Ainda os Contos de Quatro Cantos do Mundo:
Sempre fui de opinião que a boa literatura é para todos, de todas as idades. E que se deve, podendo, ler tudo, desde a banda desenhada de Mandrake o mágico aventuroso, ao Poirot de Agatha Christie, ou, mais científico, um Júlio Verne. Em tempo haverá tempo e oportunidade, se ficou desenvolvido o gosto de ler, para ler James Joyce, Clarice Lispector, Virginia Woolf, ou, escolhendo poesia António Gedeão, Pessoa ou Herberto Helder.
Assim, não acho que seja impositivo, à partida, que o propósito de um escritor seja, num conto para a infância ou para a juventude, o de simplificar a sua escrita. Pode sem dúvida escrever de modo mais directo e acessível (será útil para todos, pequenos e grandes) mas isso já é definição de boa escrita, e não de escrita "simplificada", no sentido de empobrecida.
No caso destes contos de Cristina Carvalho, o que me interessou foi ver como, à medida que a narrativa se organizava, ia surgindo de modo adequado uma "lição" do texto: informação e formação.
Assim, na aventura do pólo norte,Vidas brancas, ao mesmo tempo que acompanhamos o dia a dia de uma família de esquimós, na descrição de um avô (que chegou ao termo dos seus dias) de seus filhos e do netinho em quem se concentra mais a história, o pequeno Jal, sentiremos (a par do deslumbramento da paisagem, dos rituais quotidianos ) como é importante o laço que une uma comunidade permitindo que se organize e sobreviva, e, no caso de Jal, no encontro com a foca-bébé e a cria de raposa, como é importante a empatia com aquilo a que chamarei de "vida animal", que devemos amar e preservar.
Houve neste conto informação genuína e formação de "lição" como já nas tabuínhas antigas da Suméria, na epopeia de Gilgamesh o contador sentia a necessidade de fazer.
Contar é acrescentar ou sublinhar algo que se tornou importante, para nós e para os outros. Um conto, como Marie-Louise von Franz nos ensinou é uma forma de iniciação.
Já na aventura do deserto, A noite é o lugar mais tranquilo do mundo, a descrição da paisagem se torna mais detalhada, mais visionária, o narrador é um "eu" solitário cujo olhar reflecte como num espelho cada pormenor à sua volta - escorpiões e cobras deslizando na areia, oásis que se adivinham verdes e frescos, contrastes de vidas e formas: " assistimos ao morrer da luz do dia num apocalipse de fogos e sentimos o ruído da água, muito perto e muito longe. É que, caminhando no deserto, nunca se sabe se a origem da vida está muito perto ou se está muito longe. Os sons são indistintos. As sombras inexistentes. O vazio, total."
Se no conto anterior a estrutura é, a seu modo, desarticulada, para dar voz ao diálogo de Jal com a raposa amiga (evoquemos um pouco o Petit Prince, de Saint-Exupéry...) aqui são as cartas do deserto que desempenham o mesmo papel. Formas de recuperar a atenção, embalada pela prosa escorreita, de um leitor distraído. Nestas cartas surge o quotidiano, como o narrador nos diz, mas também a recuperação de memórias antigas, recuando a gerações e gerações de idênticos caminhantes, de nomadismo fundador. Um eu que se funde num todo de evocações que só o silêncio permite. Deste silêncio e de uma noite sem igual se falará na quarta carta, a última, onde o dizer se esgota e a plenitude da comunhão com a música do universo é concedida: "Sim, a noite é o local mais tranquilo do mundo".
Três crianças dão forma à aventura na floresta amazónica de Casa verde, o terceiro conto. A par da descrição, do detalhe, das rotinas a cargo das mulheres, aos homens incumbem outras, surge a magia secreta que só o feiticeiro guarda, como guardião que é do passado, do presente e do futuro. Descrito o lugar, os lugares, é na mão dele que se guarda o tempo que reina sobre todos os seres.
Viajando sob o azul intenso das águas , é o último conto.
Se o que anotei aqui para os leitores despertou, como espero, interesse pelo livro, não ficarão desiludidos com a história de um golfinho-roaz avistado ao largo e conduzindo a narração para outros céus - há muitos céus - recorda a narradora/narrador, mas sobretudo para o fundo do mar, onde não se avista o céu mas o abismo, sempre o abismo, em sucessivas camadas sobrepostas, que permitem igualmente sonhar. O sonho é de um encontro, mas fico por aqui, está na hora de acordar...
Boa leitura!