Poemas de um grande poeta que olha em seu redor, enquanto também se rodeia de silêncio, que não lhe pesa, antes o deseja, quando escreve.
A sua mão corre no papel, o primeiro verso quase que arrasta os outros, que constrói ou desconstrói, com o bater de um mesmo ritmo, podia ser de Camões ou de Pessoa, ou de Mário de Andrade, o Modernista.
A narrativa poética é aqui tão natural que fulgura, apesar de algum hermetismo no poema que, apesar de tudo, por ser poema, permanece fechado em si mesmo, exigindo releitura. E voltamos a ler, decifrando o que se esconde no intervalo das palavras, aí reside o sentido do verso, a sua necessidade.
Em Tercetos Queimados, que também li, e foram a minha primeira revelação da sua obra (terei de ler o blog mais uma vez) não referi o que agora ma parece tão óbvio, pelo contraponto com o GELO. No primeiro a presença subtil do elemento Fogo, e neste agora a presença da Água. Pois este gelo é água, um dos quatro elementos da alquimia transformadora.
No poema da p.19, Gelo -1, que indica que deve ser lido junto com outro de Mário de Andrade, eis o que escreve:
Por isso descremos dos gestos profiláticos,
por isso sempre que possível o compasso
de ombros e pernas fora da máquina-mundo,
e a sede do nada se nos alcança o êxtase
da carne ou do verbo. Um corpo é sempre
um corpo estranho; um ano, vinte e tantos
anos. Dentro de mim um cubo muito se perde mas
daqui indago a emaranhada forma humana
corrupta da vida que muge e se aplaude.
Ossos rijos, por enquanto, sangue em temperaturas
voláteis. Algo o detém como se esperassem.
Exegetas pouco pouco alcançam a miserabilíssima arte
nossa ao mesmo tempo em que se rompem
e se dobram fronteiras e colunas (vertebrais).
Adiante, em Gelo II, p.33, o contraponto surge mais claro, nestes versos:
...
Num pico
de neve escarpas de medo
e coragem ardendo.
As mãos frias dos mortos
têm esse fogo por dentro.
E segue num Gelo III, p.37 a experiência que um " grito primevo" num sonho lhe permite ouvir, enquanto"tanta coisa se move, e a vida desaba". Por isso o poema, este, dialoga com outros, como no poema que deve ser lido com e, como ele diz, "não deságua, nem se move nem se abre". Tem de ser o leitor a abrir.
Sérgio dialoga, nos seus poemas, com outros que são poetas, como ele. Num dos seguintes, No Teu Rosto, a experiência provém de Gastão Cruz, O Verão Novo, na p.63:
E termina: "o gesto busca um novo sopro / uma sílaba ao menos - agora / que já somos outros". A experiência que define como " de tempo e espaço, tempo e modo" é a experiência da cidade e de um corpo que mudam. Mudaram e são outros, e talvez essa mudança lhes permita o verso.
E de novo o Fogo marca a sua presença, p.73, em O Cacto:
O poema é o próprio fogo, imaterial
em sua imanência mas fogo
...fecho os olhos, apenas fecho
os olhos para que o poema nasça.
No poema AINDA, (saberia ele que é o título de um meu próximo livro?, ou é uma destas sincronias, como dizia Jung? ) que releio porque ali surge a pergunta de "quem sou", igual em todos os que escrevem, para saber quem são, e ainda que não haja resposta, pois só Deus disse eu sou o que sou (ou aquele que sou) - não disse sou quem sou, nem sou aquele que é, a questão do ser ficou em suspenso, desde os primeiros tempos, e até hoje.
Sérgio escreve no poema que tudo foi mudando, e até as frases já não são inteiras, pobres versos fracturados, incompletos, em busca do que seriam, se o ser afinal fosse outro e não o que é. Mas conclui, Ainda assim escrevo, e é nesta palavra que desejo ficar, pois vem ter comigo assim que a leio, eu que me julgava parada, não apenas interrompida por coisas que são mais do que eu, e de repente me descubro Ainda a escrever .
Neste Gelo de Sérgio Nazar David se regressa ao corpo, e de forma muito especial à Vida.