Sunday, June 26, 2022

Jorge Reis-Sá, Instituto de Antropologia, ed. Glaciar, 2022

Não se espera pelo título que seja um livro de poesia, ou prosa poética, conforme cada caso, mas essa é a surpresa do livro que o autor nos dá a ler. Quem tenha o hábito de pegar num livro, abrir, folhear, ler um pouco, logo dá pelo engano. Ali está pensamento poético, filosofia, mais do que a tal antropologia do título, e está feito o convite: ler. E disfrutar da frequente ironia subjacente ao que se diz. Por exemplo, em: A SALVAÇÃO DO MUNDO "Não existe num verso nada de útil à salvação do mundo".  Então por que nos atrai e nos seduz a poesia? Quem escreve, movido por forte impulso, ou quem lê, movido por impulso idêntico? O leitor de poesia é viciado nela, é o seu segundo escritor, repensa o que foi pensado. Como neste primeiro verso, teremos de entender que não se trata de salvar o mundo, num poema, mas de salvar-se a si próprio, nessa entrega ao verso que o toma e que o faz prosseguir. Escreve, neste poema, para falar da casa e do pai que não pode salvar, e casa e pai são metáforas do mundo, do nosso primeiro mundo, a nossa primeira pele, que envolve e protege.Termina dizendo que todos os versos são possíveis, e é verdade: na Palavra, no Verbo, tudo estará contido, mas nem tudo será salvo. Há memórias de infância, nestes poemas, enterros de aldeia, velhos que jogam à malha, como em MELANCOLIA, onde nem falta uma avó, chamando pelos netos que brincam: estas infâncias não são perdidas, como tantas outras, são outro nome para FELICIDADE.Também Pessoa, o nosso eterno guia, é na infância que se encontra feliz. São vários os poemas de evocação e saudade do pai, não tenhamos receio da palavra, também muito nossa, a saudade, e a figura do pai que se perdeu adquire peso e beleza especial, assim recordado, por um cachecol, em O CACHECOL NOS MUROS DA FOZ, um boné azul, uns óculos, um barco encalhado na areia. Passeio com mãe, pai, junto à estrada - quando o caminho é aberto, e de novo feliz, como tudo o que temos adiante e ainda não se fechou. Datado de 2002 temos, para o Guilherme, o POEMA AO FILHO. Escrito em prosa simples, directa, que brota da emoção de ser pai, e não da vontade de ser poeta. "Nós éramos um só". E nesta fusão de entrega e amor vibra a Ordem do universo: "O céu no seu lugar devido, a terra no seu lugar devido, e nós, nós os dois no lugar que devemos para sempre um ao outro, um no outro,um para o outro, como duas peças de um jogo universal." Shakespeare não diria melhor, pois é o amor que rege a ordem universal, no céu e na terra. Na página 37 teremos a sua DEFINIÇÃO DO AMOR, retomando a figura do pai, tão amado e tão evocado, que o poeta afirma que lhe gastou o significado. Tem a noção, que nos transmite, que repetir não chega, desgasta, esgota... Diria com Hoelderlin que "somos um sinal que perdeu o sentido..." mas não, embora se auto-flagele referindo maus poemas, maus romances, leva a memória mais longe, também como faz Hoelderlin, no hino que citei, Mnemosyne (Memória). Jorge "alarga-lhe o significado", ao repetir essa palavra primordial de pai, definindo o amor, quando a dizia, o princípio da vida. Mas continuemos.... E volta-se ao conceito-base de poesia: TODO O POEMA. Todo o poema é circunstância de um tempo e de um lugar. Todo o poema é memória dessa circunstância.Todo o poema é memória de um tempo e de um lugar. Todo o poema é memória (p.43). Quem poderia contrariar uma evidência assim vivida? Ninguém, pois da memória mais recente ou mais antiga, mais arcaica e escondida provém o que somos, o que seremos ainda se chegarmos a ser o tal sentido que se tinha perdido, no sinal, nos sinais dos gestos primitivos. Anda por aqui Heidegger, com o Ser e o Tempo. Só que neste poeta o ser se materializou na figura do pai, por exemplo, e o tempo nos vários episódios da vida e da infância. Sim o título do livro tem a sua razão, não é só ironia, fixa o antropos, a humana existência de que os poemas vão dando conta, para que não se esqueça.

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