Friday, December 26, 2014

NATAL ZEITGEIST de Sérgio Araújo

Sérgio Araújo, um coleccionador feliz!
Apresenta no Porto, no Arquivo Histórico da Casa do Infante, a exposição  NATAL ZEITGEIST, Fisionomias e Visualização,  1839 - 1914.
Um conjunto de rara beleza, variado, de gravuras a postais de Natal, de todo o género, em que a figura do Pai Natal, mesmo quando há presépio, não deixa de se impôr.
Ele é o Pai que distribui as benesses do Inverno, com a ajuda dos outros pequenos seres que o ajudam, anões ou elfos,  brincando com ele e  agitando o sono das crianças que aguardam pelo dia seguinte. Mas nas crianças tudo é ainda inocência, não há trevas, não há frio que gele as almas, o branco da neve de Inverno é ainda uma marca de benção e pureza. O início da guerra, em 1914, porá fim a este imaginário ( mas que mesmo em horizonte distante não deixa de ser aspiração permanente).
Uma das gravuras (xilogravura) destacada no Catálogo  é inspirada num dos contos de Grimm, que Sérgio descreve com pormenor:
datada de 1863, a xilogravura representa " o antecessor histórico  do Pai Natal, o Sr. Inverno, munido da sua coroa de agulhas de pinheiro nevada e com as suas barbas de gelo, irrompendo nesta composição com a sua fina espada de gelo que parece apontar para o céu, para que este se submeta à sua meteorologia. Anões e gnomos parecem secundá~lo, puxando para si com toda a força uma ninfa do bom tempo. A mãe Holle, imortalizada no conto n.24 do primeiro volume dos Contos da Infância e do Lar dos irmãos Grimm, (1812), cumpre o seu papel despejando, à direita na imagem, a neve sobre a paisagem. O Natal, também parente do Inverno, já se dirige para a terra num cortejo de anjos liderado pelo Menino Jesus, munido de um pinheiro de Natal, à esquerda da imagem. No Estado alemão de Hessen diz-se quando neva:'a mãe Holle está a fazer a cama'. E poderíamos acrescentar, ao Sr. Inverno".
Sérgio Araújo, Psicólogo de formação,  deixa neste apontamento muito, ou mesmo tudo, do que se pode adivinhar sobre o imaginário simbólico desta gravura, bem como de tantas das outras imagens que expôs, da sua colecção.
Aguarda-se que daqui saia um livro, pois este catálogo, ainda que magnífico de concepção, design e informação deixa-nos com fome de mais!
Por alguma razão, que me cabe a mim aprofundar, há algo na gravura que me inquieta, pesa naquele ambiente uma espécie de zanga, uma contrariedade, que talvez tenha a ver precisamente com a Mãe Holle (Hoelle é inferno, em alemão, e é um substantivo feminino): uma força primordial, do feminino arquetípico, força maléfica, crua (como tantas das mães ou madrastas dos contos populares) que se vê forçada a ceder o seu lugar a uma força maior, a do Sr. Inverno neste caso, que ela terá mesmo de "servir" preparando-lhe a cama.
Sabe-se, no historial dos deuses mais antigos, como podia ser maléfica a  divindade do Feminino, a que se prestava culto imolando crianças, ou jovens, na celebração dos cultos da natureza. A Mãe-Terra pedia sangue, para que a vida não se extinguisse na comunidade primitiva dos humanos.
Cultos que se praticavam no escuro mais escuro das cavernas - os infernos de outrora.
Vale a pena ir ler de novo o conto n.24, que Sérgio nos recorda e inspirou a gravura.Como todos os contos populares a lição é moralizadora, directa de linguagem e descrição dos acontecimentos.
Uma viúva tem duas filhas, uma é sua, legítima, a outra é enteada. Não há presença de pai ou padrasto, estamos num universo fechado e feminino.
Das filhas, a legítima é feia, preguiçosa e má - como se conhece de outros contos ( o da Gata Borralheira é talvez o mais conhecido).
A enteada é linda e de comportamento obediente e perfeito. É ela que trabalha, dentro e fora de casa, nas obrigações domésticas que a irmã nunca partilha consigo.
Mas há um pormenor extra, e interessante, porque abre o caminho da transformação e da aventura, que não se fica por este motivo tradicional das duas irmãs ( como também  noutros casos a variante dos dois irmãos um mal e o outro bem amado pelo pai, neste caso num universo masculino).A filha mais linda é obrigada pela madrasta a ir todos os dias, faça chuva ou faça sol, para junto de uma fonte, fiar, com um fuso que, de tanto fiar lhe faz sangrar os dedos.
Saímos do espaço fechado da casa para o espaço aberto da fonte, de onde corre água , um elemento a que Marie-Louise von Franz, seguindo a via alquímica e simbólica da interpretação daria, junto com Gaston Bachelard , um significado especial. Se a casa era um útero fechado, a fonte, com a sua água e o sangue que lhe escorre dos dedos abrem-se ao crescimento, físico e espiritual. A nossa jovem vai rapidamente mudar, e mudar de vida!
Desejando lavar o sangue que também tinha manchado o fuso,  mete-o na água da fonte e o fuso cai por ali abaixo, onde ela não consegue chegar. Corre a casa para dizer à madrasta, mas esta não quer saber e manda-a de volta e diz-lhe atira-te também para a água e traz o fuso de volta.
A jovem assim faz, e o que acontece é muito semelhante ao que acontece com Alice no País das Maravilhas. Resumindo um pouco, eis o que acontece:
" Cheia de medo atira-se para dentro da fonte, perde os sentidos e  quando recupera a consciência está num lindo prado, onde o sol brilhava e havia mil flores. Continuando o caminho chega a um forno de pão, cheio de pão; o pão chamou, ah, tira-me para fora ou vou ficar queimado, estou pronto há muito tempo. Ela aproximou-se e tirou todo o pão do forno.Continuando a andar chegou a uma árvore carregada de maçãs e que lhe pediu 'abana-me, abana-me, as maçãs já estão todas maduras'. Foi o que ela fez, abanou a abanou até que nenhuma ficou na árvore; deixou-as empilhadas num monte no chão e seguiu caminho. Finalmente chegou a uma casinha onde havia uma velhota com dentes tão  grandes que lhe metiam medo. Quando pensava fugir a velhota exclamou, por que tens medo, minha filha? Fica comigo, e se fizeres  o que te peço na arrumação da casa tudo correrá bem contigo. O que tens é de ter cuidado, ao fazer a minha cama, e verificar bem que ao sacudir o colchão todas as penas se soltem, para que neve na terra. Eu sou a Mãe Holle."
Os motivos descritos até agora, a fonte por onde cai, o prado lindo e florido em que acorda, o pão e as maçãs que recolhe - elementos e alimentos de vida- dão a entender que é de transformação de uma vida que o conto se ocupa, nesta espécie de descida ao inferno (Holle, Hoelle) que oculta um renascer primaveril, como nos mitos de Proserpina no Hades.
A menina decide ficar coma a Mãe Holle, e tudo corre bem até que começa a sentir saudades da sua casa, da sua terra, e pede para voltar. A Mãe Holle felicita-a por esse bom sentimento - da saudade - e ajuda-a no regresso, pois ela tinha-a servido sempre tão bem: guia-a até um grande portão ( arquétipo do inconsciente, se seguirmos a alquimia junguiana), que se abre diante dela enquanto uma poderosa chuva de ouro a cobre de alto abaixo e dela não se despega. "esta é a tua recompensa por teres sido tão aplicada, diz a velha e devolve-lhe o fuso que tinha caído na fonte."
Este é o ouro alquímico que encontramos nas gravuras de Michael Maier, do século XVII, a matéria da Espiritualidade suprema, por um lado, e a prova de que o EU Superior, o Em-Si junguiano (le Soi) ultrapassadas todas as vicissitudes do crescimento físico e moral tinha sido alcançado.
O resto do conto já se adivinha: madrasta e meia-irmã, cobiçosas do ouro, repetem o que julgam ser o fácil caminho do enriquecimento. A meia-irmã, obedecendo à mãe, segue para a fonte, atira-se com o fuso, descobre no caminho o que a primeira tinha descoberto, mas egoísta e má não faz nada do que lhe é pedido. Quando fica em casa da Mãe Holle ao terceiro dia já não obedece, e quando pede para voltar em vez de chuva de ouro é castigada com uma chuva de pez que não mais se descola dela:
" enquanto foi viva nunca  o pez lhe saiu do corpo".
No cap. IX de L'Interprétation des Contes de fées, de Marie Lousie von Franz, refere-se ela à questão da SOMBRA (que seria o Animus,  no caso do Feminino) que raramente aparece.
Contos em que o universo seja apenas de mulheres, irmãs, como neste caso, enquadradas por uma mãe-madrasta e a Mãe Holle ( o que faria, na opinião da erudita o Quatro que estrutura o caminho do progresso interior, o quotidiano contraposto ao arquétipo fundador) não necessitam na verdade que a Sombra do Animus se revele claramente. Por uma razão simples, a mulher já está, pela sua própria essência, mais perto da natureza, do sentimento, do irracional que é impulso intuitivo e condutor de vida.
As mulheres e a sua Sombra - natureza e instinto- são nas mulheres factores já muito mais próximos do que em geral nos homens ( que esses sim carecem de uma Anima complementar). Nas mulheres há uma espécie de movimento pendular, como o da lua, de lua nova a lua cheia e pelo meio crescendo ou decrescendo. É este o seu segredo e asim o vemos nas figurações alquímicas, mulher-lua, homem-sol: neste Razão naquela Emoção ou sentimento.
Voltando finalmente ao mistério intrigante da gravura, eis o que se verifica: uma discreta cristianização do culto feminino da Natureza, que ocupa, ainda assim o coração da narrativa ilustrada. O Sr. Inverno é aqui o Rei, um Animus poderoso, no alto do seu rochedo, comandando de espada na mão os elementos que estão ao seu dispôr, as pequenas pulsões anímicas de gnomos e duendes.  Adivinha-se, no rosto da figura feminina ainda verdejante, a fúria de ter de ser reprimida. Agarra-se a um ramo, mas em vão, como sabemos. Pois lá em cima, ao lado do Sr. Inverno, a Mãe Holle já está a despejar as penas do colchão, que são a neve que cobrirá a terra. Ele manda, ela, também coroada, colocada um pouco abaixo dele na imagem, obedece e parece aceitar bem essa sua tarefa.  Algumas das crianças já apontam para o céu, onde se adivinha a chegada de um culto novo, também de vida - uma árvore está a descer  nas nuvens - mas o olhar do Inverno ( que seria aqui um Animus temendo ser rejeitado) não deixa de ser inquietante.
Claro que não sabemos como se desenrolou, neste caso, a inspiração do artista.A oposição parece ser entre o Masculino Inverno e a Feminina e furiosa Primavera. Frau Holle, apenas medianeira.
Mas será essa a moral? Que toda a oposição se resolve mediando?
Este conto, que não foi escolhido por Maria Louise von Franz para o cap. da Sombra no Feminino, revela aqui, no Sr. Inverno, uma Sombra poderosa a comandar as forças da Natureza, a Primavera, por um lado e a Mãe Holle, que neste processo de transformação não pode de modo nenhum ser ignorada.
Como talvez não possamos ignorar que toda a mediação  se esconde num cristianismo que, descendo embora envolto em nuvens, devagar vai avançando?
Mas na verdade tudo isto é secundário face à beleza e ao mistério que envolve a produção deste artista.




No comments: