasmava, página a página que ia abrindo. Fui sempre lendo. Mas confesso que não gostei do seu último, a Paixão segundo G.H. por nada mais do que ter entrado uma barata no seu livro. Odeio baratas, é mais forte do que eu...

Estamos em fim de Julho, inscrevi-me num curso sobre a cultura aramaica, na tradução mais antiga de Bíblia. É on line, hoje é tudo on line, e será a maneira de me manter ocupada quando toda a família estará fora, em férias. Ficarei menos sozinha, relendo o Génesis, descobrindo o simbolismo que tantas vezes procurei.

 

Hoje acordei com um novo pensamento: por que razão me afastei da prosa, da novela, ou do romance, sentindo-me incapaz de desenvolver uma circunstância, um personagem e a partir daí uma narrativa que me vá conduzindo?

Farei esse esforço, não sei bem como. Nem será com ideia de publicar, será para afinar uma qualidade que perdi, com o tempo.

A minha vida é agora muito diferente, porque desde que tive as crises de coração e a operação, me desequilibro. Preciso sempre de alguém, para me acompanhar. É uma enorme limitação, é essa dependência, a que não estava habituada, que me deprime.

Mas vou fazer esse esforço.

 

Havia naquela escrita uma compulsão, uma intensidade, e era isso que me atraía tanto.

Hoje não tenho, e daí a dificuldade de começar.

Começar, simplesmente. Como é difícil o princípio, seja da paisagem como dizia o Pedro Chorão nos seus quadros, seja como eu agora na prosa de ficção.

Parto sempre de algo bem real, ou melhor, partia, e esse real é o que me falta agora. Porque o real é o que vejo nas televisões, as guerras brutais, as políticas egoístas, as vaidades do mundo, uma sociedade esvaziada de valores, um tremendo abandono da arte e do conhecimento. Nem sempre, mas o pouco que vejo tira-me a vontade de fazer seja o que fôr. Um mundo sem salvação, a humanidade decadente não merece.

Penso então em Clarice: a mulher que tinha dentro de si um grito, e tinha de o gritar.

Eu o que tenho?

Um enorme princípio de aborrecimento, que filhos e netos às vezes interrompem, e nesses momentos sinto-me mais viva.

Mas a seguir, mais nada.


( a seguir, o livro, nas ed.Glaciar em breve).


 

 

Thursday, September 14, 2023

Nuno Félix da Costa, Breve Manual para ser Humano, ed. Cepe, 2023

Nuno Félix da Costa, depois da prosa agora de novo a poesia.

O que há de tão especial na sua escrita, que se desdobra em géneros tão diferentes (mas na verdade nunca se opondo, antes se completando) como o ensaio, científico ou filosofante e literário, a prosa de ficção entre o real e o imaginário, a poesia que inquieta no decurso em que a palavra se busca e, mais difícil, nos busca, a nós que lemos, e não sabemos, caminhando pela mão dos seus versos, livres ou libertários (deslizando ao estilo do abjectionismo, que também na pintura se poderia encontrar) e que por vezes abandonam a primeira das linhas indicadas, seguindo outras, mais leves ou mais pesadas, de um modo que é, em simultâneo, convidativo (à reflexão) e displicente (como quem diz, é só para quem percebe e deste modo se liberta e encontra).

Há um ponto de encontro, o da atracção que exercem, contra tudo e contra todos, se assim fôr necessário. É a condição que ser humano impõe, descobrimos, enquanto lendo vamos chegando ao fim. Do livro e em parte de nós mesmos.

Será que atrai precisamente porque não se percebe? Porque, herdeiro pósmoderno do surrealismo, deixa a mão correr pelas associações livres do seu imaginário, sem receio de exibir a cultura que tem, e que no fundo, desprezando, preza acima de tudo? É sem dúvida um poeta que transporta uma cultura assimilada, de que se nutre como alimento base para um pensamento diferente. Cultiva a diferença como planta rara que é e surpreende. Por isso prende? Entre os versos a flôr azul de um nostálgico Novalis? A flôr que nunca se colhe, preferindo ficar na contemplação de uma raiz oculta e que vibrando algures, de tão grande e tão funda, mantém em suspenso o mistério das vidas no universo.

Porque Nuno Félix aborda várias vidas em cada um dos poemas que se dispõe (ou é forçado?) a escrever. A sua escrita é a vida, e na escrita é a poesia que nos fala mais alto. Não transporta imposições, mas emoções que levem ao pensamento do que se é, mudando em cada momento. Nada é igual, nem o que nasce do silêncio contido, nem o que nasce do discurso escolhido. Cada verso uma escolha, cada poema um destino escondido. 

Uma hora de estrela, no que diria Clarice Lispector, cuja voz nasceu sem o toque da infância, mas logo amadurecida.  Um olhar renovado e que renova a vida.

Leio estes poemas para ser Humano e embora não saiba qual a definição de humano que seria adequada, logo sinto que é a mim que se dirigem, são a expressão da condição humana na sua mais nua realidade, do quotidiano banal ao sonho mais sonhado.

É importante o dizer, o bater do seu ritmo quando lemos os versos em voz alta. Por ali corre sangue. 

O poema que Nuno escolheu para a contracapa veio ao meu encontro como se fosse escrito por mim, ou para mim. Agora demoro em especial em dois momentos: demorar a levantar, prolongar a abertura da janela (...) os olhos que pareciam colados ao escuro, por instantes são sonhos, espelhos densos que sabemos se fragmentarão e ao sairem da boca criam as órbitas dos astros, o brilho das estrelas e - finalmente, o resto do cosmos.

Demorar, prolongar, criar. Um exercício de paciência, um saber que a espera contida recompensa, embora não resolva o essencial mistério que só o cosmos sabe e guarda. 

Dirão, e não se alude aqui às outras qualidades deste médico que é  Professor, Poeta, Fotógrafo, Pintor, e filosofa como no tempo dos gregos sobre a existência, o ser, o ser humano na sua condição? Ou simplesmente a descoberta da consciência do que se é, na nua simplicidade da vida e da morte, ambas com destino marcado que ele, na sua sabedoria, melhor do que ninguém poderia antecipar? Não lhe faz falta, nem a nós, o excesso da consciência que se torna pesada e impede a libertação da voz. 

Na qualidade de médico conhece bem os limtes do corpo, a matéria mesma de que se ocupa noutras horas, sendo que o corpo é albergue da alma e desta também é preciso cuidar. Na qualidade de poeta conhece bem a liberdade imprescindível da voz, a que brilha com um brilho de estrela, mas que ainda que seja luz é no corpo que se materializa. Corpo e alma eis o que podemos inferir da condição humana. É pouco? É a realidade possível, frágil e com grande necessidade de compaixão e amor, pois no Éden a esse corpo e alma a eternidade nunca foi concedida. Uma parcela apenas, uma pequena por vezes tão inacessível, parcela de conhecimento. É o que o autor aqui nos oferece, em páginas múltiplas, variadas, de entrega generosa.