Longo texto de António Lobo Antunes, no Público, sobre a família. Descendem de gente pobre de outrora, uma ruralidade que depressa se transformou em nobreza, e alta e distinguida sociedade, com distinções, títulos, pergaminhos...talvez devesse ter começado logo por aí, pois quem o conhece sabe que ele tem clara consciência do que é, e de quem é, bem nascido, bem criado, bem sucedido na profissão, médico, e na sua arte da escrita, a que se dedicou depressa a tempo inteiro. Aludo a uma sua entrevista, em que para falar do livro, fala de si.
Sabemos que está ou esteve doente, terá vencido três
cancros, como diz na entrevista à revista Sábado, mas antes dele morreu o seu
irmão João, médico também, e ele sente a sua falta, pois eram mais do que
irmãos, amigos.
O texto que leio hoje é como um longo apelo a ser amado
pelos que partiram, e ali evoca: a avó querida, era assim que lhe chamavam, na
casa de Benfica, muitas vezes referida, a família e talvez acima dos outros
ainda o pai. Seria ele o preferido do pai? No meio de muitos irmãos? Deseja que
o pai espere por ele, ali onde se encontre, algures numa esfera ou numa poeira
do céu? Ou talvez o irmão, João?
Texto de apelo, de saudade de um amor que terá sido
partilhado? Ele foi amado, mas terá amado de volta?E é dum imenso amor que agora tem saudade? Um amor a que
deseja entregar-se, agora, sendo o seu corpo doente uma última dádiva?
O que somos afinal todos nós, nessa hora da partida, que tem
de ser bem aceite, com dignidade discreta, mesmo quando a vida foi cheia de
alguns tropeções indiscretos?
Morrer, mas com saudade já de ter morrido. Melancolia
outonal.
Não é Meia Noite quem
quer.
Até na morte de cada um haverá diferenças.
Lobo Antunes não diz o
que sente.
Escreve sobre o que
diz que sente...
“Muette est la pluie fine / Dans un sentier étroit / J’écris
ma confidence / N’est pas minuit qui veut / L’écho est mon voisin / La brume
est ma suivante”.
(Muda é a chuva fina /
Num estreito caminho / Escrevo a minha confidência / Não é Meia-Noite quem quer
/ O eco é meu vizinho / A bruma a minha serva).
Porque tudo é difícil,
quando se julga que já tudo foi dito, e o impulso leva a que se diga mais, e
muito mais ainda. Mas como, se na garganta apertada já escorrem tantas lágrimas,
dos que partiram e dos que ficaram. A escrita é então um
lamento que permanece, que se fecha em si mesmo, até que a palavra escorre,
muda, no meio da “chuva fina”.
René Char adere ao
movimento surrealista e participa em inúmeras actividades, que são apontadas na
cronologia da edição definitiva da sua obra pela Pléiade, onde Lobo Antunes também está já editado, depois de Fernando Pessoa.
Com Breton, Éluard,
Max Ernst, Aragon, outros (também André Verdet, pintor poeta debruçado nas
estrelas e no pulsar do cosmos) René Char lê os grandes: “lecture des
présocratiques, Rimbaud, Lautréamont, et des grands alchimistes” ( em 1930).
Em 1959 é traduzido para alemão, por Celan, com prefácio de
Albert Camus. E a sua obra continua, com marcas que por vezes a tornam mais
difícil de entender, pois temos que descobrir o movimento que a levou até lá, esse espaço de
poesia que se pulveriza pelo caminho, formando no fim o Grande, o Eterno poema
de que se fala sempre (Le Poème
pulvérisé):
“La poésie est de
toutes les eaux claires celle qui s’attarde le moins aux reflets de ses ponts.
Poésie, la vie future
à l’intérieur de l’homme requalifié” (XXVI).
Ou ainda:
“Une rose pour qu’il
pleuve. Au terme d’innombrables annés, c’est ton souhait” (XXVII).
Rosa alquímica, na
chuva desejada. Tantas rosas mais tarde, em Char, como em Celan, tanto corpo
lavado nas trincheiras da guerra, nos campos do holocausto, até que o poeta
escreve L’ÂGE DE ROSEAU, A Idade de Bambú, e a noite surge, treva de um mundo
que ele interpela:
“Monde las de mes mystères, dans la chambre d’un visage, ma nuit est-
-elle prévue?
Cette terre pour navire, dominée par le cancer,
démembrée par la torture, cette offense va céder.
Monde enfant des genoux d’homme, chapelet de
cicatrices, avec tant d’êtres probables, je n’ai pas été capable de faire ce
monde impossible. Que puis-je réclamer ! “
Falemos então do romance de Lobo Antunes, Não é Meia-Noite Quem Quer.
É de 2012, podia, já que se tinha inspirado
num verso de René Char, ser talvez mais cuidadoso com a narrativa fragmentada,
exclamativa, interrompida por atravessamentos entre o modo
surrealista (tentado) e o realista (em excesso, demasiado descritivo nos espaços, por vezes )... com sonhos que vai buscar ou aos que
teve, ou aos que anotou, dos seus pacientes. Recordo que o autor é médico
psiquiatra, com uma longa carreira, mas sobretudo com grande preparação. Tem
olhar meticuloso, como se impõe, ouvido atento às sonoridades. Tanto do que se
diz, se reflecte no som, no tom, e mesmo nas formas de respiração e de
silêncio. Ritmos, enfim. É melindroso lidar com sonhos, nossos ou alheios. Em cada sonho um pulsar que lhe é próprio.
Se é só para aumentar uma densidade de escrita que não torna a leitura nem mais
fácil (mas não tem de ser fácil, é verdade) nem mais atractiva (isso teria de
ser, por causa de quem lhe comprou o livro, e ainda quem para a
edição o reviu, lhe fez um editing tão cuidadoso que a indicação do desejo do
autor é um ne varietur...tal como
para todos os outros da edição de Obra Completa), se foi só para isso é pena, pelo que se espera de um autor com Obra já tão vasta. Imagino como seria difícil,em
inglês, ou mesmo em alemão, a língua do rigor e da profundidade, seguir esta Meia Noite em qualquer dos seus
parágrafos, repletos de frases soltas, chamamentos sem consequência, repetição
de letreiros de algum espaço de infância... alusões a irmãos (perdidos ou
achados, mas sem o cuidado de lhes devolver uma genuína existência
substanciada), começando, de modo quase provocatório, com uma primeira voz, a da
Menina.
Menina. Evoca talvez Bernardim Ribeiro, a sua Menina e Moça? Num antiga entrevista, a propósito do que um livro é ou não é, comenta para o entrevistador: gosto muito de ler Dom Francisco Manuel de Melo, é ele que diz que um livro há-de ser do que vai escrito nele. E assim é, mas foi Bernardim Ribeiro quem escreveu.
Logo abaixo então um parágrafo que deveria de facto introduzir a
narrativa. Temos curiosidade, o que se vai seguir? Quem é ou o que é esta
Menina com que se abre a leitura?
Uma menina montada num
quadro de bicicleta que a magoa, adivinha-se que é de rapaz, mas o que deseja o
autor dar a entender, com a repetição de que magoa? Insinuação sexual? (Ah
Freud, que mal ainda fazes, por vezes! ) e para onde foram eles, com o autor,
pedalando, pela vida fora?
A propositadamente acelerada prosa, (marca de estilo? mas pelo
esforço que exige o leitor sofre com isso, o seu leitor normal ) tampouco
veio contribuir para que os fiéis seguidores, ou estudiosos, desta Meia Noite que ele quis ser, pudessem
encontrar nela, algures, ainda que semi-oculto, um ponto fulcral, um centro luminoso,
na sua imensa criação...um livro por ano, fielmente, sem parar...até este que
nos é lançado agora, por via de um René Char, esse genial criador, desafiante,
a que nem a perseguição nazi veio calar. A sua voz era ampla, por isso o amamos
tanto.
Podemos, de um poema
ou um verso, fazer um longo romance? De extraviado pensamento? Podemos, mas não
sei se será este o caso. Outros dirão. Aqui o belo, o inspirado e aberto
pensamento que nos faz voar, ficou-se em parte pelo título. Eu pelo menos
queria mais. Quem sabe se é exagero meu? Queria mais...
A escrita de torrente,
de surrealismo iniciático (quase) e sempre interrompida não atrai como se espera, para um melhor desejo de leitura. Não nos prende logo de início ( e todos os
inícios são tão importantes...) pelo esforço a que obriga, sem resultado que
intrigue, para continuação. E quanto a inovar, numa última página de brincadeira com uma frase roubada a
um jogo de infância, já atrás repetida...”a tia atou”, fecha o livro, na
intenção do autor, mas se lá não estivesse, como seria a reacção do leitor
? Sentiria a sua falta? Não há ironia bastante nesta obra, e é pena,
pois os grandes abordam com ironia qualquer assunto, especialmente os mais
sérios (penso em Boris Vian, L Écume des Jours, enquanto a sua mulher na vida vai morrendo de cancro...) Os grandes conhecem-se a si mesmos e aos outros, distanciam-se, guardam
de reserva a enorme gargalhada de Deus sobre a sua criação, a pobre espécie
humana, mesmo na figuração de um narrador (não digo escritor, não confundo as
espécies), ou de uma narradora, apenas semi-biografada. Mas já lá vou, o
assunto apesar de tudo é mais complexo. Porque nele o que sinto, e peço
desculpa de antemão por esta opinião tão subjectiva, é que se tratou aqui de um
permanente exercício (não desafio, mas exercício) de interrupção que interrogava,
mas a que não queria, ainda que pudesse, responder. O autor pode dizer-me não tenho que responder, leiam, outros responderão por mim, se quiserem. Tem razão o post-modernismo tudo permite. Mas não é post moderno este seu romance, feito de tanta evocação, associação livre, por onde as palavras correm.
Na penúltima página
lemos um sonho em que estão presentes pai, mãe, manos, ele, ela, o que se
sonhou – ou de todos eles por ali, a ser sonhados. Pois como Lobo Antunes diz, a ficção não é o real é um jogo de espelhos.
Não somos todos nós o
sonho( ou pesadelo) de algum alguém
que nos sonha e nos deixa em suspenso, entregues a um destino fatal? Porque
esse é o nosso destino, ser fatal, por ser mortal.
O fim na última
página, fazendo o cap. 10, com a tia que
atou, poderia ter servido para devolver à imaginação a possibilidade de atar reunindo por fim as vozes soltas.
Contudo pouco importa, pois mais preciso teria sido desatar, abrir, em vez de
fechar, soltar a torrente oculta da voz de uma Menina que finalmente iria
surpreender, irromper, como em Joyce, no Monólogo de Molly Bloom, gritando o
todo que lhe ia na alma, e mais ainda no corpo, até aí submerso num fundo de
treva negra, o da voz silenciada. Até
pelo facto de ser feminina a voz da narradora, ser mulher, mas uma mulher de voz
enfraquecendo.
Não é fácil ser poeta,
e a prova está à vista: poetar na prosa pode tornar-se diminuição de
algum prazer de leitura). Se nem todos são René Char, tampouco são Henri Michaux,
aquele que faz remuer la nuit...(sugiro
que se leia Darkness Moves, grande
antologia de poemas de 1927-1984, em escolha e tradução magnífica de David
Ball).
Esperava-se talvez que
eu fizesse um resumo, mais do que comentário à opção da escrita, ou da
narrativa, oscilando como barcaça no mar.
Mas não faço resumos, deixo o que me ocorre, também a mim, em certos momentos
da leitura. Leio para pensar.
Mas aqui (ah, a
maldita cultura, sempre a maldita cultura) como não me lembrar da obra-prima,
fundadora do Modernismo, que foi no século XX, Virginia Woolf, com WAVES, de 1931? Aqui sim nos embalam,
num ondular de permanente inovação, as 6
Vozes dos que falam e nós seguimos, também por vezes com dificuldade. Ou não
lembrar um ORLANDO, de 1928,
desdobrando-se andrógino, de forma genial. Um clássico, de sempre.
Voltando ao nosso Meia–Noite que reconheço, ao tornar-se
misterioso, que merece mais atenção: como sempre são
importantes, num romance, o princípio e o fim. Ocupei-me de Proust, num dos
meus livros, a propósito de como ele inicia a sua longa busca do Tempo Perdido.
Longtemps je me suis couché de bonheur.
Durante muito tempo fui cedo para a cama. E procurei variantes que pudessem ser
melhores para a tradução.
Aqui neste caso, de
Lobo Antunes, é a Menina que me faz parar:
Menina.
E ainda a Meia-Noite, com um jogo de sombras
implícito, ou explícito, conforme. Lobo Antunes não se importa com o seguimento
lógico dos acontecimentos, das referências, das personagens com que nos vai
confrontando. Ou com o rasgão que abre nalguma paisagem do seu antigamente.
Das imagens saliento o
mar ( Quand Freud voit la mer...), a noite
em que o mar interpelava a narradora, a Menina,
e aguardo, com a continuação da leitura, a menina a ser levada por alguém
(um irmão) de bicicleta, e logo de seguida o pai, a mãe, uma avó e o anúncio de que haveria um
casamento, o da narradora (Menina).
Volto a esta Menina, e
ocorre-me, do LIVRO VERMELHO de Jung,o diálogo com a sua Anima, a Sombra, e de
como ela adquire corpo, forma, voz. Interpela-o, desafia-o, obriga-o a olhar
para o que fora a sua vida, a relação com o sucesso profissional, a relação com
o corpo e alma dos outros, seus colaboradores, amigos, pacientes. Há um tom de
censura, e Jung, humilde, reconhece a sua imperfeição, como ser humano que é,
sujeito aos condicionamentos da vida. Dá ao sonho o lugar que é devido. Deixa
que o inconsciente fale, através destas interpelações. Aqui se reconhece o
Feminino nele, e o que me faz falta é que não se reconheça em Lobo Antunes o
Feminino nele, apesar da narradora que escolhe para este seu problemático
romance.
O que significa que é
forte nele a consciência de si, como autor, como homem, e que é racionalizada
toda a expressão que se fragmenta como se de alguma esfera onírica nascesse,
sem que no entanto seja o caso. Ou não pareça que é.
Neste romance tudo é
exercício, mais do que voluntário, voluntarista, nada deixado ao acaso do que
poderia ser uma entrega à verdadeira noite,
à verdadeira Sombra, ao mergulho no mar de um inconsciente que afunda.
Dito isto: ler é bom,
ler faz bem, desafia, mesmo quando contraria, pois só quem nos contraria nos empurra
para um pouco mais longe.
Lobo Antunes fala e
escreve como se fosse o centro do mundo e ninguém é, na minha opinião, o centro
do mundo. Julgar-se isso é aberrante? Meu defeito.
Como lembra Nicolau de
Cusa, só Deus é o ponto que está em toda a circunferência sendo em simultâneo o
seu centro. Lobo Antunes terá lido Nicolau de Cusa ? Leu de certeza, porque é
culto.