Saturday, June 21, 2014

Escrever para a juventude


Ainda os Contos de Quatro Cantos do Mundo:

Sempre fui de opinião que a boa literatura é para todos, de todas as idades. E que se deve, podendo, ler tudo, desde a banda desenhada de Mandrake o mágico aventuroso, ao Poirot de Agatha Christie, ou, mais científico, um Júlio Verne. Em tempo haverá tempo e oportunidade, se ficou desenvolvido o gosto de ler, para ler James Joyce, Clarice Lispector, Virginia Woolf, ou, escolhendo poesia António Gedeão, Pessoa ou Herberto Helder.
Assim, não acho que seja impositivo,  à partida, que o propósito de um escritor seja, num conto para a infância ou para a juventude, o de simplificar a sua escrita. Pode sem dúvida escrever de modo mais directo e acessível (será útil para todos, pequenos e grandes) mas isso já é definição de boa escrita, e não de escrita "simplificada", no sentido de empobrecida.
No caso destes contos de Cristina Carvalho, o que me interessou  foi ver como, à medida que a narrativa se organizava, ia surgindo de modo adequado uma "lição" do texto: informação e formação.
Assim, na aventura do pólo norte,Vidas brancas, ao mesmo tempo que acompanhamos o dia a dia de uma família de esquimós, na descrição de um avô (que chegou ao termo dos seus dias) de seus filhos e do netinho em quem se concentra mais a história, o pequeno Jal, sentiremos (a par do deslumbramento da paisagem, dos rituais quotidianos ) como é importante o laço que une uma comunidade permitindo que se organize e sobreviva, e, no caso de Jal, no encontro com a foca-bébé e a cria de raposa, como é importante a empatia com aquilo a que chamarei de "vida animal", que devemos amar e preservar. 
Houve neste conto informação genuína e formação de "lição" como já nas tabuínhas antigas da Suméria, na epopeia de Gilgamesh o contador sentia a necessidade de fazer.
Contar é acrescentar ou sublinhar algo que se tornou importante, para nós e para os outros. Um conto, como Marie-Louise von Franz nos ensinou é uma forma de iniciação.
Já na aventura do deserto, A noite é o lugar mais tranquilo do mundo, a descrição da paisagem se torna mais detalhada, mais visionária, o narrador é um "eu" solitário cujo olhar reflecte como num espelho cada pormenor à sua volta - escorpiões e cobras deslizando na areia, oásis que se adivinham verdes e frescos, contrastes de vidas e formas: " assistimos ao morrer da luz do dia num apocalipse de fogos e sentimos o ruído da água, muito perto e muito longe. É que, caminhando no deserto, nunca se sabe se a origem da vida está muito perto ou se está muito longe. Os sons são indistintos. As sombras inexistentes. O vazio, total."
Se no conto anterior a estrutura é, a seu modo, desarticulada, para dar voz ao diálogo de Jal com a raposa amiga (evoquemos um pouco o Petit Prince, de Saint-Exupéry...) aqui são as cartas do deserto que desempenham o mesmo papel. Formas de recuperar a atenção, embalada pela prosa escorreita, de um leitor distraído. Nestas cartas surge o quotidiano, como o narrador nos diz, mas também a recuperação de memórias antigas,  recuando a gerações e gerações de idênticos caminhantes, de nomadismo fundador. Um eu que se funde num todo de evocações que só o silêncio permite. Deste silêncio e de uma noite sem igual se falará na quarta carta, a última, onde o dizer se esgota e a plenitude da comunhão com a música do universo é concedida: "Sim, a noite é o local mais tranquilo do mundo". 
Três crianças dão forma à aventura na floresta amazónica de Casa verde, o terceiro conto. A par da descrição, do detalhe, das rotinas a cargo das mulheres, aos homens incumbem outras, surge a magia secreta que só o feiticeiro guarda, como guardião que é do passado, do presente e do futuro. Descrito o lugar, os lugares, é na mão dele que se guarda o tempo que reina sobre todos os seres.
Viajando sob o azul intenso das águas , é o último conto. 
Se o que anotei aqui para os leitores despertou, como espero, interesse pelo livro, não ficarão desiludidos com a história de um golfinho-roaz avistado ao largo e conduzindo a narração para outros céus - há muitos céus - recorda a narradora/narrador, mas sobretudo para o fundo do mar, onde não se avista o céu mas o abismo, sempre o abismo, em sucessivas camadas sobrepostas, que permitem igualmente sonhar. O sonho é de um encontro, mas fico por aqui, está na hora de acordar...
Boa leitura!


Friday, June 20, 2014

Cristina Carvalho, Quatro Cantos do Mundo
ed. Planeta, 2014

Este recente livro de Cristina Carvalho, pelo título e em especial pelos Viajantes que evoca, em dedicatória, Roald Amundsen, o caminhante dos Pólos, David Livingston, o do deserto do Kalahari (e a célebre frase recuperada em filmes célebres: Dr. Livingstone I suppose? ), David Attenborough que me acompanhou a mim e já também à infância dos meus filhos, e ainda, last but not least, Jacques-Yves Cousteau, da exploração submarina, que o seu filho agora continua - dizia eu que este livro de Cristina, mal o abri, me remeteu para a minha própria infância/adolescência, no Porto, com o meu pai a dar-me a ler os livros de Rómulo de Carvalho, enquanto no colégio líamos Júlio Dinis. Com o meu pai foi sempre de História ( a grande) e a Ciência, e ao mesmo tempo os livros de banda desenhada daquele tempo, que se compravam nos quiosques: o Superhomem, a família Marvel, etc. Leituras de café para me entreter e ele poder falar à vontade com os amigos.
O que quero dizer? Que o ambiente de família, o pai com quem se fala, ou a mãe, mas este pai de Cristina era o Professor- cientista (mais tarde conheci toda a sua poesia, afinal era ainda poeta, com nome de António Gedeão) nesta família o que se viu, o que se leu, rasgou horizontes e paixões que perduram.
Neste caso, a aventura e a escrita. Da viagem da escrita, pelas palavras dentro...
Uma escrita de rigor, sobre a qual se pode fantasiar, criar e recriar mundos, que por serem mágicos mas verosímeis ( no bom sentido da definição de Aristóteles) se transformam em fonte de saber e de prazer.
Leio e cada página me empurra para a outra...São quatro histórias, cada qual no seu espaço/tempo peculiar, que Manuel San-Payo ilustrou.
À medida que leio penso que este seria um livro a incluir nas colecções do Secundário, de leitura obrigatória.
Dou o exemplo e para as minhas 5 netas mais crescidas já comprei para leitura de Verão. (Pôr apenas likes nos FB não ajuda a que se leia o livro, comprar é preciso, divulgar, em casa, à mesa, à noite gozando o ar livre também.
Ocorre-me que a qualidade de um autor, como neste caso de Cristina, se nota no cuidado (que é generoso, pois podia despachar o assunto como tantos outros fazem, sem se preocupar com o rigor da palavra) com que trabalhou em cada momento a fantasia própria do lugar pelo qual faz e dá a fazer a viagem. 
É o toque dos grandes que fundaram o realismo fantástico, como em Cem Anos de Solidão, ou Como Água para Chocolate!
Preenchem-nos a vida, nesse momento único da leitura.
E neste caso ainda, o remeter para Viajantes que a ela a fizeram viajar, como nos conta no Prefácio - sabendo que com o seu livro outra juventude, curiosa, viajará também. 
Eis-me de repente feliz e rejuvenescida, e ainda  não cheguei às profundezas do mar - esse mar de onde proveio a Vida, de que tantas vezes desmerecemos... 
Obrigado Cristina!

Sunday, June 08, 2014

Ana Luísa Amaral
ESCURO
Na poesia não há matérias proibidas, à imaginação do poeta tudo é permitido.
Dizia um antigo alquimista, Dorneus, que teve grande influência entre os seus pares, cito apenas Paracelso, que "a imaginação é a estrela no homem".
Assim era inscrita a criatura humana, o homem, num universo mais vasto, o conhecido e o desconhecido. As epígrafes iniciais (não iniciáticas, mas quase) desta última obra de Ana Luísa Amaral deixam indícios: de um místico poeta e profeta como William Blake, e de um santo, São João da Cruz, que lhe é anterior e cuja noite escura da alma foi longamente glosada ao longo dos séculos: pois toda a alma tem a sua luz e a sua escuridão, e há momentos em que apenas a escuridão, o veludo perverso do seu silêncio se conseguem sentir.
Paul Celan foi, recentemente, o mais exímio poeta da escuridão e do silêncio, face a um Universo que Deus terá criado sem se preocupar com o seu destino...
Este é o efeito de um bom livro: ao ser lido conduz-nos a tantas outras paragens...Para fechar este parêntesis, recordo uma frase transcrita por alguém no Facebook: 
Pergunta um colega a Einstein " o que é mais importante, o conhecimento ou a imaginação?" 
Responde o sábio, "a imaginação; o conhecimento leva-nos de A para B; a imaginação leva-nos de A para todo o lado".
Desta vez a imaginação levou Ana Luísa para uma travessia que a deixa entre Camões e Fernando Pessoa, os Lusíadas relidos, a Mensagem retocada, e no escuro das múltiplas viagens, dos sonhos, das utopias - uma nova proposta que não se abre à luz de nenhum caminho, antes se fecha na contemplação de um mundo, o actual, em que tantos egoísmos nacionalistas, tanto sofrimento e morte prevalecem.
Viveu-se outrora uma utopia? Vive-se hoje o puro desengano.
O fio condutor destes poemas, que os torna talvez menos poéticos do que se esperava e muito mais reflexivos e descritivos, é no fundo uma meditação da História: nossa e dos outros, já que na escuridão ou na luz do Universo tudo é uno.
Ninguém me levará a mal que cite apenas o início, foram esses os versos que me entusiasmaram, pois o início do CLARO-ESCURO nos fala "da mais pura alegria", a da infância ao amanhecer, numa aldeia que seria a de um Alberto Caeiro - mas ele nunca foi criança- amanhecer de luzes, de cheiros, de barulhos, a vida aberta para um mundo de escolhas, a luz no escuro de que se falará depois:
Ontem à noite e antes de dormir,
a mais pura alegria

de um céu

no meio do sono a escorregar, solene
a emoção     e a mais pura alegria
de um dia entre criança e quase grande  

e era na aldeia, acordar às seis e meia da manhã, 
os olhos nas portadas de madeira, o som
que elas faziam ao abrir, as portadas
num quarto que não era o meu, o cheiro
ausente em nome

mas era um cheiro
entre o mais fresco e a luz
a começar     era o calor do verão,
a mais pura alegria

um céu tão côr de sangue
que ainda hoje, ainda ontem antes de dormir,
as lágrimas me chegam como então, e de repente,
o sol como um incêndio largo
e o cheiro     as cores

Mas era estar ali, de pé, e jovem
e a morte era tão longe,
e não havia mortos nem o seu desfile,
só os vivos, os risos, o cheiro
a luz

era a vida, e o poder de escolher, 
ou assim o parecia:

a cama e as cascatas frescas dos lençóis
macios como estrangeiros chegando a país novo,
ou às portadas    abertas de madeira
e o incêndio     do céu

Foi isto ontem à noite,
este esplendôr no escuro e antes de dormir.
....

Fico por aqui, a continuação iria obrigar-me a uma viagem pelos tempos, antigos e presentes, roubados de emoção.