Sunday, March 06, 2016

ROSAS E MAIS ROSAS

(Herberto Helder)


Li A Colher na Boca, no original que viria a ser publicado pela editora Ática em 1961.
Foi um deslumbramento, para mim que, habituada à literatura francesa, lia Prévert, lia Boris Vian e outros, do movimento OULIPO, não esperava, em Portugal, descobrir nada de tão intenso e tão inovador.
De fiel leitora de Herberto tive o privilégio de passar a amiga. Não direi íntima, as nossas vidas eram muito diferentes, mas sempre presente na leitura, na troca de cartas (raras) e de casuais encontros nos cafés do Saldanha.
Em A COLHER NA BOCA escreve o poeta a inciar o poema:
Falemosde casas, do sagaz exercício de um poder / tão firme e silencioso como só houve / no tempo mais antigo.
Casas, um tempo e um espaço arcaicos, é nessa realidade arquetípica que seguiremos, guiados pela mão do poeta. Será um afundamento, na palavra, no seu duro e impiedoso exercício, minuciosamento estruturado.Por muito que possa parecer escrita de mão livre, entregue aos impulsos da chamada escrita automática dos surrealistas, há um ordenamento estrutural na poesia de Herberto Helder que não é de acaso, mas sempre de cultura fina, de requinte subtil, ainda que por vezes oculto.
O poema segue, e não é logo de rosas que nos falará:
...
Digamos que descobrimos amoras, a corrente oculta / do gosto, o entusiasmo do mundo.
De amoras a amores, dos corpos de gente citados logo a seguir,a dedução seria fácil. Mas não será disso que se trata. Seguem-se elementos primordiais, fontes (água) pedras (ossos que são da terra), alguma coisa celeste (ar), como fogo exemplar (fogo).

Nada mudou, na aparência: estas são sempre as casas.
São centro, e fundamento.
Mas já entretanto vão chegar as rosas...
Referem-se os arquitectos que não viram as torrentes infindáveis / das rosas, ou as águas permanentes / ou um sinal de eternidade espalhado nos corações / rápidos.
Alguma coisa passou ao lado dos virtuais construtores de um universo invisível, montanha e mar fundiram-se entretanto, para que animais e estrelas / homens e mulheres ...ardessem devagar.

Volta-se então de novo, a falar de casas, e do que são: Casas são rosas / para cheirar muito cedo, ou à noite, quando a esperança / nos abandona para sempre.

O poeta convida, no fim, à reflexão sobre a alma e a morte.
As casas, de que desejou falar, abarcam o universo, o pequeno (do homem) e o grande (da matéria divina, toda por conhecer). Enumerados os elementos, que são quatro, na sua tradição, faltaria enumerar os princípios, que seriam três, se fossem convocados.
Não foram.
A rosa permanece fechada, como a de Rilke, na sua rotundidade perfeita, secreta, inominável.
O exercício pedido é o da paciência: como na oração de um alquimista, que tenho citado muito:
ora, lege, lege, lege, relege, labora et invenies (MUTUS LIBER).

Falemos de casas, diz o poeta, como quem fala da sua alma,
 entre um incêndio,
 junto ao modelo das searas,
na aprendizagem da paciência de vê-las erguer
e morrer com um pouco, um pouco
de beleza.

Assim se fecha o ciclo: das casas, centro da vida, às rosas, espelho da alma.
Ocorre-me mais uma citação alquímica, do Rosarium Philosophorum: dat rosa mel apibus, a rosa dá  mel às abelhas...



No comments: