Sunday, March 16, 2014

Editado pela Abysmo de João Paulo Cotrim, mais um belo livro de poesia, Ritornelos, de Joana Emídio Marques.
Edição muito cuidada, bom papel, letra bem escolhida pensando em leitores de maior idade, aqueles que como eu já não lêem as letras invisíveis tão na moda.
Texto ilustrado, com desenhos que ora acompanham ora separam os três conjuntos contidos sob um mesmo título, que já de si encerra alguma dimensão simbólica. Não irei a Deleuze, até porque vejo a repetição de outro modo, vejo-a como ampliação, ou como aprofundamento que se vai intensificando à medida que se lê.
E agora não resisto a uma queixa: não tenho Índice que me facilite a vida, tenho de desfolhar para chegar aos outros conjuntos que se seguem aos Ritornelos! São eles Cânticos da Floresta e Litanias.
E aproveito ainda para dizer que tratando-se de uma voz nova e inédita, julgo, e de uma ilustradora igualmente jovem e inédita, julgo (posso estar enganada, já não sigo tudo e todos como antigamente) - então gostaria de poder ler algo mais sobre os seus percursos, ou em discretas badanas ou na contracapa.
É uma grande ajuda a um leitor.
Mas vamos aos poemas, que li de seguida, de um fôlego, por me surgirem tão diferentes do que hoje em dia se produz.
Não são poemas de quotidiano descrito, vivido, mas banal (os quotidianos poéticos são hoje em dia todos tão parecidos...) também não exprimem em confissão por vezes involuntária estados emocionais que Rilke julgaria serem apenas e mal expressão incipiente de algum amor passsageiro e desmerecedor do genuíno esforço poético.
Porque a poesia exige esforço, feito de contenção, e isso falta por vezes na quantidade produzida para o mercado. 
Há toda uma nova geração de escritoras que se têm afirmado, mais talvez na prosa de ficção do que na poesia, e que considero muito inovadoras, pela linguagem, finalmente directa e aberta, nos temas e nas estruturas que os suportam.
Na poesia, deixando de parte a minha geração - anos sessenta - que foi na época muito marcante, original, e procurando os desafios que já vinham dos surrealistas e se misturavam com uma enorme ânsia de libertação (vivia-se em Ditadura, política, religiosa, moral, sexual) foi mais devagar que vi surgirem por aqui as vozes femininas de novas gerações, com Adília Lopes, Ana Luísa Amaral, entre tantas outras.
E eis-me agora com uma novíssima geração e estes Ritornelos.
Leio e reencontro alguma vocabulário, algumas imagens fortes que buscam no suporte dos elementos terra, água, fogo, céu, o ponto de referência para conceitos mais abstractos e mais elaborados. 
Escolhe-se a rocha, como um Guillevic, poeta bretão que poucos terão lido, e da rocha e sua firme dureza, se fazem nascer as flores sonhadas de algum desejo que algum Anjo ainda pode guardar. Transporta-se a emoção da terra para um céu inatingível, pois bem sabemos que essas flores, pelo caminho murcham...O poema 15, de dimensão mítica, evocando as "filhas entardecentes", vozes de um poente, de um ocaso que apaga o dizer das vozes é a expressão dessa impossibilidade adivinhada (p.37).
Compraz-se a autora frequentemente numa desarticulação vocabular que aponta para a desarticulação de um eu a caminho de ser, desejo de ser numa totalidade outra que interpela, que poderia ser divina se Deus alguma vez desse resposta. Uma ou outra referência bíblica (no poema 40, p.87) não resolve o apelo, não aumenta a dimensão, e no espaço vazio nenhuma voz se ouve.
Nos Cânticos da Floresta e nas Litanias o discurso torna-se mais denso, mais elaborado, por vezes com um ou outro preciosismo que me remete para uma poética hermética bem conhecida, a de Paul Celan, cujo imaginário é atravessado por despedidas cruéis, silêncios absolutos, aspirações todas de sofrimento irreprimível, insónias em que vagueiam mortos, os de outrora, os de agora, os de sempre.
Não posso deixar melhor elogio do que este, em que Joana diz mover-se "junto à quietude de uma memória" (p.171) : não importa se de alguém em especial, de um amor que passou, do Sopro de um Deus nunca manifestado, - essa quietude é a que forja o poema, no seu distanciamento.
Paul Celan teria apreciado. 


Tuesday, March 04, 2014

RUI ZINK
AS NOVAS FORMOSURAS...
(A metamorfose e outras fermosas morfoses, 2014)

Rui Zink lançou um novo livro, uma espécie de bombom côr-de-rosa, apetecível ao olhar e ao tacto, como têm sido estas edições da Teodolito, onde também saiu A Instalação do Medo a que já me referi neste blog.
E não por acaso, é com um texto pré-meta-kafkiano que ele começa a primeira das "fermosas metamorfoses"... que serão sete e muito diferentes umas das outras.
O título deste primeiro texto não esconde, mas inova, de forma muito original, a sua relação com A Metamorfose de Kafka.
Rui joga com o tempo de antes, com os momentos que antecederiam a transformação de Gregor Samsa em barata, ou escaravelho, e de que modo à volta desse não herói, dessa sombra antecipada de si mesmo, o mundo reagiria. Mundo à dimensão de um quarto, de uma irmã mais bondosa, de pais bíblicos, cinzentos e cruéis. O que se esperava, antecipa Rui, para não deixar dúvidas, é que Gregor se transformasse em bicho insignificante, algo nojento, criatura de repelir, como na realidade ao acordar sabia que tinha de ser.
Não ser, seria mesmo não chegar a ser, não cumprir um destino: o que estava reservado, naquele tempo e naquela sociedade normalizada a qualquer cidadão.
Ironizando, Rui Zink toca no mais fundo do que há de negativo na espécie, e que leva (levou outrora, estará levando agora?) a que toda a diferença deva ser apagada, como na novela de Kafka, por um gesto de súbito repúdio onde não cabem entendimento nem compaixão.
Ler Kafka, e logo de seguida ler esta obra-prima, condensada em poucas páginas, onde Rui Zink exprime, em tom de realismo fantástico o que foi (e continua a ser) a vida mesquinha, ou amesquinhante de uma certa pequena burguesia que não perde os seus tiques, e para a qual só o refúgio de uma metamorfose, real ou imaginária, pode trazer solução: a chamada solução final!
São sete, os textos, e muito diferentes, no tom e exercício de estilo, no tema e na linguagem, que adquire então a rapidez do coloquial, do calão, se necessário, para que se tornem mais intensas as relações ou os laços - perdidos e mal achados - como em "Pandora Boxe", para dar um exemplo, onde há alguma meta- -memória do célebre Quem tem medo de Virginia Woolf.
Rui explica-se, no fim do livro. Não precisaria de o fazer, mas temos aí mais uma prova da sua dimensão cultural, reflexiva.
Dessas notas finais podíamos fazer um seminário para estudantes de literatura. Kafka, Harold Pinter, de mistura com os clássicos, o todo num desafio que ele lança a si mesmo, e de seguida ao leitor.
No trocadilho humorístico se escondem as verdades de Rui Zink. Ora pondo a nú os tiques que são de moda, e passam, como tudo passa - "Largar Kristeva" ora deixando que a mão lhe corra pelas ideias enquanto espera que os seus leitores, também eles, ascendam a alguma meta-metamorfose que não os deixe iguais ao que eram dantes.
Não se passa por Rui Zink impunemente: os seus murros são directos, mas leais. Erudição e criatividade.Só me lembro de outro como ele, o Alberto Pimenta...