Saturday, May 03, 2014

O prometido é devido.
Escrevo na intenção de que um jovem brasileiro (e não só) que se interessou pela obra juvenil de Fernando Pessoa me acompanhe na ideia que defendo, de há muito: há que ler o que o jovem poeta lia, em inglês ou mais tarde, já de regresso a Lisboa, em francês ( pois a literatura francesa era a nossa influência dominante) para entender melhor alguns dos temas, algumas das ideias que dominam a sua produção.
Exemplo: o poema da mão, datado de 1906.
To a Hand / Aquela Mão, na belíssima tradução de Luísa Freire, pede quem sabe, que se leia, de Rilke, Os Cadernos de Malte Laurids Brigge (1910) e as páginas em que ele descreve como se encheu de coragem para falar da mão que na sua infância o aterrorizava a ponto de quase não se atrever a entrar no quarto, a deitar-se na cama, para dormir sossegado. Não se tratava de um sonho, mas de uma visão fantasmagórica, uma alucinação perturbadora.
Não houve, é claro, não podia haver, dada a diferença das datas do poema e dos Cadernos uma influência directa.
Mas o que há, e é isso que torna a literatura comparada tão interesante, é um tom de época, transversal nos temas, nos motivos, nos símbolos como são vividos na escrita de uns e outros.
Neste caso que me ocorreu (tenho estado a reler Rilke) a imagem da mão aterradora, parece-me ser importante o pavor que ela causa, o medo descrito por Pessoa como por Rilke.
O medo era grande, o medo era enorme, e por via da imagem dessa mão era do medo da morte que Rilke nos falava, como Pessoa jovem neste longo poema nos fala do medo de simplesmente existir, ou melhor da consciência do existir. Já se desenha, na sua poesia juvenil, este jogo de opostos entre o ser e o existir, e a consciência dolorosa de um e outro destes estados.
Pois o que faz a mão? Aponta um caminho, aponta um destino, ou toca-nos e o seu toque torna-se fatal, mata, como um punhal brutalmente também nos mataria, apenas porque podemos ver nela o toque de um criador primordial, e através desse toque vir a cair num abismo, a treva de que não mais se sairá.
Pessoa cultiva, como Rilke, e antes deles Baudelaire, uma espécie de simbolismo esotérico, perturbador, que obriga a releituras constantes.
Numa obra  que tive o privilégio de partilhar com Stephen Reckert, Fernando Pessoa. tempo. solidão. hermetismo (1978) pude alertar para a importância do espólio e da sua biblioteca pessoal. Nos ensaios de Reckert já se fazia o estudo de um topos de raiz baudelaireana retomado por Alexander Search o jovem heterónimo inglês agora profusamente conhecido:
"A Passante e o futuro do Passado;
"Alexander Search, entre o Sono e o Sonho".
 Dois estudos que nada perderam da sua actualidade e que urge, quem sabe on-line, caminhando para o futuro que algum editor se disponha a dar a conhecer deste novo modo. Não vou transcrever aqui, por serem longos, mas deixo os títulos dos poemas de que se ocupou Reckert e estão incluídos no apêndice textual : In the Street, e The Maiden. Poderão ser lidos nas traduções de Luísa Freire.
Quanto a mim, nessa obra, optei por sublinhar as marcas do simbolismo alquímico, num caso, e das leituras herméticas e teosóficas na moda, com A.E.Waite e H.P.Blavatsky, ou Annie Besant:
"Fragmentação e Totalidade em Chuva Oblíqua" ;
"Episódios/A Múmia, poema-chave para o estudo do hermetismo em Fernando Pessoa";
"O espólio e a biblioteca de Fernando Pessoa:uma solução para alguns enigmas".
Nos anexos incluí , de A.Search, Nirvâna, e The Circle - que também podem ser lidos hoje em dia nas traduções de L.Freire.
A curiosidade intelectual, o estudo dos grandes temas da religião, da cultura e das civilizações, para além da inquietante busca da verdade do ser e da existência, caracterizam esta produção juvenil, imperfeita na forma, mas já densa na interpelação de uma Verdade Maior, que sempre lhe escapará.
Se tivesse de escolher dois autores que ao longo do tempo, e desde cedo, fossem alimentando o seu mundo imaginal, escolheria Goethe, com o Fausto e Shakespeare sobretudo com The Tempest : não escapou ao nosso poeta a dimensão do conhecimento hermético, mágico e alquímico destes dois grandes génios da cultura universal. Com os fragmentos do seu Fausto, quis Pessoa desafiar, ou mesmo completar, a obra do antecessor. E no poema Canção de Próspero (Song of Prospero no original de Search) incluído na edição de Luísa Freire, temos a prova de que o dramaturgo era lido, e que com ele o jovem Search dialogava treinando a mão e o ritmo de poeta. Encontramos no acto V da peça os versos da inspiração.
Mas deixo aqui para facilitar a vida ao estudioso a tradução de Luísa Freire, do poema de Search:
A Canção de Próspero
Minha vara partida no fundo enterrada
Para sempre vai ficar;
Mais fundo que nunca o prumo soou,
Afundarei meu livro no mar.
O encanto de Próspero desapareceu,
Arte e magia tudo morreu,
Mortos e jazendo no fundo do mar.

Nunca mais ligados a mim
Os alegres espíritos do ar,
O que os chamava vinha daí,
E está afundado no cavo mar.
Embora não veja da luta um renovo,
Desejo contudo esta vida de novo,
Jazendo para sempre no fundo do mar".

Sabendo que traduzir nunca é fácil, e pior ainda quando se procuram ritmo e rima, perdoaremos aqui uma ou outra coisa que talvez tivéssemos, ao traduzir, resolvido de modo diferente. Isso em nada diminui a obra e o mérito desta tradutora, que tanto neste primeiro volume como no segundo cobre os anos até 1910. Foi-lhe muito bem atribuído o Grande Prémio de Tradução da APE e do Pen Club, em 1996.
Na verdade os anos passam, e com eles a memória do que foi feito outrora, sem grandes apoios, mas com grande paixão.







1 comment:

Helena said...

Muito obrigada por este estupendo apontamento sobre Pessoa.