Tuesday, April 26, 2016

O quotidiano a secar em verso

Ora bem, estava eu a ler ( a continuar) Orhan Pamuk, pois nunca o que se diga dele fica dito para sempre, e eu ainda disse pouco, quando um amigo me envia um livro de uma sua autora e pede uma opinião.
Peguei no livro li, terei de reler, mas logo à partida se foi formando em mim não uma opinião, mas uma reacção àquela escrita, de uma jovem, nascida em 1967, da idade dos meus filhos - o que para mim é jovem, agora que vejo tudo com a distância dos meus 76 anos. Não é o seu primeiro livro, podemos dizer que já tem obra, mas eu nunca tinha lido nada, e este livro de poemas causou-me a impressão de que podia muito bem ser o primeiro.
Ela define-se como poeta, e diz na badana do livro:
" Se tivesse de escolher um poeta, hoje, escolhia três: Camões, Whitman, Herberto Helder". São boas escolhas. Melhor, são excelentes. Significam que lê e gosta de ler, de Camões a H.Helder, do clássico ao que no seu momento (A Colher na Boca) foi o mais subversivo, e de contínuo aprofundamento, ou ampliação, de um imaginário sem igual.
Mas eu descubro outros, americanos, e outros ainda, clássicos do oriente  e contemporâneos, no discurso poético, com ritmo quase de rap, utilização por vezes brusca, ou mesmo rude , da linguagem. E descubro ainda outros, de grande elevação poética e mística, laicizada pela autora. Que não os imita, os interpela.
Esta poesia - preferia quase chamar narrativa poética, por ciclos,
surpreende, porque mesmo na escrita de quotidianos, como os de Adília Lopes, há  uma ironia distanciada, mas não há brusquidão.
E no caso de  Eugénia, se a poesia fosse assinada por um pseudónimo masculino, não me espantaria. A linguagem  é seca, como tantas vezes a dos prosadores ou poetas masculinos. Seca , ou melhor, despida de artifício, mas intensa. Intensa mas algo displicente, o que esconde o melhor do seu sentido de humor: ela pega nas palavras, nos versos, no todo ou em parte da narrativa poética , como quem pega nas roupas que lavou ( cabe à mulher, nas suas funções alquímicas, de transformação, é o que se vê numa das belas gravuras da Atalanta Fugiens, lavar a roupa...matéria a ser sublimada...) e pronto, põe esse quotidiano que é o seu a "secar em verso", na corda da sua (e nossa) imaginação.
Que maneira de lidar com a poesia...dirão alguns? Mas é uma óptima, para não dizer perfeita maneira: é íntima, como toda a poesia que se impõe, ao modo rilkeano (nas cartas a um jovem poeta, a poesia "deve nascer da mais profunda solidão....").
Haverá algo de mais solitário que a função da mulher, lavando roupa? Seja no rio, ainda que possa cantar alegrias ou lamentos, seja fervendo ao lume das secretas cavernas da alma onde se exerce a depuração necessária?
Falo pois de Eugénia de Vasconcellos, e do seu
 O QUOTIDIANO A SECAR EM VERSO, ed. Guerra e Paz, 2016.
"porque é preciso virar a página" diz ela, como epígrafe.
 Na verdade, estão eivados de profundo lirismo religioso - não digo místico, não são êxtases místicos, apesar de algumas referências, não se trata aqui de unificação a um Deus (seja ele qual fôr) que se apossa de um corpo, como no caso das freiras de Loudun, mas de um virar da tal página: falemos do corpo sim, mas da sua natureza já divina de origem, criado à imagem e semelhança..., falemos do Homem, e falemos da Mulher, do re-conhecimento que ela exige.
No capítulo da METAFÍSICA DO AMOR (p.45) logo no início, Amor Fica temos a definição de um amor que seria feito para permanecer, no encontro dos corpos, do desejo, da fusão mais completa.
Seria isso o amor, se tal fosse possível. A narrativa poética é iniciada com a descrição de um velho muito alto e muito velho (Deus? Salomão, o sábio do Cântico dos Cânticos?) que puxando com força a narradora com um nó de limos (podia ainda ser Poseidon, que também amou...) lhe começou a contar:
Dois amantes encontram-se,
a clareza do incêndio acorda
o esplendor dos corpos e os cânticos
antigos que dormem no esplendor dos corpos,
o esplendor dos corpos é
a confusão das coxas, a distracção dos dedos, o sossego dos olhos.
É isso a eternidade:
dois amantes encontram-se.
E o despudor do lirismo até ao rubor de Dionísio.
Assim, pedi ao meu coração que dissesse ao Amor:
Amor, fica,
e se a morte vier, ela que entre pelas portas do mar.
Porque a eternidade é isto.

Paremos um pouco:
Há muito de Herberto Helder, nesta clareza do incêndio - tudo na obra de Helder se incendeia, desde os corpos às palavras que os dizem, mas também a expressão de um puro anseio de eternidade que nunca é concedido aos amantes. A Paixão que o desejo alimenta logo  se extingue.
E o Amor não fica: " Desconhecido de si mesmo o Amor partiu".
Permanece o anseio:
"Se vires o Amor, diz-lhe: Amor fica".

Esta página, que nos parece que se poderia ter virado, foi virada, mas no discurso do Homem velho o fim contraria a definição do início. Os Amantes encontram-se, ardem no fogo que os queima, e com eles a paixão que os uniu.
Ficam as cinzas, é esta a lição do Velho.
Também Rilke dissera, nos CADERNOS DE MALTE LAURIDS BRIGGE, a propósito da Portuguesa, emblema de Amor Eterno, que amar é melhor que ser amado. Não há, na verdade, nenhum Amor eterno.
Em poemas como Vamos dançar, Amor, esta Noite (p.29) do ciclo O QUOTIDIANO A SECAR EM VERSO, a linguagem será bem diferente, a roçar o quotidiano mais prosaico.
Mas não é a vida a prosa do que se vive, a prosa do que se diz, no meio do tanto que ficará por dizer? Não foge ao cliché, se tal fôr necessário, para este longo poema de exclamações vingativas, ao modo bd, como observa, ou de telenovela, digo eu, ou seja : o que está na moda "o que está a dar..." e por aí mais circula. Eugénia é boa observadora...
Este ciclo, que dá o título ao livro, não é contudo, no conjunto do livro, e na minha opinião (vale o que vale) o que mais define os temas da poeta.
É contudo muito desafiante, e embora eu não o transcreva no post que tem limitação de espaço, peço ao leitor que não deixe de ler.
Salta graficamente aos nossos olhos uma outra realidade, de um quotidiano banal, por vezes brutal, e que a autora, magistralmente, ironicamente, exprime numa secura de observação muito sua.
Se adiante reflectirá sobre o Amor que fica, aqui corre à facada, como num fado menor, o Amor que traíu.
Encontro nesta obra tantas referências que são mais do meu tempo, e que a jovem (para mim) autora recupera...
Agora é Mercedes Sosa, com os grandes da bossa nova, que podemos puxar do Youtube vezes sem conta...(p.69 )
E assim vai andando, desde  Dueto com Mercedes Sosa, às Baladas Hebraicas de Else Lasker-Schueller, em NÃO FAZ MEU CORAÇÃO FRONTEIRA COM O TEU?
Toda a leitura feita é transposta nos temas mais reflectidos e dados (postos a secar) a uma nova e actualizada releitura.
Um livro que o Amor atravessa, interpelando.
Vivido, sonhado, desejado, "despejado"...enfim, um livro bom de se ler!







Thursday, April 21, 2016

Orhan Pamuk, sempre ele....

Recebo agora o seu livro, cujo título me atraiu:
A STRANGENESS In MY MIND, ed. de 2015, na tradução inglesa.
Esta é a estranheza que também sinto, será como foi a de qualuer dos meus escritores preferidos, Proust, por exemplo, entre outros, de escrita demorada, fruto de uma atenção ao pormenor que se destaca nos meio de um ambiente mais alargado da família e suas rotinas, ou da sociedade e sua cultura e hábitos, que vão do religioso ao alimentar...Em cada pormenor a identidade ou a diferença, intransponível, quem sabe se talvez mais ainda do que outrora.
A edição da Faber and Faber é sumptuosa, um pouco pesada para mim, mas lerei devagar, e sobre uma cómoda almofada.
Estranheza é o que sentimos, desde logo perante a decisão de escrever, ou continuar a escrever, quando parece que já dissemos tudo, ou outros foram dizendo por nós.
Este impulso que nos leva a olhar de novo à nossa volta e a anotar o que sentimos, ou pensamos, e pode ir da tranquila indiferença a uma revolta mais calada, mais surda, mas a dado momento precisando de ser dita. Quando pelo meio se intercala uma relação de amor quase impossível surge o contraste civilizacional, e a estranheza aumenta: num mundo já tão aberto, tão global, como podem existir, (e existem, ficam mesmo a descoberto) nichos de tão grande fechamento...e podem ser felizes, no sentido mais geral de ficar a viver uma vida agradável, onde pelo menos alguma liberdade e respeito mútuo permitam chegar ao fim da vida no seio de um convívio de espírito mais aberto?
Pamuk vive entre duas culturas, escreve na estranheza ou na admiração de ambas, pois em ambas se encontram valores respeitáveis. A estranheza é contudo grande: por que razão não se encontram, em algum ponto central de conhecimento e reconhecimento? Não somos todos humanos, nascidos do mesmo par primordial? Sentindo as mesmas paixões , quando há paixão pelo meio?
Como já acontecia noutros dos seus romances, ele parte de um episódio, só aparentemente pequeno, insólito, como o de amar a irmã mais nova nascida numa família tradicional de uma pequena localidade turca, ter esperado alguns anos por ela, escrevendo-lhe cartas de amor, e de regresso combinar então que fugiriam juntos, ajudados por um primo, indo viver para Istanbul, para eles o mundo. O estranhamento começa quando o jovem herói, de 25 anos, descobre, ao ver o rosto da amada, que ela não é a irmã mais nova, a quem escrevera tanto o seu amor e saudade, mas a mais velha, com quem teria mesmo de casar agora, por uma questão de honra.
Estão lançados os dados : foi trapaça do pai (as filhas mais velhas tinham de sair de casa antes das mais novas, para casar), ou o destino? E o que sucederá daqui em diante?
Mevlut é o jovem que foi primeiro pastor de ovelhas, na sua terra, e só mais tarde viajou para Istanbul, onde tinha já o pai e o resto da família, e onde agora  vive com a mulher, ganhando a vida como vendedor ambulante.
Ao longo dos vinte e cinco anos que foram passando, Istanbul mudou, e Pamuk, através de pormenores e situações que nos servem de exemplo, por via dos seus heróis, de que Mevlut é o principal, evoca os grandes contrastes que persistem, em pleno século XX: entre uma sociedade ainda provincial e mesmo rural nos costumes e medos, e uma sociedade que se desejou laica e progressista, moldando-se aos costumes alheios e dentro desse desejo tornando-se ainda mais arcaica, e já carregada dos vícios dos outros, da sociedade moderna, bem assimilada e distorcendo o sonho de vida de um simples homem de família, como Mevlut.
Este será o herói da "estranheza no espírito" do próprio Pamuk: de um mundo para o outro, em apenas 25 anos, como ele diz, numa capital que fora para ele, quando jovem, o mundo.
Mas o romance continua, e devemos seguir com ele até ao fim.
Entre o particular e o universal, aí se jogam de novo os destinos da vida.

Thursday, April 07, 2016

Manuel Alegre, do Bairro Ocidental às outras Memórias

Em 2015 Manuel Alegre publicou os seus poemas do Bairro Ocidental, o bairro que na verdade é o nosso país, que ele sempre celebrou nos seus versos, "o poema onde respira o teu país", país de todos nós, a que já nem sabemos se devemos ainda chamar Pátria...
"entre nós e o futuro há arame farpado
levaram o que havia além de nós"
A esta obra aludi já num post anterior.
Passam por este conjunto de textos evocação de poemas, cidades, intervenções políticas, descobertas, e as sempre novas sensações de quando se está a escrever. Ao escrever tudo em nós se renova...
Escrever é a porta aberta de um futuro que se deseja antever, (rever) ainda que criticando.
Isto conduz-me ao seu novo livro, agora lançado noutra bela edição da D.Quixote: UMA OUTRA MEMÓRIA.
Aqui se enumeram toas as leituras fundadoras, todas as memórias que a juventude nos deixa, ao compasso das leituras feitas, dos encontros tidos, das amizades permanentes que ao longo do tempo não se perdem.
Das Canções de Dom Dinis às considerações teóricas de um George Steiner que para mim foi um dos grandes condutores do pensamento mítico-literário do século passado ( é verdade, já estamos noutro século, a relação com o mundo, com a escrita, mudou por vezes tanto que mal se reconhece...) é tão vasta a marca das leituras feitas por Manuel, que nos devia sempre acompanhar como lembrete...não escreve bem quem não leu, quem não lê - a abordagem ligeira de manuais não pode substituir-se ao encontro de um inteiro poema de Camões, de Pessoa, de Sophia...para já não falar de todos os que pelo mundo fora se abriram e abriram os fundos espaços da palavra poética, dita, redita, afirmada ou negada.
"Hoje, como sempre, poesia é liberdade".
Nestas memórias Manuel Alegre responde à pergunta que muitas vezes lhe fazem: como conciliou poesia e luta constante pela liberdade, neste caso política, de pensamento e expressão, num país
fechado numa ditadura de que não se via ainda o fim?
Ele responde remetendo para os poemas de PRAÇA DA CANÇÃO - que foi bandeira de jovens e velhos durante anos e agora de novo reeditado, sem perder nada da sua dimensão universal: as ditaduras continuam, a canção evoca as guerras que ainda hoje se perpetuam, ainda que noutros territórios, e na verdade, por entre mortos e vivos o que sobrou foi isto: o poema "que rima com a vida".
Misturam-se deste modo, nestas memórias, pequenos apontamentos que o momento, a paisagem, o canto de um melro atrevido na colina de Santana, com a evocação de Camões na Canção IX:
Assim vivo; e se alguém te perguntasse
Canção, como não morro
Podes-lhe responder que porque morro.
 Eis a resposta: o poema entre a morte e a vida, o poema que proporciona ao poeta a sua única e perpétua saída.
Assim viveu sempre, desde que eu mesma me lembro, Manuel Alegre, combatente e poeta.
Partilho com ele a admiração por Sophia: li pela primeira vez em Coimbra, o seu livro CORAL, que abriu a enorme lista de todos os outros que fui comprando e lendo.
Conheci-a melhor nos Verões da Granja, de que fugi mal pude, eu que era tão algarvia, acabando por atrair várias famílias granjolas também para o Algarve! O mesmo médico amigo, em Lisboa, nos tratava a ambas de doenças respiratórias....mas ela não parava de fumar, o seu fumo já era a nuvem de poesia que a envolvia com elegância e naturalidade.Manuel, amigo íntimo, esteve sempre presente, como nos conta neste livro, a mim a vida levou-me para outras paragens, e já não a vi no fim de vida.
Leio a obra, evoco os nosso encontros.
Vivi em Coimbra dos 13 aos 18 anos e muitos dos encontros que Manuel Alegre refere, foram em parte meus: Miguel Torga, Paulo Quintela, por via do Teatro Académico, o melhor da minha juventude...entre o TEUC, do clássico grego e o moderno do CITAC.
O palco permite uma liberdade que sentimos como absoluta, embora seja passageira...mas fica a boa memória, e o impulso de sempre...
E assim por diante, não vou repetir as referências a Natália Correia, com quem convivi de perto (apresentei-lhe o poeta e pintor Henri Michaux, por ocasião de uma exposição dos seus quadros na Galeria São Mamede)  e a todos os que se lhe seguem, que Manuel evoca, todos referência do nosso mundo intelectual e que fazem parte do nosso património de cultura e liberdade.
Nestas memórias recupera ainda intervenções de carácter político: reflexões sobre o mundo, a Europa que já não é a que escolhemos, ou sonhámos, mas que é necessário ajudar a que mude, pois se as utopias são difíceis de concretizar não deixam por isso de ser menos importantes como desenho ou desejo de futuro!
Que a voz do poeta não se cale, e que o seu pensamento aberto e livre não ceda, como nunca cedeu, ao que é fácil, pois da facilidade nada nasce que nos amplie e justifique a vida!