Sunday, May 04, 2014

No post anterior, a propósito da poesia juvenil de Fernando Pessoa, falei de um gosto de época.
A grande marca desse gosto, provém, na pintura, do exercício simbolista de um Alphonse Mucha, que surge em Paris a tempo de brilhar na Exposição Universal de 1900, com as sua figuras femininas embrulhadas em tecidos vistosos, coroadas de flores, inaugurando pelo estilo o que viria a chamar-se de Art Nouveau.
Com ele, igualmente importante, Gustav Klimt, inexcedível no brilho oriental dos seus dourados, o luxo da imagem, e num quadro tão celebrado como O Beijo a figuração do mito do andrógino.
Escrevi sobre Mucha na antiga Revista da ColóquioArtes, e sobre Klimt num dos números da Mealibra.
Tudo isto a propósito de Baudelaire, em cuja poesia encontramos por vezes o preciosismo do sonho e da utopia, da Viagem que transcende a  existência, como a do apelo de Mignon ao seu Mentor, em Wilhelm Meister, de Goethe.
Escolhi um poema talvez menos conhecido, "La Géante", um soneto de Spleen et Idéal, para o contraste com "The Giantess/ A Gigante", de Alexander Search, recuperando de novo a tradução de Luísa Freire.
O poema de Baudelaire evoca o tempo primordial da criação, em que a força ainda algo brutal da Natureza, Terra-Mãe, lhe permitiria a volúpia de viver com uma mulher gigante, cujo corpo florisse, tal como a sua alma, e lhe concedesse um sono preguiçoso, embalado à sombra dos seus enormes seios.
Ritmado e sensual, este é um poema de um panteísmo pagão, em que o Feminino é exaltado pelo poeta através deste seu cântico de uma terra antiga e habitada por populações gigantes, de formas moldadas como montanhas.
Deixo ao leitor o trabalho de procurar o poema, enquanto passo agora ao nosso jovem Pessoa.
Ele traça a figura grotesca de uma gigante que lhe desperta o riso porque tenta comer algo de tão grande e informe que não lhe cabe na boca. É visível aquela avidez que o perturba e, não se contendo,  leva a interpelar grosseiramente a gigante, que lhe responde entre lágrimas:

"Esta comida que, de grande, se esgueira
Sempre à minha boca já dorida
É a Beleza una e toda inteira." 

Nenhuma comparação, a não ser pelo título e pela dimensão da criatura descrita, se pode estabelecer aqui, que valha a pena.
Em Baudelaire a avidez é toda sensualidade, e é ânsia dele, poeta, de se fundir na Mãe-Natureza eterna.
Em Search/Pessoa a avidez é transposta para a Gigante, num desejo  de se apossar de uma Beleza que é do Todo e do Uno impossíveis de alcançar.
Mas lá está, continuando a ler Baudelaire, que poema encontramos antes do belo soneto da Gigante? Precisamente o soneto La Beauté que podemos traduzir por Beleza, e em que nos é dito como são puras miragens as visões dos poetas que a julgam possuir, amando--a eternamente.

Je suis belle, ô mortels! comme un rêve de pierre,
Et mon sein, où chacun s'est meurtri tour à tour,
Est fait pour inspirer au poète un amour
Eternel et muet ainsi que la matière.

Je trône dans l'azur comme un sphinx incompris;
J'unis un coeur de neige à la blancheur des cygnes;
Je hais le mouvement qui déplace les lignes,
Et jamais je ne pleure et jamais je ne ris.

Les poètes, devant mes grandes attitudes,
Que j'ai l'air d'emprunter aux plus fiers monuments,
Consumeront leurs jours en d'austères études;

Car j'ai, pour fasciner ces dociles amants,
De purs miroirs qui font toutes choses plus belles:
Mes yeux, mes larges yeux aux clartés éternelles!

Há na Beleza eterna uma geometria perfeita, irrepetível, que atrai e emudece. Tudo nela é miragem, reflexo, ilusão pura.
É difícil não acreditar que o nosso jovem Search não tenha andado perdido por aqui!
Eu andei e continuo a andar...


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