Tenho comigo há já algum tempo este livro de poesia que recebeu o prémio literário Cidade de Almada em 2020. Mas não é pelo prémio que o refiro aqui. É pelo gosto do autor, nascido em 1990, e pelo seu prazer de escrever poesia. Espero que tenha lido a carta de Rilke a um jovem poeta, em que se diz que se não fôr uma questão de sobrevivência não se escreva poesia. Para o poeta dos Anjos terríveis, terrível seria uma escrita forçada que ofenderia as almas mais sensíveis, se não as da terra, certamente as do céu. Samuel arrisca. E à medida que vou lendo, sendo o diálogo poético directo e simples, concluo que Rilke gostaria de ler, nestes novos tempos, estas outras vozes, onde não estão os Anjos que matam, mas o prazer de uma natureza que se ama.
No primeiro poema, FOZ, fala da condição dos rios, do gelo das montanhas, das florestas, da areia do tempo, cujos grãos o livro (ou a vida?) irão contar. E termina sem esconder um oculto desejo de sublimação, quase rilkeano sem o ser: " Sou líquido com asas a crescer no horizonte". Fundiu-se no mundo natural para adquirir uma nova consciência de ser. E sim, isto é poesia, num decurso que podia ser dos riachos que Ricardo Reis contempla, enquanto não fala de amor e nem se compromete.
No poema TRAVESSIA há de novo um eco evocador de um mítico passado, o de Orfeu, (de novo Rilke, que escreveu o belo poema Orfeu e Eurídice) que atravessou as trevas dos mortos para chegar ao Hades, com a evocação de Caronte, o eterno barqueiro. O poeta exclama quero ver, quero ver! Mas apela a quem o irá acompanhar, esse outro de si mesmo, e que ele sabe que reserva o mistério das viagens do ser.
Há nestes poemas uma presença subliminal arcaica, que nos faz pensar e ler de novo. Que mito, que arquétipo, que realidade de si mesmo, na busca de um eu oculto, ali poderemos encontrar? Como neste que transcrevo:
"Diante da porta / vislumbro o teu rosto / e a escuridão. Pedes-me os passos / do labirinto / e a vida do monstro./ Não tenho fio para voltar até ti." p.8.
O Minotauro, no labirinto? O fio de Ariadne, que salvaria? Ficamos com a imagem da porta, que continua fechada: para o amor ? Para a vida que se desejaria, tendo o fio do destino na mão? É bom que não se dê resposta. Porque no poema seguinte, dedicado à Maria João Cantinho, há uma conclusão importante, para os caminheiros da poesia centrada numa busca, embora não declarada do sentido do eu: " Quem rasteja sobre a terra / não se curva na direcção das estrelas".
É adiante, na página 10, que o mito oculto atrás se revela plenamente:
MINOTAURO
O monstro está aqui, / à minha frente / feito de medo e / abandono.
"É apenas um homem em sofrimento".
Samuel tem já vasta obra, publicada e reconhecida, e o misticismo que parte destes seus poemas revela, ou oculta, ensina-nos o que Rilke pedia: que se escreva por necessidade profunda de um dizer que a vida, o sucesso, o quotidiano, enfim, não banalizou.
Em A FALA DAS BRUXAS, p.38, que não vou colocar aqui, peço aos leitores que comprem e leiam o livro, o entendam por si próprios, foi com a palavra e os poemas, diz o poeta, que aprendeu a fala das bruxas."E nunca mais vivi num mundo sem magia". Antes já tinha aprendido os pormenores da vida: no Lar, nas sementes que só no calor podem crescer, como o desejo nas nascentes, em resumo, os detalhes da vida que se vive. Mas só a magia da palavra, o ritmo que é o seu bater do coração, a imagem que fala o seu dizer (falar é fácil, dizer é outra coisa) lhe dão acesso à magia que vinha procurando pelo seu caminhar entre mitos e versos de uns e de outros. Escrevi há uns anos POEMAS COM ENDEREÇO. Revejo-me por vezes neste livro, na intenção da sua escrita.
Como na alquimia as palavras antigas que Samuel evoca são e serão sempre terra fogo ar água. Sou fogo e ar, exclama Cleópatra na peça de Shakespeare, pouco antes de morrer. Os elemento subtis, que se libertam do peso mais denso da terra e da água. Destes também o nosso poeta se foi devagar libertando. Fiquemos pois com a alquimia do seu verso, aqui oferecido.